sábado, setembro 22, 2012

Lídia, a mulher triste, começa a renascer (e, em aparte, a propósito de dia 21 de Setembro ser o Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer, uma breve nota sobre a demência de Gabriel García Márquez, o Gabo de cuja memória tantas histórias maravilhosas nasceram e, ainda, um filme tocante de André Oliveira)


Música, por favor



[I will be back - de Gabriel Yared da banda sonora do belo filme "The English Patient"]


*

Ao fim de umas três semanas, Lídia começou a voltar a si. 

Menos cansada, mais tranquila, Lídia recomeçou a pensar na gestão das suas responsabilidades e do seu tempo. Sobre os dias que ficaram para trás terá dificuldade em contar como o passou. Olha esse período como uma realidade vaga, indefinida, talvez fosse dos comprimidos, talvez fosse do estado de exaustão total a que tinha chegado. Dormiu, arrastou-se, medicada, indiferente, distante. 

A segunda empregada, a Nita, foi uma ajuda preciosa. Nita, embora de aspecto não muito robusto, é, na verdade, uma mulher de fibra. Trabalha quase sem parar, tem força como um animal de carga, pouco dorme, esperta, desembaraçada. 




Foi ela que, embora tendo pouco tempo livre, se ocupou da recuperação de Lídia. Levou-a ao Centro para tratar da baixa, foi com ela ao multibanco levantar dinheiro, levou-a às consultas no hospital, via o que havia para comprar, orientava as coisas em casa, articulava-se com a D. Fátima para a hora do almoço, assegurava que Lídia tomava os medicamentos, descansava. Lídia, dócil e indiferente, obedecia. A outra dizia-lhe deixei alarmes no seu telemóvel (que entretanto aparecera, descarregado, e caído debaixo da cama da mãe) para as horas em que tem que tomar medicamentos e está tudo escrito num papel na cozinha. E Lídia fazia o que devia. Nita combinava com a D. Fátima o tratamento da mãe de Lídia e Lídia quase não saía do quarto, dormia, olhava janela. Ouvia a mãe a falar, a gritar, a chamar, mas não a afectava, era como se a demência da mãe estivesse a ocorrer algures, num outro lugar, num outro tempo.

Nita dormia no sofá da sala. Quando saía ainda quase de madrugada, os lençóis e o cobertor já tinham desparecido e já deixava a mãe de Lídia lavada, de fralda limpa, bem arranjada, e, na cozinha, tudo separado para o pequeno almoço. 




Perto das dez da manhã aparecia a correr para levantar a idosa e saía logo de seguida para ir trabalhar numa outra senhora.

Quando voltou a ela, Lídia começou a fazer contas e ficou assustada. Pensou em que despesas poderia cortar para o dinheiro lhe dar para este novo encargo. Chegou à conclusão que o melhor era mandar Nita embora dentro de pouco tempo. Depois pensou que poderia levantar alguns certificados de aforro que ao longo da sua vida tinha ido poupando. À noite conversaram. Lídia explicou a situação de aperto financeiro e Nita mostrou a sua desilusão, tinha pensado que Lídia ia continuar a precisar dela, o dinheiro fazia-lhe tanta falta e preferia dormir lá do que, de favor, em casa da mulher do irmão. Em conjunto, abertamente, conversaram e chegaram a um acordo. Nita disse que, além do mais, Lídia deveria agora pensar em si própria, deveria ver que o que lhe tinha acontecido era resultado de excesso de preocupação, excesso de trabalho e de muita falta de descanso e que, para não voltar a acontecer, era melhor que continuasse a ter alguma ajuda. Lídia concordou. 

Um dia, Lídia viu-se ao espelho e descobriu que estava ainda mais velha, magra, triste. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto enquanto se via assim, cabelo baço, cheio de pontas, nem curto nem comprido, mal arranjado, raízes brancas, toda ela uma sombra do que em tempos sonhou ser. 

Uns dias depois, quando Nita chegou à noite, antes de ir tomar banho, disse-lhe hoje vou cortar e pintar o meu cabelo que bem precisa. Lídia admirou-se, aqui em casa? e fica bem? Nita riu-se, nem bem, nem mal, mas é o possível, não tenho tempo nem dinheiro para outra coisa. Lídia disse, era o que eu precisava. Nita, o ar despachado de sempre, riu de novo, se quiser, trata-se já disso.

