quarta-feira, março 02, 2016

Já a nossa vida não tem alicerces





Noite que me apetece de silêncio. 

Não há assuntos na política nacional que me motivem. O governo está a começar. Há que lhe dar tempo para se instalar, conhecer os cantos ao país, organizar-se. Um ou outro tropeção são normais, há que não dramatizar. Até agora nada de grave, as intenções são boas, o rumo é o correcto.

A oposição está gasta, é um saco vazio. Gastas as figuras, gastas as ideias. Não consigo ouvir aquela gente, tudo aquilo é nefasto.

E, se não quiser falar em política e me virar para o dia a dia, ou me deito a efabular ou a deitar perfuminhos no ar, ou, se olho para o que se passa à minha volta, o que vejo a toda a hora é que a vida de tantas pessoas é uma angústia, uma verdadeira angústia. Por exemplo, hoje à hora de almoço ouvi na rádio uma senhora que se queixava de que o edifício onde trabalhava, com amianto, lhe causava alergias e que de vez em quando estava de baixa. E que, além disso, lhe tinha aparecido um cancro. E que vários colegas estavam também com problemas de saúde, já para não falar nos que tinham morrido. E eu ia a ouvir isto com uma crescente tristeza. E só pensava, com espanto, como é que a senhora conseguiu falar o que falou sem estar lavada em lágrimas. Em condições normais, humanas, uma pessoa, perante uma situação daquelas, largava aquele emprego e ia trabalhar para um sítio onde se sentisse bem. Mas a situação que se vive (por todo o lado, não apenas aqui) é de tal ordem que uma pessoa, mesmo nestas circunstâncias, continua a trabalhar num lugar que lhe dá cabo da vida. Ouvi que vão agora fazer obras no edifício mas, pelos vistos, foi necessário que várias pessoas tivessem chegado a estados limites para que alguém achasse que era preciso fazer alguma coisa, Ora isto não é uma sociedade humana, é um grupo de estúpidos, de gente cretina. Em contrapartida, há sempre dinheiro para injectar nos bancos. E o jornalismo acéfalo -- que se precipita de microfone em punho para ouvir as asneiras que diz um sujeito que devia estar escondido durante anos (para ver se a gente se esquece do que andou a fazer ao longo de quatro anos e que por aí anda armado em importante) -- raras vezes  documenta o que de mau (e de bom!) existe por aí, raras vezes faz investigação ou reportagem, raras vezes indaga das aspirações das pessoas, das suas condições de vida, dos seus sonhos e sobressaltos,  ou seja, raramente se interessa pela vida das pessoas.


Mas, se olho para fora, ou me foco no espaço e aí facilmente me deixo levar pelas boas ondas, ou, se me detenho no que se passa com os humanos à solta nas camadas terrestres, fico igualmente desmotivada.
  • A situação nos EUA é deprimente, aquele regime parece cada vez mais duvidoso tal a iliteracia e incultura, e de tal forma grande parte da sociedade está capturada pelos interesses da indústria da guerra, da indústria farmacêutica, da indústria do petróleo, etc, e aquilo a que se assiste não parece próprio de um grande país democrático. 
  • A União Europeia é uma carroça desconjuntada, descomandada. 
  • A situação na Síria e arredores é um pavor -- e sabemos quem ajudou à festa. 
  • África é um desconsolo: corrupção, pobreza, uma crise permanente, escravos ainda. 
  • O Brasil é o que se sabe, um país imenso e sempre envolto na nebulosa da corrupção e de uma crise que se reinventa e se regenera. 
  • E a China e a Rússia... 
  • ... e, por todo o lado, um latejar de problemas de toda a espécie. 
Mas é tudo de tal forma incomensuravelmente problemático, tudo tão descontrolado, tão irremediavelmente desregulado, tão imenso e fora da esfera de acção individual que ou nos afogamos em desespero ou nos alheamos. 

E eu, a esta hora, por mais que queira mostrar a minha preocupação, já não consigo dizer nada, parece que nada que eu diga está à altura do que queria dizer. Nem, neste momento, tenho capacidade para fazer opções, acho que nem sequer para pensar direito. Estou cansada. Só me apetece paz, palavrinhas boas, gestos amigos, saltos de pássaro feliz.

E, por isso, com vossa licença, deixem-me mergulhar em poesia.
Devagar, devagar. 


Já a nossa vida não tem alicerces: pássaro sem nexo,
ela conduz-nos a qualquer lugar e também
não nos faz promessas. Deixa andar.
Todas as coisas serão finalmente reconduzidas
à sua própria dimensão
e nós próprios, melhor será não esperarmos nada
e agradecermos qualquer gesto de amor ou qualquer acto de camaradagem,
como se realmente o não merecêssemos, dádiva esplendorosa e gratuita
da nossa vida sem alicerces.

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Tu estás aqui

Ruy Belo





E criar, sonhar, fazer: Zaha Hadid

A arquitectura escultura



Vídeo feito para a disciplina História da Arquitetura IV do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie



 E voar. Apetece-me tanto voar, tanto.


Una Noche con Kylián (Sleepless, Petite Mort, Sinfonía de los Salmos) - Compañia Nacional de Danza no Teatro de la Zarzuela de Madrid
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As esculturas de vidro e luz são da autoria de  Michele Gutlove

O 'Poema dos alicerces da nossa vida' é de Luís Filipe Castro Mendes in 'Outro Ulisses regressa a casa'

 Lá em cima, da autoria de Biagio Marini: Passacaglio in G numa interpretação de Andrew Manze

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.

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3 comentários:

Pôr do Sol disse...

Tem toda a razão Jeitinho. Há dias assim, nada nos motiva.

Por vezes penso que o Mundo enlouqueceu. Quando oiço gente defender aquele candidato americano,que só consigo chamar-lhe trampa, e terem esperança que ele faça algo de bom ainda me convenço mais de que está tudo louco.

Educamos os jovens em principios e valores e depois encontram um mundo onde só o contrário parece normal. Hoje contava-me uma sobrinha que arranjou o seu primeiro emprego há uma semana e andava feliz da vida, que foi abordada por uma colega que a "avisou" Menos entusiasmo, Não os habitues mal, pois serás tu a prejudicada. Fiquei chocada. O que é isto? Sei que é inteligente e que conseguirá contornar a situação, mas e o seu equilibrio não ficará afectado?

Vamos esperar que logo, quando o Sol brilhar de novo, tudo nos pareça melhor, vamos olhar só para as coisas boas, sentirmo-nos com força para pudermos transmitir fé e esperança aos que agora começam a sua luta, sem sermos acusados de os termos enganado com um mundo cor de rosa.

Mesmo virtual, permita-me um abraço solidário.

ECD disse...

Já agora a propósito da noticia sobre o amianto no edifício da Segurança Social em Vila Franca de Xira. Sem um "golpe de asa" as declarações do ministro Vieira da Silva. Sem uma palavra de conforto para os trabalhadores, sem nada. "Fechou-se" num patético discurso burocrático.

Rosa Pinto disse...

Uma época sem sabor. Depressiva. Tudo em volta fede. Nada anima. Será assim? Ou é a alma do fado que entranhou e só vimos desgraça? Valha.nos a UJM.. espreitar...lavar a vista e a alma.