domingo, janeiro 05, 2014

Morreu Eusébio e o mundo do futebol está de luto. E as televisões, de forma compulsiva, não têm falado de outra coisa, parecendo querer criar um doentio ambiente de comoção colectiva. Mas eu, que não sou boa a fazer obituários, nem sei de palavras compungidas para lhe dedicar, reflicto antes sobre o perverso mundo do futebol





Sabem os meus Leitores que não sou dada aos mundos do futebol e que os seus ases a mim pouco me dizem. Não me lembro de os ver ou ter visto em acção, não presto atenção às suas movimentações entre clubes, não sei quais os seus pontos fortes e fracos.

Apenas os distingo pela sua beleza ou aparência de virilidade. Já aqui falei do Zidane, do Bruno Alves: gosto de os ver (gosto ou gostava porque um acho que já não joga e outro anda por fora).


Mas, é claro, sei bem quem foi o Eusébio, a fabulosa Pantera Negra, e sei bem como é uma figura em torno da qual se ergue a unanimidade dos portugueses. Ou seja, sei que é um símbolo nacional.


Ora, o que me interrogo hoje - quando as televisões parecem não ter outro assunto, uma coisa obsessiva, doentia, e toda a gente recorda quando o viu, quando falou com ele, e tudo o mais que, nestes coros de RIP, sempre se diz - é o porquê de tudo isto.

Claro que o futebol mexe com as emoções das pessoas e é também claro que as pessoas, hoje em dia, se sentem carentes, órfãs (talvez porque a segurança que atribuíam ao Estado tem vindo a ruir) - e isso, só por si, talvez possa explicar o ataque quase apopléctico de emoção colectiva que as televisões parece quererem estimular.

Mas o que me parece que também acontece com o Eusébio é que foi alguém que personifica a fidelidade absoluta a um clube, a um ideal, um símbolo de dedicação total a uma causa - coisas raras nos tempos de globalização e futilidade que vivemos. 


Que eu saiba, Eusébio sempre jogou no Benfica e, até ao fim, vimo-lo associado ao Benfica e ao futebol português. Do que eu sei, apesar da sua grande qualidade, não se vendeu, não se deixou mercantilizar. É certo que, nos seus tempos áureos, talvez não houvesse este mercado activo que hoje cerca os futebolistas. 


Mas, seja como for, sempre o vimos a acompanhar os jogos do Benfica e os da Selecção. Uma presença simpática e dedicada, uma vida inteira a acarinhar os seus.


(Já o mesmo tinha acontecido com Amália que se manteve fadista e artista portuguesa, a viver em Portugal, até ao fim e que, quando partiu, desencadeou também uma comoção generalizada.)

Nestes tempos apátridas, não faço ideia do que é que ainda confere identidade a um clube, tanta a troca, a compra e venda de jogadores e as trocas de treinadores, não sei porque é que as pessoas são do Benfica e não do Sporting ou vice-versa.

Revêem-se em quê, em quem? Os jogadores chegam de outros clubes, outros são emprestados, outros são vendidos e ora jogam num clube, ora no clube rival, ora partem para outros países, ora regressam quando são mais velhos para outros clubes que não aqueles de onde partiram.

Há uma mercenarização que a mim me incomoda.

Parece que esta gente do futebol vive alienada das suas raízes e que não conhecem outros valores que não os do dinheiro.

O mundo do futebol, não fora as verbas milionárias envolvidas, parecer-me-ia um mundo de negreiros e escravos. Não me agrada nada. Devo até dizer que me causa um certo asco.

Os jogadores são autêntica carne para canhão, fazedores de dinheiro, proporcionadores de comissões, alimentadores de franchisings, embaixadores de marcas comerciais. Têm agentes que os conduzem ao longo desse percurso apátrida e, pelo meio, vão jogando futebol, ora aqui, ora ali.

Além do mais, saber que os grandes clubes - que compram e vendem jogadores por milhões - são, depois, grandes devedores ao fisco e que, enquanto um qualquer zé ninguém, se não paga uns tostões de impostos, vê a sua vida devassada e o seu ordenado penhorado, os clubes são contemplados com perdões fiscais, revolta-me.

E o que há que reconhecer é que Eusébio, que eu saiba, nunca se deixou envolver em esquemas, em jogadas, em manobras, em compromissos espúrios. E nisso, concordo, é o símbolo de um futebol-desporto que já não existe e do qual, talvez sem o perceberem, as pessoas sintam saudades.

Ou seja, hoje, para além do que resulta da manipulação da psicologia de massas (as televisões dão ininterruptamente testemunhos, choros, recordações, imagens de pessoas que vão deixar flores, cachecóis - um exagero), penso eu que, nesta manifestação colectiva de pesar pela morte de Eusébio, há muito de reconhecimento por essa pureza de princípios, pela singeleza, pela lealdade a uma causa, a uma casa.


