Música, por favor
Manuel de Falla - Esteban Sánchez interpreta Nocturno para piano
*
Hoje esteve um calor brutal, pelo menos por estas bandas. Dado que agora pouco tenho saído, hoje, por ter que ir ao médico, resolvi aperaltar-me. Roupa de ir à missa, roupa de ir ao senhor doutor - sou uma mulher de preceitos, como é sabido. Vestido sem alças, claro, porque a elevada temperatura ambiente faz com que não tolere nada nos ombros, tenho que sentir o pescoço e o colo desabrigados. Depois, um chapéu, claro, porque, com este sol, e estando eu a convalescer, tenho que proteger a cabeça, não é?
Para o vestido, escolhi os tons de azul, que me parece ser uma cor refrescante e que sobressai bem com o meu tom de pele, ainda nada bronzeado. Como chapéu, um muito pequeno, muito simples, preto. Uma roupa adequada, portanto, para a ocasião solene (sim, porque ir ao médico ainda tem o seu quê de solene). Poder-se-ia dizer que ia dressed to impress mas não, nada disso, foi apenas a toilette que, dadas as circunstâncias, me apeteceu vestir.
Pelo caminho ainda parei um pouco junto a um jardim, que saudades de estar num jardim.
Pelo caminho ainda parei um pouco junto a um jardim, que saudades de estar num jardim.
Contudo, o vestido acabou por resultar um pouco quente. E, então, mal me despachei dos meus afazeres, só me apeteceu tirá-lo e meter-me tna água.
Procurei a beira do rio que estava linda.
Há quanto tempo não estava por aqui a esta hora, quando a tarde se dissolve no rio, quando as cores doces tingem os rostos das pessoas, dos monumentos, tingem os nossos corações. Soa muito doce? Ainda bem, porque era mesmo uma grande doçura o que eu sentia no ar, respirando a tepidez rosada deste fim de dia de verão.
Esperei, então, que anoitecesse.
As pessoas começaram a recolher a suas casas, os veleiros iniciavam o caminho de volta e que belos são os veleiros a esta hora do dia, envoltos em dourado, que belos; e eu, pacientemente, esperei que a luz se esvaísse. O que queria fazer não podia ser testemunhado.
Nestes dias compridos de verão, a noite tarda em cair. Mas, então, quando mais ninguém restava na beira do rio, com prazer e vagar, pedi ao meu amor que me desapertasse o vestido, que me ajudasse a despi-lo. Não lhe pareceu nada bem que eu o fizesse ali mas acabou por me fazer a vontade, sabe que eu sou bicho do mar.
Depois do vestido, tirei os sapatos altos, depois o pequeno chapéu. Fiquei então apenas com o corpete e com a armação do vestido. O meu amor disse que eu ficava bonita assim, ali, à beira da água. E beijou-me e o beijo também foi quente e doce.
Depois do vestido, tirei os sapatos altos, depois o pequeno chapéu. Fiquei então apenas com o corpete e com a armação do vestido. O meu amor disse que eu ficava bonita assim, ali, à beira da água. E beijou-me e o beijo também foi quente e doce.
Não gosta que eu entre no rio quando já é de noite, não gosta. Então, como é cauteloso, atou-me uma fita para me poder puxar caso eu me distraísse e precisasse de ajuda para encontrar o caminho de volta. Um fio de Ariadne ao contrário.
E, finalmente, mergulhei. Mergulhei, mergulhei e lá em baixo a água é fresca, escura, e a luz que se vê lá de cima é a luz coada dos candeeiros da beira do cais. Nestes dias só aqui é que se está bem, que maravilha.
Desci, desci e vocês já sabem para onde vou, quando desço assim até ao fundo do mar. Mas devem estar intrigados. Se o meu amor estava na beira mar a segurar a ponta da fita dourada, quem me esperava no castelo do fundo do mar? Ou será que, desta vez, ninguém me esperava nas salas atapetadas a limos de veludo e com cortinas de algas douradas?
