sábado, julho 05, 2014

Não sei se vos agradeça, se vos esclareça







As vossas palavras são de uma simpatia enorme e eu sinto-me agradecida mas a verdade é que fico sempre na dúvida se devo senti-las como merecidas ou se devo esclarecer que é tudo uma ilusão. 

Não me tomem por falsa modesta mas isto é mesmo uma questão que me acompanha desde sempre.

Quando eu era pequenina, três ou quatro anos, acho que já o contei e temo até que me achem repetitiva, já sabia ler. Uma vez, estando no consultório com o meu pai para uma consulta de revisão à clavícula que tinha partido (tenho ideia que a minha mãe, sendo professora, tinha mais dificuldade em faltar ao trabalho do que o meu pai), e estando a sala de espera cheia de gente, olhei para uma porta de madeira alta que tinha uma placa em cima, e perguntei-lhe, 'Pai, se isto é um consultório porque é que diz ali residência?'.

As pessoas ficaram pasmadas e quiseram confirmar se eu sabia mesmo ler e queriam que eu lesse revistas e eu tenho nítida memória de me parecer que o meu pai estava incomodado. Não percebi bem a expressão dele e fiquei a pensar que tinha cometido alguma falta, que não deveria ter revelado que sabia ler.

Nunca me lembro de ser tratada como se fosse diferente ou de sentir que tivesse um valor especial e, pelo contrário, sempre fiz algum esforço para não parecer que sabia mais que os outros. De resto, sentia-me sempre mais atraída por aqueles que faziam diabruras do arco da velha do que pelos bons alunos que achava invariavelmente que eram uns chatos.

Quando andava no liceu era muito boa aluna, várias vezes a melhor aluna (coisa que só sabia quando recebia prémios pois não ligava a mínima a isso). Talvez por causa disso, no último ano, participei num concurso na televisão. Fui metida nisto por professores e colegas e, no meio da maior descontração e com a perspectiva de ir conhecer os meandros da televisão e outras gentes, lá fui.

Tudo me entusiasmava, os bastidores, a maquilhagem, os outros participantes, os apresentadores mas, quando as gravações começavam, parece que entrava num estado estranho. De cada vez que saía uma pergunta para mim, a minha cabeça parece que levava uma pancada e eu entrava como que em piloto automático. O tempo de resposta era limitado e, por mais complexas que fossem as questões, eu respondia quase sempre certo. Depois, quando me diziam que estava certo eu ficava até admirada e, se tentava reconstituir o raciocínio para lá chegar, via-me aflita e levava muito mais tempo. Era como se alguém me tivesse ditado a resposta e, por um bambúrrio de sorte, acertasse quase sempre. Contudo, a verdade é que, por essas alturas, ganhei fama de ter uma inteligência rara e na rua as pessoas davam-me os parabéns e diziam-me coisas elogiosas. Todo esse tempo eu sentia vontade de dizer que não me dessem os parabéns porque eu tinha acertado sem saber como e que, portanto, não tinha havido mérito mas sorte.

E é um bocado isto que ainda sinto. Não me esforço nada para escrever o que aqui lêem. Não penso antes de escrever e, a bem dizer, também não penso enquanto escrevo. Parece que os dedos vão escrevendo e a cabeça limita-se a ir acompanhando. 

Por isso, tenho também sempre o receio de vos andar a enganar a meu respeito. E tenho receio que esta sorte que me tem acompanhado um dia me abandone.

