quarta-feira, agosto 08, 2012

Onde está o amor


Um amor, se faz favor


Bob Marley (o amor com alegria) - One love



Hoje, na rua, deparei com uma imagem numa parede que despertou a minha atenção. Felizmente estava com a máquina fotográfica e registei. Colado na parede, um papel com duas criaturas com o ar mais desolado do mundo, braços pendurados, todos eles um luto, com um coração rasgado entre  os dois e as palavras ONDE ESTÁ O AMOR. Penso que faltará o ponto de interrogação mas, no meio da desolação que a imagem representa, talvez isso seja pormenor.



.                        Onde está o amor                               .


Mais à frente, no vidro de uma loja, outra surpreendente inscrição, agora uma citação de Eleanor Roosevelt. A loja devia estar em redecoração pois a montra estava coberta por um papel cinzento. E então a inscrição, a branco, projectava-se, a cinza mais escuro, sobre o papel por baixo. Fiquei encantada. Tenho ideia que aquela loja vende bugigangas, bijuterias, vestidos de algodão indiano, sandálias, sacos de pano, coisas assim. E os donos lembraram-se de serigrafar aquela frase no vidro...? Tem graça, não tem?



'O Futuro pertence àqueles que acreditam na beleza de seus sonhos', Eleanor Roosevelt


Como, por estes dias, não consigo interessar-me por nada de desagradável ou de profundo, ocupei a minha mente com um pensamento estival (ou superficial?): poder-se-á estabelecer alguma relação entre aquelas duas inscrições? O amor ou o desaparecimento do amor terá que ver com cada um  querer continuar a acreditar na beleza dos seus sonhos?

Não sou, em geral, dada a dissertações académicas nem a raciocínios muito aprofundados e, agora, nesta altura do ano, ainda menos. Por isso, não vou tentar rebater ou confirmar, muito menos elaborar cientificamente sobre o tema.

Direi apenas que penso que o amor é algo de fundamental na vida; e, quando me refiro ao amor, penso no amor entre duas pessoas, sejam ou não de sexos diferentes. Claro que há amores ainda mais fortes e incondicionais como o amor a filhos, netos, pais, mas não é a essas formas de amor consanguíneo que me refiro. 

Claro que há pessoas que vivem muito bem sozinhas, sem amores, ou que encontram formas de amor que as realizam e que são igualmente compensadoras: o amor a um deus, o amor a causas humanitárias, o amor por animais, etc. 

Mas eu disso não tenho uma experiência muito forte pelo que não vou aventurar-me por aí. 

Contudo tenho uma experiência razoável no que se refere a sentir amor por uma pessoa de outro sexo.

Desde que me lembro sempre me senti atraída por pessoas do sexo masculino. As minhas primeiras memórias estão ligadas ao meu primeiro amor. Eu abraçava-me a ele e dava-lhe beijinhos e dizia que estava 'rapaixonada', o que divertia quem assistia àqueles arroubos. Diziam-me que era apaixonada que se dizia mas eu não acreditava, não me soava bem, a palavra parece que ficava mais fraca sem aquele motor de arranque do 'r' no início da palavra. Isso foi muito antes dos 4 anos, antes de entrar para a escola infantil.

Grande parte das minhas memórias estão muito ligadas aos meninos de quem eu gostava ou que gostavam de mim. Acho que até hoje não houve um dia em que o meu coração não estivesse ocupado, por vezes apenas por um amor, algumas vezes por mais do que um.

Amores a sério tive talvez esse primeiro menino e esse amor infantil durou até ao final da primária (embora, pelo meio, eu tivesse acumulado com vários amores passageiros), depois um outro que era filho de colegas da minha mãe, um muito doido, que fazia maluqueiras para mostrar que gostava de mim e que fazia rir os nossos pais por tamanhas demonstrações de amor (esse, infelizmente, muitos anos mais tarde e já casado, pôr termo à vida, o que muito me impressionou pois não consegui reconhecer nessa pessoa que deixou de amar a vida o meu apaixonado e acalorado namorado dos primeiros anos de liceu).

A seguir veio o meu primeiro grande amor.

Esse meu grande amor aconteceu aos 12 anos e veio avassalador. Tudo o que se prenunciava nos meus infantis amores anteriores, aqui revelou-se em toda a sua força. Era uma paixão tremenda e era mútua. O meu coração disparava quando ele se aproximava. Aos 13 anos o meu corpo revelou-me que, nisto do amor, o corpo é parte interessada. As festas de ano em que podíamos dançar agarradinhos eram uma festa.