E, assim, passado um bocado estavam as duas mulheres na casa de banho, Lídia sentada numa cadeira de cozinha, toalha pelos ombros e Nita de tesoura em punho, então como vai ser, madame? E Lídia, já sorrindo, olhe, faça como lhe parecer melhor. E Nita cortou-lhe o cabelo à altura do queixo, depois quando ia a pôr a tinta, disse, vou é pôr a mesma que ponho a mim, não tenho outra, vai ficar quase loura. Lídia sobressaltou-se, ai, isso não, loura não, vou lá agora aparecer loura, o que é que vão dizer? nem pensar, que vergonha, onde é que já se viu, eu loura.

A outra deu uma gargalhada, ai isso é que é um grande problema… O que as pessoas vão dizer… oh oh… Olhe D. Lídia, quem gosta de dizer mal, diz mal de tudo, deixe lá isso. Se aparecer aí feita uma velhinha vão ter pena de si, se aparecer loura, vão dizer mal. E o que é que a senhora quer? Prefere que tenham pena ou que digam mal? Olhe, eu cá não gostava nada era que tivessem pena de mim. Deixe-se disso, não pense no que dizem ou deixam de dizer. Vamos ficar com o cabelo da mesma cor e vamo-nos rir disso.

Lídia sorria com a perspectiva mas, ao mesmo tempo, tinha medo, sempre aquele medo. Medo e vergonha. Como é que podia voltar ao emprego toda loura?, que vergonha, iam-se todos rir dela.

Mas Nita sossegou-a, vá, deixe-se disso, se não gostar de se ver, logo muda, até lá não vai voltar ao trabalho de certeza. Já alguma vez mudou de cor de cabelo?

Lídia disse que não, nunca, e pensou que também não pintava os lábios para não dar nas vistas, não fossem as pessoas ficar a pensar coisas, e também não usava roupa muito colorida com medo que a achassem gaiteira, e tantas coisas inofensivas e banais que não usava e não fazia por medo da opinião dos outros, por falta de motivação, por tudo.

Nita, decidida, declarou, então hoje vai ser a primeira vez. E assim foi. Enquanto ambas esperavam que a tinta actuasse, Nita perguntou a Lídia, ar de brincadeira, e a madame faz nails? Lídia não percebeu. Quer que lhe pinte também as unhas? E, num ápice, foi à mala e trouxe um verniz, rosado. Menos mal, era discreto. Lídia deixou que a outra lho aplicasse. 

Sentia-se quase uma menina. Pela primeira vez em muitos anos sentia o gostinho da irreverência, da ousadia, parecia ela que estava a fazer qualquer coisa de proibido, de extraordinário. E sentia um nervoso no peito, e se me fica muito mal? não me estou a ver loura. Nita ria, então já vai ver, já não falta muito. E, com isto, já passava das onze da noite e Lídia pensou, mas que energia a desta mulher, daqui a nada já tem que estar a pé e aqui anda, toda bem disposta. 

Nita tinha-lhe contado que estava separada, que o ex-marido era um marialva de trazer por casa, sentava-se à mesa e queria ser servido como um nababo, chegava a casa tarde e era para pôr defeitos em tudo, saía à noite para ir para os copos com os amigos e aparecia em casa já fora de horas a cheirar a tabaco e a cerveja, quase não dava dinheiro para a casa e olhe, fartei-me, pu-lo a andar, foi complicado e difícil mas foi o melhor que fiz, que aquilo já não era nada. Que aí tinha ficado difícil manter a casa, cada vez ganhava menos na imobiliária, as pessoas compravam cada vez menos casas, e que, quando a imobiliária fechou, toda a vida andou para trás, que tinha tido um dos maiores desgostos da vida quando tinha tido que entregar a casa, um desgosto, uma casinha de que eu gostava tanto, tive que me desfazer d, dos móveis, de tudo, que desgosto. E que o outro desgosto foi quando teve que mandar o filho para Angola, para o pé do meu irmão, que também teve que ir para lá trabalhar, que cá não tinha trabalho, e eu já não conseguia sustentar o meu filho e pagar-lhe os estudos e assim, lá, fica em casa do meu irmão, trabalha com ele, e estuda à noite, mas custou-me tanto, um desgosto eu não poder ter o meu filho comigo. Mas depois de dizer isto, sorriu, orgulhosa, mas vou-me levantar, vou refazer a vida e o meu filho há-de estudar, há-de acabar o curso, e não há-de passar necessidades, até porque o meu marido lhe manda dinheiro todos os meses e eu ainda consigo tirar um bocadinho para uma poupança que estou a fazer para ele, no banco. E com ar maroto acrescentou, e se quer saber, até já ando a catrapiscar lá um da segurança de um escritório onde faço a limpeza. 

Quando já tinha passado o tempo, tiraram a tinta, lavaram o cabelo. Lídia estava nervosa, sabia que não ia gostar de se ver, sabia que ia ter vergonha de sair à rua, estava arrependida. Com a toalha à volta da cabeça ganhava coragem para se ver. A outra ria-se. Finalmente, Lídia puxou por uma ponta, deixou cair a toalha nos ombros. Deu um grito surdo, fechou os olhos, cobriu a cara com as mãos. A outra riu, mas então que susto foi esse? está assim tão mal? Lídia estava aflita, aquele medo que lhe oprimia o peito outra vez presente. A outra olhou-a no espelho. Mas, afinal, que grito foi esse? Pensei que lhe tinha caído o cabelo todo…! Mas está bem, parece outra, mais bonita, mais nova, nem tem comparação. Deixe cá ver o secador que já lhe dou aí um jeito.

Lídia sentiu que as lágrimas lhe escorriam. Uma mistura de sentimentos, uma sensação de ridículo, ridícula ela, quase loura com a idade que tinha, a pintar o cabelo com a mãe doente, e ridícula por estar a chorar por causa disso e, ao mesmo tempo, também infantilmente emocionada por se ver diferente, pela primeira vez na vida um gesto de libertação. Nita não fez caso. Depois, disse-lhe, vá, já se pode levantar outra vez e ver-se ao espelho, vá, coragem. Ela olhou. E gostou, já não foi aquele impacto de instantes antes, o cabelo estava agora penteado com ar natural, solto. Tinha rejuvenescido, e sentia que um mundo novo se podia estar a abrir, e sentiu-se ridícula por sentir uma coisa assim, quase vergonha.




Contudo não quis confessar o que lhe ia na alma, receava que, confessando que gostava, passasse por leviana, mulher fácil ou imatura, ou parva. Nita riu-se, ah, nem precisa de falar… está a gostar… pois então como é que não havia de gostar, toda gira, parece uma menina…?

Nessa noite foi deitar-se com uma inesperada emoção dentro do peito. Ouviu a mãe a gritar, ninguém vai abrir a porta? estão aí a tocar, a tocar e ninguém abre a porta? saíram agora daqui e já estão outra vez a tocar à campainha? sacanas que não me deixam dormir, sacanas dos miúdos, se lhes apanho a bola, fico com ela. Mas, desta vez, Lídia limitou-se a sorrir. Estes desvarios da mãe até tinham uma certa graça.

E havia outra coisa. Todos os dias, várias vezes por dia, Lídia lembrava-se do que tinha acontecido com Paulo, da forma abrupta, sem uma explicação, como o tinha quase escorraçado. Sentia-se envergonhada. Lembrava-se também que lhe estava a dever dinheiro. Mil vezes agarrava no telemóvel para lhe ligar, as pulsações aceleradas, toda ela num descontrolo. Mas nunca conseguia, faltava-lhe a coragem.




Até que um dia ganhou mesmo coragem. Toda ela tremia, toda ela num alvoroço, um nervosismo que só visto, ouvia o coração a bater, desarvorado. Pôs-se de pé à janela, respirou fundo, e ligou.


**

As pinturas são, como sabem, de Lucian Freud.

Relembro que, caso vos apeteça ler a história desde o início, poderão procurar aí ao lado, lá mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - a mulher triste'.

**

Este dia 21 de Setembro que passou foi o Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer.

Gabriel García Márquez não voltará a escrever, sofre de demência diz o irmão. Há vários casos de Alzheimer na família, diz.