Ontem o meu bebé mais lindo, o pequenino, foi submetido a uma pequena intervenção cirúrgica. Foi corrigir um entupimento num canal lacrimal, coisa simples. Não tendo o canal bem aberto, volta e meia andava com uma lagriminha no canto do olho. Era o menino da lágrima, como na brincadeira lhe chamavam. A intervenção foi coisa de um quarto de hora, para aí, mas ser sedado é que era chato, tão pequenino ainda. Às sete e picos da manhã os pais lá foram com ele para o hospital, vindo cá deixar a casa a maninha, que vinha ainda de pijama, meio a dormir. Por isso, de manhã, antes de ir trabalhar, vestia-a, dei-lhe o pequeno almoço, deixei-a brincar um bocadinho e fui levá-la à escola. A seguir fui ter uma reunião. A meio da manhã já estava a receber um sms com uma fotografia dele no hospital, já acordado, bem disposto. Mas na véspera e no dia, até saber que estava tudo bem, estava um bocado ansiosa. Tento pensar que é coisa simples, sem problema, mas descansada, descansada fico depois de as coisas passarem. À noite, quando o fomos ver a casa, depois de ter dormido uma sesta maior do que o habitual, estava com as pilhas todas, corria, metia-se com a irmã, fazia tropelias, numa alegria, parecia que não tina sido nada com ele. Por isso, ontem cheguei a casa mais tarde e, depois de um dia extenso, estava mesmo cansada. Hoje vejo o que ali escrevi e a quantidade de imagens que inseri e os vídeos e mais não sei o quê e fico admirada comigo própria: cansada, tendo dormido menos de 5 horas, como consegui eu fazer aquilo? Mas fiz e não tenho ideia de me ter esforçado. Identicamente, na véspera, estando eu inquieta pelo que se ia passar no dia seguinte com o meu bebé querido, como consegui estar, ao mesmo tempo, a escrever sobre o amor e sobre mais não sei o quê? Não sei. Fico admirada. Por isso, como sentir que os elogios me são devidos quando aquilo parece que se fez sozinho?

É como quando fazia carpetes de Arraiolos. Se viessem cá a casa ficariam admirados. Tenho várias carpetes e in heaven a mesma coisa, e não são desenhos simples. Como pude eu fazer tudo aquilo?

Penso que também já o contei: quando um colega meu veio cá a casa e viu todas as grandes carpetes, não acreditava que tivesse sido eu a fazê-las. 'Mas quando vou ao seu gabinete não a vejo a fazer isto... Quando é que as faz?' Também não sei. Mas elas cá estão.

Se calhar, enquanto eu dormia, elas iam-se fazendo sozinhas (tal como quando escrevo a dormir).

Várias vezes me sugerem que eu reúna os melhores textos e publique um livro. Não estou nem aí mas, mesmo que estivesse, alguma vez eu teria tempo ou paciência para ler tudo o que escrevi...? Nem pensar. Nem consigo acreditar que escrevi tudo o que para aqui está. 

Já sugeri ao meu marido que se desse a esse trabalho nem tanto para um livro mas apenas para organizar mais ou menos tanta tralha que para aqui está mas ele vira-se para mim, sem acreditar que eu esteja a falar a sério, e remata o assunto: 'deves estar é mas é maluca'. 


Fico contente por vocês, meus Queridos Leitores, gostarem mas, a sério, não sei se isto se vai manter porque, mesmo que ainda não me tenha dado na veneta partir para outra, sei lá se um dia destes chego aqui e me sinto vazia, sem uma única ideia, sem vontade de escrever. Sei lá se os deuses que me acompanham não vão um dia para longe de mim? A sério. Não pensem que estou a fazer género, armada em tadinha. Penso mesmo que mérito mesmo e elogios merecem as pessoas que se esforçam, que têm trabalho a sério, que escolhem bem as palavras, que têm atenção à construção das frases, não eu - em que isto é meia bola e força. Ou nem isso. É deixar os dedos fazerem a sua própria coreografia sobre o teclado.

Bem. Isto era suposto ser um agradecimento e saíu esta conversa toda, o costume. Mas, não me levem a mal, agradeço as vossas palavras simpáticas, dão-me ainda mais vontade de para aqui vir pôr-me à conversa convosco, mas não sou tão especial como alguns julgam que sou. Sou normalíssima, do mais normal que há e só espero nunca vos maçar ou desiludir. E haja saúde.



E chega mas é de conversa: vamos é bater perna.


___

  • Lá em cima é Getting some fun out of life numa interpretação de Madeleine Peyroux
  • As flores foram fotografadas em Raios X
  • O bailado é uma coreografia do meu muito admirado Jiri Kylian para a Nederlands Dans Theater - The Chase de Joseph Haydn - Symphony 73 "The Chase" - Presto


___

Sem comentários: