sexta-feira, maio 20, 2016

Pois em lugar algum se vê um imortal já no céu...


O tempo corre em plena luz do dia tão secretamente
como o ladrão na noite.

Cravar o olhar no tempo, gritar até que o
medo o petrifique: redenção ou catástrofe?





Com uma certa indolência, deitada no sofá, o computador em cima de mim enquanto leio, deixo passar o tempo devagar. Que ele nunca passe apressado, roubando partes de mim. Quero-me mortal, sim, degustadora de tempo, amante do fluir que, um dia, me há-de levar para o lugar do nunca.

Sem pressa, dizia, vagueio pelas páginas dos livros, pelos ecrãs. Procuro o que me pareça coisa rara.
Mas não é fácil. Penso que há tanta, tanta gente que escreve que me parece provável que, tal como eu escrevo anonimamente, algumas das pessoas com quem lido diariamente, também o façam.
Talvez a blogosfera não seja formada por um grupo restrito de pessoas que não passa sem escrever nas, sim, por uma amostra da sociedade. É que, ao ler alguns blogues, detecto uma cópia da futilidade que encontro no dia a dia, mais do que a necessidade de escrever. Para já, nunca descubro blogues por mim, sou pouco mais do que blog-excluída. Contudo, volta e meia vou atrás de alguns comentadores que vejo noutros blogs. E fico perplexa. Como daquelas ondas baixas que, junto à rebentação, trazem toda a espécie de lixo que o oceano cospe, assim alguns blogues: insinuam, maldizem, atacam-se uns aos outros ou copiam-se  ou comentam as vacuidades que outros já comentaram. Cansa-me isso e interrogo-me: porque escrevem? Mas vejo pouco mais que a ponta de um imenso iceberg de palavras que se propagam pelos ares: instagram, facebook, twitter, blogues, blogues, blogues. Por cabo ou pelos ares, o planeta deve estar saturado desta imensa cacafonia que por aí circula. E eu, que para aqui estou a falar, contribuo para isso.

Mas o que penso de muitos blogs, penso também de livros. Entro numa Fnac e são prateleiras e estantes cheias de lixarada. As montras da Bertrand a mesma coisa: lixo, lixo, lixo. Muita cor, muita palavra vazia.

No meu dia a dia a mesma coisa: pessoas que só falam de trabalho e que, com ar enfático, dizem que nem deram por ser feriado ou fim de semana. É frequente eu receber mails de trabalho ao sábado, ao domingo. E geralmente nunca é nada de urgente, tudo coisas que, sem problemas, poderiam ser enviadas durante a semana, em horário normal. Porque, mesmo aos dias de semana, é frequente receber mails de trabalho às onze da noite, quando não depois da meia noite.

Acho uma tristeza. São estas pessoas que se vangloriam, como se se lamentassem, que não têm tempo para ler, para passear, para ficar a olhar o mar.

Hoje voltaram a dizer-me que sou desalinhada. Sou. E nem consigo disfarçar. Afirmo-me como sou mesmo que veja uns pares de olhos espantados presos às extravagâncias que digo.

Se ouço toda a gente a dizer que fez e aconteceu, que reviu, validou, e etc, e tudo isto à noite, toda a gente a enviar cenas uns para os outros, eu digo 'a essa hora estava eu a ver as luzes sobre o rio e a ouvir Arvo Pärt'. Silêncio. Para já devem pensar: quem diabo será esse e, de resto, a que propósito vem isso? E já falo no belo do Arvo porque é muito conhecido. Um dia destes ainda digo que, em vez de mails que pouco acrescentam, prefiro ouvir monjas beneditinas. Presumo que a incompreensão seja ainda mais perfeita.

Não é que eu, por vezes, não tenha coisas para tratar fora de horas. Tenho, claro. Mas é a excepção, o frete, não o supremo gozo ou o pratinho de ração diário.