Permito-me, ainda, recomendar que vejam o filme inserido no artigo do Expresso que começa assim: O Alzheimer afeta não só os doentes, mas também os familiares que os rodeiam. Uma realidade dura que nem os mais fortes aguentam. 

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A todos os meus Caros Leitores, com cordialidade, desejo um bom fim de semana e uns dias felizes, cheios de esperança.

16 comentários:

Isabel disse...

Parece que a vida de Lídia está a mudar.
Nita é uma espécie de anjo, desses que ainda aparecem por aí às vezes.
Como irá terminar?...

Um beijinho e um bom sábado

Lia disse...

Olá UJM
Há muito que não comento por aqui, mas revejo-me em tudo o que escreve, porque estou a viver essa realidade que nos retira alegria e disponibilidade...

Gostava de ter uma Nita por perto para me levantar o astral.

Obrigada por dar voz a todos nós que vivemos problemas idênticos.

Bem Haja!

Maria disse...

Amiga:
Está a dar a volta à história de Lídia, de uma forma muito verosímil.
Tudo está em aberto, até a reaparição de Paulo.
Nunca lidei de perto com ninguém com Alzheimer, mas horroriza-me a forma insidiosa como ataca.
A pessoa deve sofrer horrores, com os lapsos, o esquecimento, a desorientação. Quem com elas lida, nunca sabe muito bem como agir, evitando magoar, entrar no mundo obscuro daquelas mentes. Desde miúda, que as doenças com origem no cérebro, me apavoram.
E pode atacar grandes cabeças, como Gabriel Garcia Márquez.
Abraço grande
Mary

Maria Eduardo disse...

Olá,
Felizmente que a Lídia está a despertar do seu estádio de dormência e está mais confiante para tomar conta das suas responsabilidades e da realidade que a rodeia. Nita também é uma mulher sofredora, lutadora, com uma mentalidade mais aberta e vai certamente ajudar Lídia a ultrapassar todos os preconceitos que a atormentam.
Para começar, Lídia já se sente mais rejuvenescida, graças ao seu novo visual, com mais auto-estima e força de vontade para retomar o que estava em falta...agradecer a Paulo, a grande ajuda que lhe deu e pagar-lhe o que lhe devia...
Também vi o vídeo do Expresso, que achei muito real.
Continuação de bons capítulos.
Um beijinho e bom fim de semana.

Tété disse...

Já vi começar a editar com muito menos imaginação, fluência e realidade.
São estes casos da vida que dão ótimos livros e muito bons filmes.
Continue porque eu acho que está cada vez mais próxima a"vernissage"
e faz favor de não esquecer que quero ser convidada.
Grande beijinho

jrd disse...

Adivinha-se que a história vai tomar um rumo novo e,no caso de Lídia, passar de "Outros demónios" para o Amor.
Bom Domingo

Anónimo disse...

Obrigada. Pela amabilidade. Da resposta. Pela generosidade. Da publicação de escrito incógnito. (UJM merece-me respeito, consideração, por isso mesmo optei pelo anonimato ao invés da invenção de um nome. Por atavismo, pensarão alguns.)
Donec eris felix, multos numerabis amicos.
Anos e anos a sentir na carne, na alma, a veracidade deste provérbio. As pessoas – nem sequer penso que por egoísmo – fazem visitas a quem está doente durante uns tempos, apressam-se, solícitas, a ir ao hospital, acorrem a dar os pesamos. Cansam-se, afastam-se, esquecem-nos, quando sistematicamente vamos dizendo «não». Hoje não posso, estou cansada. Hoje não, não deixo ‘X’ sozinho. Hoje não, que há mais de 24h não durmo, etc., etc., etc.
As forças esvaindo-se. Aceita-se. Passa-se à indiferença. Age-se em piloto automático. Cumpre-se o horário de trabalho. Chefes, colegas olham, não vêem.
Dinheiro evapora-se em médicos, remédios. Contraem-se dívidas para que ‘x’ possa manter qualidade de pessoa.
Sentimentos contraditórios. Amor. Raiva. Sobretudo «um imenso tanto faz».
Um dia acaba. Não termina. Chegam os pesadelos. A rememoração dos momentos em que a paciência faltou. Quando a dose do tranquilizante foi aumentada, a fralda não mudada, o tom de voz não controlado. Diferente, esta dor. Ajuda especializada? Ah! O médico de família que diz «com o tempo tudo passa, passo-lhe esta receita. dormirá melhor». Não se dorme melhor. Receita rasgada. Dinheiro… Há os compromissos assumidos a honrar. Dívidas a pagar. Os subsídios extorquidos. Ordenado que baixa. Impostos que aumentam. (…)

Que Lídia muito feliz!