Era um rebelde. Já aqui falei dele algumas vezes. Era inteligentíssimo mas era um rebelde, desafiava pelo gosto de desafiar, metia-se em trabalhos, jogava muito bem futebol mas volta e meia andava à pancada, no recreio também andava por vezes na tareia e depois era chamado para repreensões, andava de motoreta e fazia arriscados cavalinhos, até na bicicleta ele fazia piruetas malucas e partiu parte dos dentes da frente; e eu vibrava com tudo isso. Até gostava ainda mais do ar irreverente que os dentes partidos lhe davam e defendia-o permanentemente junto dos professores que davam em doidos com o que ele fazia, tanto mais que era um aluno brilhante. Mas sendo os dois temperamentais, o nosso amor era uma montanha russa. Todos os dias nos zangávamos, todos os dias fazíamos as pazes. Até que entrámos num registo zen, um amor tranquilo e amigo, cúmplice. Era como se tivéssemos atingido uma certa maturidade. Tínhamos, então, 15 anos. Eu estava perdidamente apaixonada e ele por mim. Uma professora nossa chamava-lhe o Romeu e a mim a Julieta e isso pegou, volta e meia chamavam-nos assim. Era mal comportado, metia-se com a polícia e passou algumas noites na esquadra, era um verdadeiro enfant terrible mas, se lhe punham um poema à frente, lia com paixão e entrega e punha-nos, a todos, arrepiados e transidos de emoção.

Até que apareceu outro que se perdeu de amores por mim, que me fez poemas e canções, que demonstrava publicamente o seu amor, que desafiava o meu relacionamento 'oficial'.

Isso gerou tantos incómodos e tantos ciúmes que, estupidamente, por um daqueles acessos de orgulho imaturo, deixei que aquele grande amor fosse afectado.

Comecei então a namorar este novo apaixonado. Nos primeiros tempos o meu coração estava ainda cativo do meu outro amor mas, por orgulho, nunca o demonstrei. E esse meu grande amor, vendo a minha reacção e vendo-me a namorar com o seu rival, afastou-se debaixo de grande sofrimento. Os amigos comuns vendo o que se passava tentavam que cada um cedesse mas nenhum de nós o fez. Deixou de ir às aulas, perdeu o ano por faltas, arranjou amigos de hábitos duvidosos e toda a gente temeu pelo seu futuro. Depois de um período muito complicado lá conseguiu reencontrar o seu caminho e há tempos vi a sua fotografia, grisalho, com um pouco de barriga, um homem que eu não reconheço. Apenas me parece ver, no sorriso de boca entreaberta, os dentes da frente meio partidos.

O meu namorado era, então, um jovem mais velho um ano que eu. Eu tinha 16, ele 17. Ele gostava tanto mas tanto de mim que eu, durante bastante tempo, confundi o gosto de ser gostada de uma forma tão arrebatada e tão brilhantemente cantada, com o gosto de gostar. Eu era a sua musa e que belos poemas ele fazia, e que belas canções ele fazia, e que bela voz ele tinha ao cantar aquelas belas canções. Era alto, tinha uns olhos azuis violeta, umas pestanas grandes e um vozeirão. E toda a gente se encantava com aquele amor enorme que ele tinha por mim. Mas, com o tempo, tanto amor a mim começou a pesar-me. Eu era a vida dele. Eu era o seu futuro, a sua inspiração, a sua razão de viver. E isso era demais para mim. Na altura ainda não o sabia mas soube-o mais tarde: não gosto nem aceito ser a vida de alguém que não eu. Mas, apesar disso, eu gostava muito dele. Éramos grandes companheiros.

Fomos então para a Universidade, cada um para a sua. Eu tive, nessa altura, outros pretendentes. Achava graça, gostava de ser cortejada; mas nenhum me fez mudar de rumo.


Dance me to the end of love, if you please


Madeleine Peyroux
(Não consegui incluir aqui a versão original do Leonard Cohen)



Até ao dia em que, do nada, saíu o homem mais bonito que eu tinha alguma vez visto. Já aqui descrevi esse momento, acho eu. Ele tinha um físico fantástico, andava como se fosse um modelo ou um desportista (e mais tarde soube que tinha sido convidado para desfilar e que era, de facto, desportista federado), tinha um rosto fantástico e vestia-se de uma forma que me agradava muito.  No meio de uma multidão de gente, eu vi-o e fiquei presa a ele e ele, no meio da multidão, rodou a cabeça e fixou em mim o seu olhar. Nesse momento, só por aquele olhar e por ele ser fisicamente como era, senti, sem qualquer dúvida, que aquele era o homem da minha vida.

