Não sei se eram cigarras. Presumo que sim. Uma sinfonia arranhada. Um desaforo, um escândalo. Um calor desabalado e elas naquilo. Vinha das árvores. Se eram, estavam escondidas nas árvores. No sítio dos pinheiros, uma orquestra insolente, um canto ao desafio, muitas, muito alto. Olhei, olhei, e se nem pássaros consigo descobrir, muito menos veria cigarras.
Custava andar por ali, à chegada o termómetro do carro marcava quarenta graus. Ali o clima é extremado, insuportáveis calores, ventanias loucas, frios húmidos feitos de geladas névoas no inverno.
Hoje apenas se podia estar dentro de casa, as janelas fechadas.
Mas apetecia-me fotografar o calor. Então, devagar, o cabelo apanhado, blusa leve e sem mangas, saia fresca, por ali me aventurei, pelos caminhos abrasados. Apenas eu e as cigarras. Nem o canto dos pássaros, nem a corrida dos coelhos, nem o deslizar suave das lagartixas. Apenas eu, em processo de evaporação, e as cigarras, doidas, desatinando à desgarrada.
Apanhei orégãos, alecrim, flores de alfazema. Uma braçada de flores frescas e perfumadas. Usarei os orégãos nas saladas de tomate maduro e fresco e o alecrim no tempero das carnes e dos peixes. O alfazema é para oferecer à minha mãe.
E fotografei as flores translúcidas de tanto calor, as sombras silenciosas, as sobreposições de hastes e folhas secas que dão textura e beleza à natureza em estado quase selvagem.
Encontro beleza em tudo o que vejo: padrões abstractos, cores com infinitas variantes, desenhos de uma geometria elegante -- e quase me esqueço do calor.
Mas depois recolho a casa. Antes de me deitar sobre a colcha fresca no quarto também fresco, ainda fotografo o calor que vejo lá fora, do lado de lá da janela.
Depois adormeço. Já contei que gosto muito de, nestas tardes em que o corpo pede descanso, sentir o sono a pegar em mim, a transportar-me para o meu outro lado, o lado da inexistência. Gosto tanto.
Acordei com o meu marido a fotografar-me, a mim com a Agustina ao meu lado, eu de lado, quase abraçada à Agustina, ela de vestido azul e com um chapéu de fitas a voar.
Tinha levado um livro mas não me lembro se li alguma coisa. Ah, sim, agora que escrevo lembro-me que sim. Agustina escreve sobre o pai que fez do jogo uma forma de vida. E fala do tio do Mato. E do avô. E das Fabianas e da tia que só contava histórias meio perversas pois guardava as histórias boas para ela. Acho que até marquei o cantinho de uma folha para aqui, um dia, transcrever um bocado. Mas depois adormeci.
À tardinha, regressámos. Passei por casa dos meus pais. Ainda um sol claro, ainda um calor ardente. No muro, um gato dormia num sítio onde talvez alguma leve aragem se pudesse fazer sentir. Fotografei-o. Abriu os olhos, voltou a fechá-los. Não me atraem os gatos no sentido de os querer ter junto a mim. Acho que nunca fiz uma festa a um gato, tenho medo que se virem a mim, não os reconheço como iguais. Intrigam-me, gosto de os observar, gosto de tentar adivinhar o que pensam mas não consigo estender a mão e tentar tocar-lhes. Não apenas não tenho vontade de o fazer como acho que não devo, acho que os gatos não são bichos de darem confiança assim tão facilmente.
Serão mesmo deuses?
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Dia bom, portanto, para se estar de molho, dentro de uma banheira, num banho de espuma de água apenas levemente tépida, com um grupo de trovadores em volta, Poderiam dizer poemas, cantar, dançar ou apenas estarem ali, em volta da banheira, fazendo uma barreira visual, de modo a que eu pudesse estar nua à vontade, sem que mais ninguém me visse. Apenas eles.
___Isto deve ter sido o que pensou a Mademoiselle Melody Gardot quando lhe apeteceu cantar o seu
Baby, I'm a fool
(dentro de água).
2 comentários:
Faz sempre estes jogos labirínticos de posts dentro de posts? É que a gente esquece o que veio fazer...comentar. E como os posts são todos para o compridinho - não que estejam mal, estão mesmo muito bem -, olhe, fica assim.
....mas, sempre lhe digo, eu, dentro de uma banheira e com um grupo de trovadores em volta, ou não estaria, ou, amarrada, estaria mesmo muito desconfortável na água tépida.
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