Benfazeja, a chuva cai. Tão bela!

Obrigada.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Por todas as mulheres (e homens) que se vêem confrontados com esta terrível situação, sinto que tenho que me esforçar por encontrar um caminho menos penoso.

Penso que o caminho passa sempre por falar, por pedir ajuda, embora saiba (e basta ver o 7º comentário, o que é anónimo, para se saber mesmo) que não é fácil e que, mesmo assim, nem sempre se consegue.

Como lhe digo, escrever esta história revolve-me as entranhas, é aquilo de que vulgarmente se diz 'mexe comigo'. Sempre que escrevo, envolvo-me, mas desta vez isso é levado ao extremo.

Vamos ver como me vou saindo.

Um beijinho, Isabel, e um bom domingo.

Um Jeito Manso disse...

Olá Lia,

Fico contente por vê-la por aqui, ou melhor, por ter notícias suas.

Leio o seu comentário e fico a sentir-me quase irresponsável por me ter metido a escrever sobre uma realidade tão sensível, tão dolorosa. Não quero que quem esteja a passar por uma situação destas - ou tenha passado - pense que o faço com ligeireza ou toque em pontos sensíveis sem o devido cuidado. Escrevo de forma muito intuitiva, sem pensar enquanto escrevo, as coisas vão saindo muito espontaneamente, como se fosse eu a viver ou a presenciar tudo aquilo. E vão surgindo bocadinhos de pessoas que conheço, situações a que assisti ou que vivi.

A situação que está a ser vivida por Lídia é uma situação quase limite, em que generosidade, amor, abdicação, tudo se mistura com cansaço, com revolta, com desalento, com sentimentos de culpa. Quem (sobre)vive, fica marcado, tantas são as cicatrizes.

Mas, falando, perceber-se-á que não se é a única pessoa a viver isto, que talvez haja ajudas, mesmo que não as desejáveis, e talvez haja alguns confortos. Não é fácil, especialmente se não se tem um suporte familiar forte. Mas sei que, mesmo tendo-o, não é fácil pois sacrificado mesmo é quem está em casa a tomar conta de uma pessoa doente.

A minha história estava com dificuldade em deixar a Lídia sair da vida complicada em que vive. Mas esforcei-me por encontrar maneira dela não soçobrar e estou animada com esta Nita que surgiu na vida dela, uma mulher com uma vida também muito difícil. Mas por difícil que seja não é tanto quanto a situação de mútua dependência que se cria entre o doente e o tratador.

Espero, Lia, que a história de Lídia lhe traga alguma esperança.

E não me agradeça, eu é que agradeço as suas palavras.

Que haja esperança em dias menos pesados.

Um beijinho, Lia, e um bom domingo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Já aqui falei num senhor lá da aldeia junto da minha casa 'in heaven' que nos conta sempre, com muita pena, que a mulher está cada vez mais ausente. Confunde-o com o pai, confunde a filha com a mãe, pergunta mil vezes a mesma. Mas ainda anda, ainda vai à casa de banho, ainda come sozinha. No entanto, tem a sorte de a filha ter um café/restaurante, uma coisa pequena de aldeia mas é tudo ao pé umas coisas de outras e, por isso, ela fica sentada lá no café e a filha olha por ela, e faz as refeições para os pais.

E tive um colega que passava horrores com a mãe e que, até pela situação, se manteve solteiro enquanto ela foi viva (pois a situação retirava-lhe qualquer disponibilidade). A mãe metia as roupas todas em sacos e fazia isso sistematicamente, até lençóis, toalhas, a roupa dela e dele, tudo. Quando ele chegava do trabalho dava com aquela sacaria toda ao pé da porta. Outras vezes saía de casa e perdia-se ele apanhava grandes sustos. Outras vezes punha-se a mexer no fogão e deixava os bicos ligados. Lembro-me bem do que ele sofreu aqueles anos todos.