Mas perdi-o de vista, não sabia quem era. Por mais de um ano, andei desencontrada dele. Se calhava, de muito vez em quando, cruzar-me com ele eram sempre aqueles longos e carnais olhares. Nada sabia dele mas aquele corpo, aquele rosto, aquele olhar estavam reservados para mim, e isso eu sabia. Contou-me ele depois e só porque insistentemente lhe perguntei que, nessas alturas, os pensamentos dele em relação a mim eram muito prosaicos (e não os posso aqui revelar).

Eu continuava a namorar com o poeta cantor mas o meu coração estava pouco convicto, e continuava a ter pretendentes e continuava a pensar no belo desconhecido e a vida continuava.

Até que, um dia, já o meu namorado poeta-cantor fazia planos de casamento para o curto prazo, planos que eu ouvia com um crescente pesar no coração, me voltei a cruzar de novo com aquele jovem mais bonito que nenhum outro e de quem eu ainda nada sabia, excepto suspeitar que era ele o namorado muito louvado de uma antiga colega minha de liceu. E, então, sem querer saber de mais nada, fartei-me daqueles olhares e, porque a ocasião se proporcionou, comecei a falar com ele. Logo nesse dia foi levar-me a casa e até hoje nunca mais nos separámos.

Durante uns meses ainda vacilei. Contra a certeza jurada de um amor eterno, contra as outras belas palavras de amor, este nada me oferecia ou garantia. Nada. Poucas palavras, palavras apenas relativas ao momento presente. Estava pouco habituada a isto mas, nestas poucas palavras, eu sentia uma intensidade maior que qualquer outra antes.

E então, uns meses depois, e sendo-me cada vez mais difícil gerir a agenda já que os dois sabiam da situação e queriam exclusividade, finalmente rompi o namoro com o namorado que antes se recusava a aceitar que aquele amor eterno, ideal, idealizado, tinha chegado ao fim. Acabei da pior maneira, um bocado à bruta porque não consegui fazê-lo por consenso, a bem. Foi um fim doloroso e sei o sofrimento que causei.

Vejo-o por vezes em fotografias nos jornais ou em acontecimentos públicos. É um homem maduro, grisalho, com pouco cabelo, engordou um pouco mas mantém o garbo e a pose e o tom de voz é o mesmo. Foram anos difíceis para ele e durante muito tempo senti que a sua presença era uma sombra na minha vida, aparecia-me onde menos eu esperava, parecia que adivinhava os meus passos.

Algum tempo depois desse dia em que ouvi pela primeira vez a sua voz, apaixonada, mas mesmo muito apaixonada pelo jovem de poucas palavras, casei. Era uma miúda, tal como ele. Casámo-nos apaixonadíssimos, ainda estudávamos.

Já lá vão muitos anos mas o amor é o mesmo, talvez ainda maior. Mais de metade da minha vida foi passada ao seu lado. Desde o primeiro dia tornámo-nos inseparáveis e, em conjunto, temos construído a nossa vida. Não abdiquei de nenhum sonho, continuo a acreditar no futuro, continuo a ser quem sou. Connosco a porta está sempre aberta e ninguém prende ninguém. E as janelas estão também sempre abertas e por elas vejo o mundo e traço os meus próprios sonhos.

Onde está o amor? Para mim o amor está no carinho, no respeito, no companheirismo, no desejo, na atracção física que não se explica, na compreensão, na dádiva, na empatia e na sintonia, na comunhão de objectivos, na indispensabilidade da presença do outro - mas também no amor próprio, na defesa intransigente da própria vontade, no prosseguimento activo dos próprios sonhos.

Não sou nada de achar que um amor para se prolongar no tempo tem que ser discutido, conversado, que tem que se saber tudo um do outro, ou que um deve abdicar da sua vida pela vida do outro, ou coisas dessas que tantas vezes leio e ouço por aí.

Pelo contrário, acho que abdicar dos sonhos para fazer a vontade ao outro ou afogar uma relação em palavras, em esgaravatar até doer, em querer saber tudo até à minúcia, é contraproducente. Cada um tem que ter direito aos seus silêncios, aos seus segredos, à sua vida própria. Só isso dará a cada um a necessária liberdade para, a cada dia, estar com o outro por livre vontade e não por obrigação.


