domingo, abril 03, 2016

Na Pensão Amor


Bom, abaixo já mostrei as Virgens e, a propósito -- bem, a propósito é como quem diz... posso não ser virgem (sou caranguejo, como é sabido) mas sou santinha -- mostrei uma selfie que fiz esta tarde (porque, se também sou filha de deus, também haveria de ter direito a uma selfizinha, ora essa).

E, como lá expliquei, fui à Pensão Amor no Cais Sodré, esse mau pedaço de Lisboa, antro de pecado e perdição. Outrora. 

E também já confidenciei que hoje não estou nos meus melhores dias. Fora eu moça dada às tecnologias e a esta hora já estava com um levezinho iPad nas mãos, estendida, tapada, abafada, escrevendo na boazinha. Mas, como sou avessa a modas e a gadgets, apenas tenho um computador grandão e pesadão que está bem é aqui, em cima da mesa. E, para me chegar a ele, aqui estou eu sentada, sem posição, dores no corpo, olhos meio lacrimejantes, com camisola, casaco, écharpe e meias de lã. 

É vício isto, de escrever aqui à noite, faça chuva, frio ou calor, esteja eu bem, fresca ou nem por isso. Há bocado, quando estava estendida no sofá, tapada até ao pescoço com uma manta de lã, li uma coisa de que gostei e que, acho eu, explica um bocado isto.

Se eu conseguisse, levantava-me e ia ali buscar o livro para transcrever. Mas dói-me tudo, caraças. Que chatice. Bom, vou tentar. (Depois de ter escrito isto ou ia buscar ou apagava o que tinha escrito, né?)

Encontrei. Não tinha assinalado e agora tive que passar os olhos por várias páginas até descobrir.
(...) O meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e dei alguma coisa em contrapartida; li e viajei e pensei e escrevi. Tive uma união com o mundo, essa união especial com o mundo que é a de quem escreve e de quem lê.
Isto pode ser lido no texto 'A minha vida' de Oliver Sacks, no livro 'Gratidão'. Está escrito no passado pois ele tinha sabido, um mês antes, que o cancro tinha reaparecido e que, dessa vez, a coisa era feia. Morreria pouco tempo depois, em Agosto de 2015. 

Mas gostei de ler esta passagem (tal como gostei de ler todo o livro, que é sábio e tocante) porque é aquilo que sinto: tal como quando leio, escrevendo sinto-me misteriosamente ligada ao mundo. Fui agora ver as estatísticas. Neste preciso momento, estão mais de cem pessoas ligadas ao Um Jeito Manso. A maioria é de Portugal, 79 pessoas mais concretamente, mas vejo que está alguém que escreve um interessante blog sobre livros e arte em Espanha, e pessoas no Brasil, em França, na Alemanha, etc. Esta ligação anónima fascina-me. Eu e você, Caro Leitor, estamos unidos, desinteressadamente unidos -- e essa é a melhor forma de união, a que é livre, voluntária, que nada pede em troca, a que se baseia no puro prazer da partilha de momentos. 

Bem, tudo isto para dizer que, tal como nos dias de trabalho quando o corpo me pede descanso, tenho esta vontade de estar aqui, também hoje, em fraca forma e em franco esforço, para aqui estou. Nada nem ninguém me obriga ou, sequer, pede. É mesmo um gosto meu e é pensar que também vos agrada estar aqui comigo.

Com isto tudo ainda não fui ao que aqui me trouxe: a Pensão Amor


Mas vamos com a minha amiga Blanche DeBris que hoje nos traz outra querida, a Sweetpea. São as damas do Burlesco, género que muito me apraz. Deixemos que entrem connosco na Pensão Amor.



Entra-se na Pensão Amor pela Rua do Alecrim. Quase não se dá por ela. Mas é um edifício que deve ter uns cinco ou seis andares. Na entrada uma sala magnífica, verdadeiramente magnífica. A decoração, a música, a frequência, tudo aquilo é um ambiente envolvente, invulgar.

Nestas salas, onde funciona o café, não me ia pôr a fotografar as pessoas que ali estão tranquilamente, conversando - era o que faltava. Por isso, foi apenas de raspão, como quem não quer a coisa, que lá tirei umas quantas, sobretudo ao décor, sem apontar a ninguém -- mas, sem focar, sem flash, claro que não ficaram extraordinárias.


Se eu quisesse reproduzir a música que lá se ouvia, não era nada do género que aqui coloquei, era mais para blues, músicas arrastadas, algo dengosas, sentidas, a alma dolente sob as luzes quentes daquelas salas tão acolhedoras.


Mas as pinturas das paredes das escadas entre andares, o ambiente, aquelas divisões, a sugestão do que, por ali, se pode ter passado, e os nomes das mulheres desenhadas, a Simone, a Esmeralda, a Regina, a Valentina, tudo me sugere os números de burlesco que, de resto, por lá também se anunciam. Aqui já fotografei à vontade.


No entanto, devo dizer que esperava que a pensão tivesse muito mais vida. Apenas o café instalado no piso da entrada pela Rua do Alecrim tem vida. Mesmo a pequena livraria de Livros Eróticos estava fechada.


Anda-se por ali e ninguém. Claro que, apesar de me doerem as pernas e as ancas e sei lá que mais, não resisti a andar a espreitar tudo. Um ambiente quase misterioso.


Parece habitado, há sofás antigos, mesas, uma televisão antiga, pequenos armários com naperons, bibelots de outros tempos.


Talvez pudéssemos ter ficado ali sentados a conversar ou a namorar, talvez a ideia até seja essa, não sei.