É uma coisa trágica, quer para quem tem estas doenças, quer para quem toma conta destas pessoas.

Mas estou a tentar que a Lídia, ao menos, encontre algum alívio... Acho que devo esse esforço a todas as pessoas que me lêem e que vivem ou já viveram uma coisa assim.

Obrigada pelo seu apoio, Mary.

Um beijinho e um bom domingo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria Eduardo,

A vida de Nita e de tantas Nitas que há nesta vida são vidas também de muito trabalho.

Fui há pouco beber uma bica a um cafézinho aqui na rua e estava lá uma empregada que estava a dizer a uns clientes que folga apenas uma vez por semana e que começa aos dias de semana às 7:30 e ao domingo às 8. É um café muito central, com muito movimento e ela ali anda o dia todo de pé, a tirar bicas, a fazer sandes, a fazer contas, numa azáfama permanente. E hoje, enquanto falava isto, estava a tirar divisórias da vitrina e a limpá-las. Não pára um segundo. E já tem seguramente perto de cinquenta anos. E dizia que não se podia queixar porque dá é graças de ter trabalho. Tenho uma grande admiração por estas pessoas. Não sei quando podem fazer compras, estar em casa descansadas. Mas ali estão o dia todo, atenciosas, a tratar bem os clientes.

Gostava de ser capaz de dar visibilidade a estas vidas que tanto admiro.

Quanto à Lídia, uma de tantas vidas complicadas, quero ver se consigo que volte a sorrir, a libertar-se de medos, de inibições, quero ver se consigo que tenha tempo para si própria. Vamos ver se consigo.

Agradeço as suas palavras. Um beijinho e um bom domingo, Maria Eduardo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Teresa-Teté,

Olhe que um dia destes ainda começo a levá-la a sério...

Não pense que isto é falsa modéstia. É que a minha vida profissional não tem nada a ver com escrita, o meu mundo é um mundo muito distante do das letras. Mesmo que pensasse em fazer um livro, não saberia bem como fazê-lo, nem me parece que tenha tempo para andar a tratar disso. Mesmo que pensasse em juntas coisas que, por aqui, vou escrevendo, não tenho tempo nem paciência para isso. O tenho livre que tenho aqui em casa, perto do computador, uso-o para escrever. Se me ponho à pesca do que escrevi, já não terei tempo para escrever coisas novas. Já tentei que o meu marido fizesse isso mas ele também não tem paciência...

Talvez quando me reformar, não sei, ou então um dia motivo-me a sério e atiro-me a isso. Não sei.

Mas essas suas palavras deixam-me a pensar, deixam-me com a pulga atrás da orelha (como acho que se costuma dizer nestas situações).

Muito obrigada. Um beijinho e um bom domingo, Teresa-Teté!

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Nestas histórias, cheias de demónios, nunca há saídas fáceis ou felizes. Nestas situações há sempre muitas perdas, muitas frustrações.

Mas talvez, com ajuda, se atenue o peso e se consiga ver um pouco para fora deste círculo que se fecha em torno de quem vive um caso assim.

Estou a tentar, jrd, estou a tentar que a Lídia não se extinga sozinha junto de uma mãe velha, demente, dependente.

Vamos ver se consigo que ela sinta o lado bom da vida sem que a história perca a credibilidade. Estas situações são tão marcantes para quem as vive que tenho que ter muito cuidado para não escrever coisas que sejam inexequíveis ou estupidamente superficiais.

Muito obrigada jrd. Sabe que as suas palavras são para mim um apoio e um incentivo.

Um abraço e um bom domingo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónima, bom dia,

As suas palavras impressionam-me muito. Fala com muita franqueza e sei que é mais fácil escrever do que falar. Escreve-se a angústia mas, mais difícil é verbalizá-la.

Percebo o que diz sobre os amigos que se afastam de quem não é feliz. Procura-se mais facilmente a companhia de quem está sorridente e bem disposto do que de quem está cansado e pouco mais tem a dizer do que o cansaço, a ansiedade, a frustração.