E vou calar-me porque já escrevi demais, é sempre isto, começo a escrever e perco a noção que posso maçar os meus leitores com textos tão longos.

*

Hoje estivemos todos juntos, pais, filhos, netos. Vocês haviam de ver as fotografias que me tiraram. Como sou sempre eu que fotografo, tenho poucas fotografias com eles. Então, pedi para a minha filha me tirar uma fotografia com os 4 pequeninos. Como os meus não são da realeza nem modelos da Anne Geddes, não se consegue uma fotografia em que estejam todos muito arranjados, sossegados e a olhar para a câmara. Pelo contrário, com excepção do recém-nascido, cada um quer fugir para seu lado. Então aparece o braço do meu filho, atravessado ou a tentar agarrar os que se querem esgueirar. Mas, noutras fotografias, o meu filho achou que era melhor também aparecer já o meu bisneto e então, no meio daquela confusão, apareço eu com um Nenuco ao ombro e, noutras, com o Nenuco a espreitar por cima da minha cabeça e eu, perdida de riso, enquanto tento endireitar o bebé para ele se ver melhor e os outros em completa debandada. Há pouco, ao rever as fotografias, já aqui me fartei de rir.

*

E, por hoje, nada mais (e já não foi pouco, não é...?)

Tenham, meus Caros Leitores, um belo dia! 

6 comentários:

jrd disse...

"Do amor e outros deuses".
O amor está neste belíssimo texto que se lê de um só fôlego, apaixonadamente.

Abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Muita obrigada. Fico contente que tenha gostado. Quando se escrevem textos um bocado pessoais há sempre o risco de ficar uma maçadoria para quem lê.

Aliás, quando comecei a escrever não estava nada a pensar em escrever sobre a minha experiência pessoal mas as coisas foram para ali e não me apeteceu contrariar.

Um abraço!

Isabel disse...

Já tem um bisneto!!!
Mas afinal casou com quê? 13 anos?!! ( estou a brincar...)

Emocionei-me a ler este texto. Tal como diz jrd, lê-se de um fôlego só.

O amor faz muita falta e não se é completo sem ele. Os outros amores não substituem este tipo de relação de que fala. Não quer dizer que se seja infeliz, mas falta qualquer coisa que continuamos a procurar.

Gostei muito do seu post.
Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Já viu isto? Os meus amigos, no gozo, já me chamavam avozinha e depois bisavó e depois trisavó e agora, certamente, tetravó. E agora são os meus filhos a dizer que eu o boneco da minha menininha é o meu bisneto.

E o meu bebé recém-nascido ao pé dos outros parece tão pequenino que, na fotografia, o boneco quase parece também um bebé de verdade. Eu com os quatro todos desalinhados e com um boneco no ombro ou a espreitar por cima da minha cabeça....

E não casei aos 13 mas casei aos 20. Imagine. E não achava que fosse cedo demais (e ainda não acho). Mas se a a minha filha se tem casado aos 20 já achava que ela se estava a precipitar...

Quanto ao amor, acho que a cada momento, em qualquer lugar, ele pode aparecer. É preciso é que as pessoas estejam disponíveis e receptivas para isso. Por vezes não estão: estão receosas, desatentas, desconfiadas.

O amor, quando acontece, é uma coisa boa e que ajuda a preencher a vida.

Fico contente que tenha gostado de ler tanto mais que o escrevi de gosto.

Um beijinho, Isabel!

Isabel disse...

Tetravó faz sentido...já que são quatro netos...

É bonito ver um amor assim, que tem ultapassado os anos. E imagino a bonita fotografia de família.

Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Quase me apetecia dizer que para tetravó só me faltam a bengala... mas dadas as parecenças com a realidade, é melhor eu nem falar disso (aliás, agora já ando sem apoios...!)

Quanto ao meu amor, felizmente, tem resistido ao decorrer dos anos e tem-se, até, fortalecido. E isto apesar de eu ser um bocado fora do convencional... (ou, então, talvez também por isso, não sei, nestas coisas nunca se sabe muito bem e eu, nisto, acho que é tudo tão variável e tão à medida de cada um que não consigo retirar grandes conclusões).

Quanto às fotografias de família são outra: nada convencionais. Não se consegue uma fotografia em que estejam todos arranjados, compenetrados, direitos e sorridentes a olhar para a máquina. Metade está sempre a querer fugir, outros a agarrar, outros a rirem, tudo no maior desalinho. Não sei como é que os outros conseguem. Será que alguns levam anestesias...?

Um beijinho, Isabel!