sexta-feira, agosto 18, 2017

Para onde vai o tempo





Sempre fui muito de me rir. Ria-me com tudo. Ria para as pessoas. Dizia-lhes adeus se as via ao longe, enquanto sorria rasgadamente. Diziam que era uma menina simpática. Muitos anos depois, quem me conhece desde essa altura e são cada vez menos essas pessoas, ainda recorda a minha contagiante alegria.

E traquinas. Era traquinas, as minhas preferências iam sempre para as companhias ainda mais traquinas que eu. Nunca fui de me deixar controlar. Brincar na rua era o que mais gostava. Mais crescidinha era isso ou ler. Mais crescida ainda, era namorar e ler.

Comecei a ler e escrever muito cedo e sei que os meus pais se orgulhavam disso mas disfarçavam e, por isso, aprendi a disfarçar o que sabia para além do me parecia ser normal. Ainda hoje tenho essa preocupação. Muitas vezes, mesmo sabendo faço que não.


Tinha boas notas e via que eles ficavam contentes mas não evidenciavam muito e, sobretudo, nunca deixaram que me envaidecesse por tão fraco motivo. Por vezes encontrava algumas pessoas que mostravam saber dos meus feitos académicos e percebia que o meu pai lhes teria contado e, nessa altura, ficava muito surpreendida ao constatar que, afinal, isso o orgulhava a ponto de vencer a sua natural reserva nos elogios filiais.


Eu também tinha orgulho nos meus pais, pelo que eles eram e também porque os achava bonitos. A minha mãe louríssima e de olhos muito azuis, sempre boa onda, e o meu pai, cabelo muito preto, bem arranjado, todo desportivo. Por vezes, enfrentava-os. Muitas vezes. Queriam controlar-me, enquadrar-me e eu queria andar de outra forma, voar, as asas bem abertas, tinha pressa, queria conhecer o mundo. E queria arranjar-me de forma criativa, era engraçada, dava nas vistas, eu sabia que dava nas vistas, e gostava disso -- e eles temiam. E eu não queria saber dos seus temores. Mas sempre correu tudo bem. Temiam que as minhas aventuras, o querer começar a trabalhar cedo, o casar cedo, que isso me impedisse de estudar. Não impediu. E num instante já a família estava a crescer.

O tempo passa.


Há lugares em que a gente vê todas as idades da nossa vida. A entrada de um hospital é um desses lugares. Chega gente feliz, com flores nas mãos, beijam-se, há parabéns e votos de felicidade entre os abraços que se trocam, e sobem pressurosos a conhecer quem acabou de nascer. Ou saem mulheres que se vê que são as novas-avós, e vêm com sacos a acompanhar a filha que ainda traz um ventre dilatado e que vem com um bebé num ovinho.


Ou chegam pessoas em cadeiras de rodas, um sem uma perna, o coto à vista, outra com oxigénio, passam macas com velhos com as bocas muito abertas e que parecem mortos, ou passam velhinhas muito velhinhas com andarilhos, ou homens muito magros, excessivamente magros, uma cor que dá medo, ou mulheres demasiado inchadas, mal podendo andar. Ou crianças que vêm despreocupadas pelas mãos dos pais ou dos avós. E ouvem-se conversas. Uma dizia que o psicólogo queria que ela não pensasse mais nisso mas que ela não conseguia tirar isso da cabeça. E disse isto vezes sem conta a uma outra que não dizia nada, apenas a olhava.

O tempo passa. 