De resto, custa-me ver como as pessoas mais depressa se mobilizam para chorar os que morrem do que para lutarem pelos que vivem - mas isto é bem capaz de fazer parte da idiossincrasia lusitana.

*

9 comentários:

Anónimo disse...

é o que digo, sem ofender a memória do Eusébio, uma análise objectiva da situação.

MCP disse...

Já hoje, ao ver todo o protagonismo que as televisões têm dado à morte de Eusébio e a romaria que as pessoas têm feito, tudo um exagero, eu disse o mesmo, para defenderem o que lhes estão a roubar não se movimentam tão rapidamente!!! Mas enfim...os portugueses são assim!!
Desejo-lhe uma boa semana.
MCP

Um Jeito Manso disse...

Caro Anónimo,

Sempre tive simpatia por Eusébio e hoje senti pena quando soube da sua morte. Mas daí a este choro colectivo com as televisões a darem coisas sobre isso de manhã à noite? E faço ideia com o funeral...? Acho que o vão seguir em directo. É um exagero. E as pessoas embarcam neste luto exacerbado esquecendo-se de tudo o resto, quer o que é o mundo do futebol, quer o que se passa à sua volta.

É o que somos.

Um Jeito Manso disse...

Olá MCP,

Pois é. Um povo que embarca em tudo que é pranto colectivo. E parece que se sabem que estão lá as televisões, ainda vão mais para os sítios onde o choro se torna quase contagiante. E, enquanto estão nisto, estão esquecidas de tudo o resto. Faz-me impressão.

Mas tem razão: é a alma portuguesa...

Beijinhos MCP! Um bom dia para sim!

Anónimo disse...

Enquanto o povo vai chorando a morte do grande futebolista, que foi Eusébio, a canalha que nos governa, silenciosamente e a rir-se, esfregando as mãos de contentes, decide aproveitar a oportunidade para aplicar mais uma subida do CES, da ADSE e de outras tantas pulhices. Como se nada fosse, nada tivessem decidido, plantam-se no funeral, com ar triste, parecendo estar em sintonia com os adeptos e simpatizantes do futebolista. Mas não estão. São escroques do pior, gente venal, que cobardemente, desavergonhadamente, se aproveitam das circunstâncias, no caso, da manipulação dos “media” sobre o acontecimento trágico, para atacarem, uma vez mais, os “suspeitos do costume” (funcionários públicos, pensionistas, reformados, etc). Com a benção do reformado do Banco de Portugal (há quem o tome, ou toma-se ele próprio, PR, mas se recusou receber o salário correspondente ás funções que aparentemente exercerá, ficam-me dúvidas) a viver temporariamente em Belém (essa figura patética que em tempos teve dúvidas sobre os ataques aos salários dos funcionários públicos, mas que hoje já as dissolveu).
Morreu um grande futebolista, um homem simples e bom. As hienas do governo agradecem e aproveitam a oportunidade para praticarem mais umas tantas maldades sobre aqueles que já tinham espezinhado. Uma corja, como diria Camilo.
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Que Eusébio foi uma pessoa que, pelo seu mérito profissional e pela sua maneira de ser, congregou o carinho dos portugueses, disso não há dúvida.

Agora já me parece excessivo o luto carregado das televisões a passarem reportagens em directo e testemunhos de meio mundo, como se, de repente, não houvesse mais nada à superfície da terra. E ver os figurões do costume a pairar sobre a onda mediática incomoda. Há uma nítida manipulação das emoções populares.

Enfim.

JCC disse...

Nada percebo de futebol. E não tenho vergonha. Simplesmente não me diz nada, embora goste de ver um bom jogo. Mas, como me não identifico com nenhuma das equipas, a emoção que o faz viver passa-me ao lado. Dito isto, lamentei a morte de Eusébio e enojei-me com o escarcéu mediático. E dei por mim a pensar: para quando a beatificação? E a santificação? Os três milagres necessários não demorarão. Sugiro três: o Benfica ganha o campeonato; a Troika vai embora; o Passos perde as eleições.

Um Jeito Manso disse...

José Catarino,

Cheguei ao fim do seu comentário e soltei uma gargalhada de gosto. Essa é boa.

Olhe em verso:

E dei por mim a pensar:
para quando a beatificação?
E a santificação?
Os três milagres necessários não demorarão.
Sugiro três:
o Benfica ganha o campeonato;
a Troika vai embora;
o Passos perde a eleição.


Troquei a sua última palavra. estava no plural mas, para versejar, podei-a e ficou no singular.

Um abraço!

JCC disse...

Melhorou muito. E eu tenho de ma acautelar com as rimas e assonâncias. Mas, que fazer? Estão- me na massa do sangue!
Um abraço.