No entanto, volta e meia sou ultrapassada e isso tenho também que confessar. No outro dia, conversando com quem juraria eu ser do mais conservador que à terra deus deitou, confessa ele que agora faz parte de um grupo de teatro amador, que até já participou num espectáculo. Fiquei sem palavras. Perguntei se era coisa a sério, com as pessoas a pagarem bilhetes. Claro que sim!, respondeu-me, Nem nunca tinha ouvido falar em tal grupo de teatro. Dias depois contei aos meus filhos. O meu filho ficou ainda mais passado que eu: foi uma vez, ao engano, ver uma peça. Diz que é do mais surreal, só maluqueiras e palavrões da pesada. Fiquei, de novo, sem palavras.

Por isso, tenho que deixar na minha mente espaço para me surpreender. E tenho, também, que conseguir não fazer juízos precipitados. Mas não é fácil.

Contudo, uma vez que posso escolher, evito tudo o que me parece tóxico, oco, inútil. Vou-me tornando niquenta, pouca coisa me agrada de verdade. Vagueio por aqui e por ali à procura do que me agrade e cada vez é mais raro. Procuro o canto dos índios ou dos pássaros, fontes de água limpa, caminhos silenciosos, a neblina que cobre os rios ou se esconde por entre as árvores, o cheiro do pão quente, a carta que chega, a ausência de disfarces, a generosidade, as palavras puras. De vez em quanto encontro e aí me fixo. Ou, se ando pelas livrarias, escolho livros que me falem do aroma do tempo, do desenho das sombras, da arte de fazer luz, dos enigmas que vivem dentro do nosso corpo, de mistérios que a física há-de um dia descobrir. Coisas assim. Mesmo poesia me vejo aflita para encontrar: não suporto lugares comuns ou versinhos de efeito fácil. Tenho que sentir a fibra e o osso, o sopro e o olhar, a respiração e o toque da pele, o tronco e a raiz, o barro e a pedra, a cor e a doce toada, o bater do coração, a suavidade da mão que se quer carícia, a força do braço que se quer abraço,

Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as ordens dos anjos? e mesmo que um me apertasse de repente contra o coração: 
eu morreria da sua existência mais forte. 
Pois o belo não é senão o começo do terrível, que nós ainda mal podemos suportar, e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha destruir-nos. 
Todo o anjo é terrível.

[Rainer Maria Rilke]


Porque é que não se inventou nunca
um deus da lentidão?

[Peter Handke]


Aquele que um dia ensinar os homens a voar terá deslocado todas as barreiras; para ele, as próprias barreiras voarão pelos ares, e dará um nome novo à terra, chamando-lhe 'A Leve'

[Friedrich Nietzsche]


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E depois estão vocês aí desse lado. Todos os dias. Ao escrever, por vezes, espreito as estatísticas. Estou a escrever e vocês aí. Neste momento, à uma e dez da manhã, oitenta pessoas partilham o seu tempo comigo. Gostava que sentissem que me sinto grata por sentir a vossa companhia.


Portugal - 50; Brasil -12; Estados Unidos - 5; Alemanha - 4; Arábia Saudita -3; Ucrânia - 2; Bélgica - 1; França - 1; Indonésia - 1;  Irlanda - 1


Mas não são números, são pessoas que lêem as minhas palavras, são vocês, Caros Leitores. E eu sinto-me em dívida. É certo que parte do meu tempo é-vos oferecido, parte da minha vida está convosco. Mas não sei se vos agradeço o suficiente. Podem não acreditar mas, mesmo sem vos conhecer, sinto estima por quem está aí, comigo.

Lembro-me das palavras de Cecília de Meireles.
Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!


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As palavras do título são da autoria de Friedrich Hölderlin. As do início do post são de Proust. Todas as palavras em itálico são referidas no livro 'O aroma do tempo', Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora, de Byung-Chul Han. As pinturas são da autoria de pintores orientais (que, dado o adiantado da hora, não vou agora repescar).
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Abaixo encontrarão um vídeo surpreendente. A bem da inclusão.

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1 comentário:

Rosa Pinto disse...

Muito bem. Em relação a trabalho é isto mesmo. As pessoas deixaram de ter prazer em olhar em redor...em falar....em conviver....em ver o rio...vamos ver ao que isto leva.