Quando eu era pequena, os meus pais não me levavam a hospitais. Eu tinha pavor de ver pessoas doentes ou acidentadas. Sempre tão alegre e despreocupada, ficava em pânico, incapaz de olhar, quase sem respirar, se via alguém com ferimentos, deformações ou se os sabia doentes. Penso que seria resultado de ter presenciado a devastação que a morte do meu avô materno causou na minha avó e na minha mãe. O que se passou nunca consegui recordá-lo. Na altura, talvez para me pouparem, puseram-me em casa da minha outra avó; mas, forçosamente, terei percebido o que se passava. Não guardo uma única memória dessa altura. Tanto que eu gostava desse avô muito alto, muito louro, de olhos muito azuis e tão bem que me lembro ainda de ele me levar às cavalitas e, no entanto, não recordo nada sobre o seu desaparecimento nem nunca fiz uma única pergunta sobre isso. Já aqui o contei: por essa altura fiquei gaga. Depois passou. Mas ficou-me o pavor por tudo o que me parecia que pudesse causar sofrimento ou prenunciar um desfecho triste. Talvez por isso, os meus pais passaram a preservar-me.


Com os meus filhos, logo tentei que tivessem a coragem que a mim me faltava. E em boa hora o fiz. E agora, dos mais pequenos, há um que parece um pequeno médico. Desde sempre que se interessa por perceber a causa das doenças, que aconselha tratamentos, que investiga tudo ao pormenor. No outro dia, quando percebeu que o avô não comia caracóis, a curiosidade que aquilo lhe causou. Os outros todos nem aí mas ele, cinco anos acabados de fazer, quis saber porquê, que reacções causava, se havia outros alimentos a causar alergias, como se tratava, a que médico ia, etc. Talvez seja uma motivação genética e venha a ser o digno herdeiro do avô. Do lado da minha filha, é ela que gostava que um dos filhos fosse médico mas parece que, no melhor dos casos, um deles sairá veterinário já que adora ver uma série que mostra um veterinário a fazer cirurgias e outros tratamentos a animais. Eu nunca quis saber de algum dos meus filhos querer ser ou não médico, e, de facto, nenhum o quis. Para se ser médico é preciso muita coragem ou muito desprendimento e, de certa forma, tenho a ideia que o ser-se assim pode abalar os alicerces da alegria inocente que deve existir na vida de qualquer pessoa e que resulta da real ignorância de quão efémeros, frágeis, dispensáveis somos.


Há pouco soube do que se passou em Barcelona. Vi corpos caídos naqueles passeios largos onde as flores reinam e os pássaros cantam. É bom passear nas ramblas. Mas hoje, não lá mas pela televisão, vi gente a correr assustada, outros debruçados sobre gente inerte. Não sei se mostraram de perto, espero que não mas, quando o fazem, desvio o olhar, não suporto ver como alguém que antes era feliz, de repente fica transformado num corpo tombado na rua ou num ser indefeso, estropiado, à mercê de tudo. Vidas felizes atalhadas sem um propósito. Do que li, para treze pessoas o tempo parou. Para muitas outras é agora uma luta de vida ou morte nos hospitais, uma tentativa de que o tempo continue o seu caminho. Não pode haver compreensão para os loucos que cometem actos assim.

Mas o tempo passa.

E enquanto o tempo passa é bom que passe devagar, que o vivamos com gosto, que amemos e respeitemos a vida, que sejamos generosos, solidários, honestos, honrados, que gostemos verdadeiramente dos outros, que saibamos ficar felizes com as cores luminosas e perfeitas das flores, do mar, do céu, das montanhas, dos pássaros, com a alegria, a ternura e a inteligência dos animais, que saibamos contemplar as esculturas que o tempo modela nas rochas ou nas árvores, que nos sintamos bem a ver o buliçoso riso das crianças -- e que gostemos de nos ver ao espelho, o tempo a passar por nós, e nós a reconhecermos, por entre os sinais do tempo, o nosso sorrriso inocente de crianças.


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Lá em cima os A Great Big World interpretam Where Does the Time Go


As imagens que usei são fotografias de Steve McCurry


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Seven Ages of Man - All the World's a Stage de William Shakespeare 
dito por Benedict Cumberbatch


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Saúde e alegria a si que aqui está comigo.

Uma sexta-feira feliz.

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