Até tem uma sala com um varão, tudo com uma decoração indescritível, cortinas plastificadas que devem reflectir as cores do tecto quando, de noite, os candeeiros se acenderem e houver espectáculo, tudo com cores que parecem que não condizem umas com as outras, uma coisa meio desconcertante. Um lugar que dá vontade que a gente o ficcione.


Quando entrei numa sala interior, com ar decrépito, pareceu-me ouvir bater uma porta e um som não identificável. Até me arrepiei. Saí logo de lá e nem disse nem ai nem ui. O que terá sido? Haveria por lá alguém, numa daquelas salas fechadas?

Depois, quando já vinha em sentido descendente, vinha a pensar que gostava de ter conhecido a pensão nos seus áureos tempos, gostava de ter conhecido a Clarissa, a Valéria e as outras mulheres que consolavam marinheiros, boémios, solitários.


Transcrevo de um artigo sobre o lugar:
Na Pensão Amor ainda há camas, armários, cadeiras e espelhos dos tempos em que o prédio era casa de prostituição. Na verdade, no número 38 da Rua Nova do Carvalho, em Lisboa, funcionavam quatro pensões que alugavam quartos à hora a prostitutas e a marinheiros que atracavam no Cais do Sodré, vindos de várias partes do mundo. Agora, os quartos também podem ser alugados ao dia, à semana ou ao mês, mas a empresas – que nada têm a ver com prostituição.
Quem sobe as escadas da Pensão Amor é surpreendido por uma mulher de pernas abertas. “Valéria vai levá-lo à miséria”, lê-se do lado esquerdo. Nos andares de cima, o cenário é idêntico: “Anita, a mulher por quem o seu coração palpita”, “Clarissa, peitos firmes, bem roliça” ou “Regina, dá um espectáculo que você nem imagina”. Os desenhos e as frases foram pintados nas paredes pelo ilustrador Mário Belém. “Fizemos um concurso e convidámos artistas a recriar cartazes burlescos de cabarets”, explica Queirós de Carvalho. “Este foi o que seleccionámos e ele optou por pintar as frases em português, já que se trata do Cais do Sodré.”
As escadas do prédio mantêm-se desde o tempo em que foi construído, logo após o terramoto de 1755. “Optámos por não arranjar as paredes e deixar as várias camadas de história”, conta Queirós de Carvalho. No segundo e no terceiro andar, os quartos das antigas pensões foram recuperados e funcionam como escritórios e ateliês. 

Contudo, apesar do que leio no artigo, agora não vi lojas nem ateliês, nem salões de cabeleireiro. mas vi divisões fechadas, só se for aí e, por ser sábado de tarde, estavam fechadas. Não sei.

Seja como for, gostei de ter visitado e fiquei com muita vontade de lá voltar, ficou a apetecer-me estar lá sentada a beber um chá bem apaladado ou um sumo fresco, ou um fumegante café, espreitando pela janela, olhando em volta, ouvindo música.

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Se não se importam, vamos agora com a Julie London: Cry me a river



                                       Tempo de dança num vago compasso de bela toada
                                       fecha solene a última festa do longo inverno.
                                       Chove de novo na húmida noite gelada de abril*;
                                       nada faria prever o perfume da música nova.

                                       Vejo agora teu rosto no espelho da sala dourada;
                                       luzem teus olhos ao brilho das velas nos lustres acesos,
                                       quando de novo a orquestra entoa a música nova,
                                       sempre que soa no brilho da sala a triste gavote.

                                       Música minha alheia não soa às árvores altas:
                                       ramos e folhas ondulam à chuva na escura montanha,
                                       cantam por mim o que vejo ao ver-te no límpido espelho,
                                       hoje que mais do que nunca rebrilham teus olhos brilhantes.

                                       Pena seria portanto perdermos a última dança;
                                       ambos sabemos que vêm vazios compassos de espera,
                                       logo que raie daqui a minutos a pálida aurora,
                                       ela que traz como sempre o ocaso dos nossos amores.


[Poema 3 de IV de Frederico Lourenço in 'Clara Suspeita de Luz'. *No original é Março ou é que mudei para Abril]
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Por sugestão de Rosa Pinto, em comentário abaixo, silêncio que se vai cantar o fado:

Xaile encarnado -- Aldina Duarte

Fragmento do filme A Religiosa Portuguesa. 
Diretor - Eugéne Green

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Se tiver energia (coisa que me parece pouco provável) ainda cá voltarei com a reportagem do outro sítio por onde andei (a custo) neste sábado à tarde.
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Entretanto, convido-vos a continuarem o passeio, descendo até ao post seguinte, para verem as Virgens que habitam estes lugares (e uma selfie minha, à mistura).

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2 comentários:

Rosa Pinto disse...

Ouvi...e fiquei calada o resto da noite.

Eu tenho um xale encarnado
É uma lembrança tua
Tem um segredo bordado
Que ás vezes eu trago á rua

Tem as marcas de uma vida
Que a vida marca no rosto
Mas ganha uma nova vida
Nas noites que o trago posto

Já foi lençol e bandeira
Vela de barco, também
Tem marcas da vida inteira
Mas dizem que me cai bem

Se pensas que me perdi
Nalgum destino traçado
Pr?a veres que não esqueci
Eu ponho o xaile encarnado

Aldina Duarte (canta)

Um Jeito Manso disse...

Olá, Rosa Pinto, bom dia!

A Aldina já lá está na Pensão Amor (no post). Obrigada pela dica, acho que, de facto, estava ali a faltar um fado e a Aldina tem aquela vida perdida na voz que a torna única.

Um bom domingo para si, Rosa!