Se me conhecem bem, saberão que, no fim das longas e venturosas viagens, gosto de me acolher nos braços de quem me saiba envolver.
(Mas, compreenderão que, noblesse oblige, não vou aqui entrar em pormenores.)
(Mas, compreenderão que, noblesse oblige, não vou aqui entrar em pormenores.)
Posso apenas contar-vos que, nos espaços submarinos para onde gosto de ir quando quero isolar-me, quando quero tirar de cima de mim o peso do mundo, quando quero refrescar-me, purificar-me, a luz é azul, a beleza é imensa, a quietude encontra-se suspensa, acaricia-nos quando por ela passamos.
E há seres fantásticos, e algumas outras mulheres livres como eu, e crianças anfíbias, puras e alegres que brincam em volta de esferas de luz, crianças cujas mães zelam por perto, frequentemente levando-as ao colo com desvelos mil, e há homens fantásticos que parecem peixes inventados em inspiradas acrobacias, e animais coloridos que dançam como pessoas, e plantas sinuosas de cores extravagantes. Ah meus amigos, como eu gostaria de vos poder levar também comigo.
O fundo do mar é imenso, silencioso, mas, por vezes, ouve-se uma música e não percebemos se sai das esferas de luz que existem no fundo do mar, se sai do castelo de prazer onde me acolho, ou se, extraordinariamente, vem cá de cima, da terra, da terra onde vivem prisioneiras as pessoas que não ousam tirar os pés da terra firme, as pessoas que não ousam libertar-se das sombras, das quatro paredes onde, dia após dia, deixam que a sua existência se vá esgotando. Talvez venha mesmo dali, talvez no meio das pessoas que se deixam moldar, domar, e que não encontram ânimo para fazer nada de diferente nas suas entediantes vidas, talvez haja ainda alguns que procurem a fractura, a música transcendente, a palavra de revolta e emancipação, o voo, a luz, a liberdade, o sonho, o futuro. Talvez.
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No mar passa de onda em onda repetido
o meu nome fantástico e secreto
que só os anjos do vento reconhecem
quando os encontro e perco de repente
No fundo do mar há brancos pavores,
onde as plantas são animais
e os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
a agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
no desalinho
dos seus mil braços,
uma flor dança,
sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
tem um monstro em si suspenso.
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A primeira fotografia é de Mario Testino, as duas do meio são minhas, de hoje, e as duas últimas são de Zena Holloway. Os dois poemas são de Sophia de Mello Breyner Andresen, o primeiro não tem nome, o segundo tem por título 'Fundo do mar' e encontram-se ambos na Antologia de nome Mar.
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Permitem que ainda vos convide a visitar-me no meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa? É que gostaria muito de vos ter por lá, onde as minhas palavras se despedem por hoje, muito tristes em torno de um poema de Ana Marques Gastão. Na música, continuamos, claro, com Béla Bártok.
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E já é quarta feira.
Que seja um dia agradável e, caso tenham muito calor, já sabem: metam-se debaixo de água...
Be happy!
2 comentários:
Leve-me consigo, da próxima vez que for ao fundo do mar...leva?...
Os videos são espectaculares, principalmente o primeiro.
Mas ao mesmo tempo que seduz, o fundo do mar, também assusta. Não sei explicar porquê.
Um beijinho e continuação das melhoras
(Já me tinham dito que a expressão era do Eça. Ignorante que sou, mas não sabia. Deduzi o significado, mas não conhecia a expressão. )
Olá Isabel,
Um dos primeiros livros que despertou a minha atenção quando eu era pequena, mesmo ainda muito pequena, foi um livro sobre o fundo do mar.
Nunca fiz mergulho (sou medrosa demais para isso) mas o fundo do mar sempre despertou a minha imaginação. E agora, com este calor, é só nisso que penso. Se calhar é falta de praia. A ver se daqui por uma semana e picos já posso ir, tenho saudades de nadar na água do mar.
Um beijinho, Isabel!
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