Esta é uma situação que cria solidão à volta. Os amigos ou colegas sentindo que pouco, de facto, podem fazer, vão-se afastando. E quem se sente assim também não quer 'maçar' os outros com relatos de noites mal dormidas, fraldas, cheiros, escaras, gastos e mais gastos, medos, cansaços.

Sei que são situações que marcam a vida de quem lhes sobrevive. Percebo que o cansaço extremo, a saturação limite, leve a não trocar fraldas sempre que se sabe que estão sujas, que se leve a aumentar a dose de tranquilizante. São reacções humanos, compreensíveis. Qualquer pessoa o fará quando o desespero e o cansaço passam a levar a melhor. Não se vê saída e já só se quer ter um pouco de sossego.

Por isso que não se sintam culpados os que assim agem ou agiram. São apenas humanos os que agem dessa forma. Todos os que passam por isto o fazem. E que ninguém os censure. Quem passa por isto merece apenas respeito, compreensão e palavras de conforto e carinho.

O que eu quero ver se consigo mostrar (mas, como ainda não escrevi, não sei se o vou conseguir) é que, apesar de tudo, há sempre uma maneira de tornar menos pesado o destino que caíu em cima de quem toma conta de um familiar doente, dependente, e de que não se esperam melhoras, apenas o inevitável declínio.

Neste momento ainda não sei que rumo vai tomar a história de Lídia mas eu quero tentar que ela se sinta menos culpado, com direito a viver também a sua vida e que ela sinta que, ao fazê-lo, não está a demonstrar menos amor pela mãe.

Finalmente quero agradecer as suas palavras. Penso que são muito importantes para quem as ler e estiver a passar por esta situação. E desejo-lhe, com toda a sinceridade, que encontre, na sua vida, força e inspiração para, apesar de tudo, ser feliz.

Um cordial abraço e desejo-lhe um bom domingo (a chuva veio lavar o calor mas o sol, muito ameno, está a brilhar...)

Olinda Melo disse...


Bom dia, querida UJM

Tirei agora um bocadinho para começar a pôr em dia as minhas visitas a Lídia e a si, naturalmente.

Como menina bem comportada, estou a continuar esta conversa com ela de forma ordenada, seguindo o seu ritmo, conforme vai evoluindo no seu estado psicológico e físico.

Sei que as coisas, na maior parte das vezes, não acontecem assim. Mas por aqui fizemos alguma pressão e sei as razões que lhe assistem ao trazer a Lídia algum refrigério, ajudando-a no drama da sua vida. Nota-se a sua fragilidade no medo que a habita, na sua insegurança, no seu receio em que pareça mal aos outros todo e qualquer assomo de querer fazer alguma coisa por si própria. Lá no seu subconsciente não se sente com direito a nada. Interessantíssima esta abordagem, UJM, denotando um grande conhecimento da alma humana.

Nita é uma mulher positiva que já tem a sua dose de infelicidade, mas com força suficiente para dar a volta por cima, e, pelo meio, vai servindo de suporte a Lídia.

Minha querida, não vou dizer mais nada... vou passar ao post seguinte.

Beijos

Olinda

Um Jeito Manso disse...

Olá Olinda,

Acho muito bem que não veja o filme a andar de trás para a frente... Mas sabe que eu, quando pego numa revista, leio de trás para a frente e não sei porquê. Mas aqui, como eu escrevo isto em directo, sem saber o que se vai seguir, fico com a impressão que se ler ao contrário, subverte a coisa, já sabe o que vai acontecer quando eu, que estava a escrever, não o sabia.

Mas isto é parvoíce minha porque, se em vez de escrever aqui, escrevesse um livro, sabia lá eu como é que os leitores liam o livro... se era de trás para a frente, ou folha sim, folha não...

Quanto à Lídia, vamos ver se consigo mudar-lhe mesmo a vida pois parece que interiorizei os medos, as angústias, as frustrações, as inibições dela e, quando estou a escrever, com vontade de a pôr feliz, dou por mim de pé atrás, com desconfianças...

(E logo eu que sou o oposto da Lídia...)

Um beijinho, Olinda, e muito obrigada pelo seu incentivo.