No dia em que o pai teve o AVC eu estava fora de Lisboa, num evento que tinha sido eu a impulsionar e organizar. A minha mãe, ao início da manhã, ligou-me e contou-me que o meu pai se tinha sentido mal de madrugada, estava no hospital, em observação. Mas tranquilizou-me, disse-me que ele estava estável e que não valia a pena eu ir para lá pois ele não recebia visitas. Fiquei inquieta. Custava-me abandonar aquele evento, logo no início, mas estava preocupada, não sossegava. Passado um bocado, vim cá fora e voltei a ligar. A minha mãe disse-me que já estava ao pé dele e que ele estava bem, lúcido, e que já mexia um pouco o braço. Fiquei ainda mais preocupada pois antes ela não me tinha dito que o braço tinha estado paralisado. Embora insistisse que não valia a pena eu ir, fui mesmo.
Ao chegar ao pé dele, apercebi-me que não me via. Explicaram-me depois que tinha perdido metade do campo visual. Percebi que mal mexia um dos lados e constatei que tinha dificuldade em falar. Ficou emocionado ao ver-me e penso que, sobretudo, ficou triste por perceber que uma parte da sua vida anterior tinha sido interrompida. E senti a sua tristeza também pela sua fragilidade perante mim. Até ali ele tinha sido o meu pai, um homem forte. Mas, naquele momento, o meu pai sentia que isso tinha acabado, que, naquela altura, ele era o elo mais fraco.
Mas uma das coisas que mais me impressionou foi quando, nesse dia, ao chegar a casa com a minha mãe, ela me disse: 'Acabou'. Não percebi. Além disso, nestas situações, a minha mãe é muito fatalista, tem medo de tudo, antecipa sempre o pior. Perguntei-lhe o que é que tinha acabado. Disse: 'A vida que tínhamos'. Achei que, de facto, estava a ser pessimista. Eu estava, nessa altura, a acreditar que o meu pai ia recuperar-se e que aquilo do campo visual era de somenos e custava-me que a minha mãe não acreditasse nisso. A minha mãe não foi em conversas: 'Acabou. A vida que tínhamos acabou'.
E estava certa. Na realidade, nesse dia o meu pai iniciou o seu longo, doloroso e lento caminho para a morte. Nem ele nem a minha mãe voltaram a ter uma vida normal.
Assisti de perto, por dentro, o que foi esse percurso. Mas, apesar de tudo, eu não estava lá a viver o dia a dia, as noites, os sustos, as perplexidades, os cansaços, os desalentos.
Nem fui eu que deixei de ir de férias, de ir ao cinema, de fazer o que antes fazia e de que tanto gostava. Durante todos os muitos anos em que o meu pai esteve em casa, dependente, a minha mãe não quis fazer o que ele não fazia. Apenas saiu de perto dele quando foi operada. De resto, éramos nós que íamos lá, tentando que se sentissem sempre acompanhados. Mas sei que a minha mãe, para além do desgosto por ver o lento declínio do meu pai, sentia também desgosto por ter perdido a vida que antes tinha.
Quando o meu pai morreu, a minha mãe sentiu desgosto, claro, um grande desgosto, mas não foi um choque. Era uma morte anunciada e, na verdade, todos sentimos que era um descanso merecido para o meu pai.
Até que, inesperadamente, uma vez à tarde, ela me disse que tinha ficado preocupada com um telefonema que tinha recebido dele: tinha-lhe dito que não se tinha sentido bem e tinha ido para casa. Ela dizia, o coração inquieto, que isso nunca tinha acontecido, que, para ele, o trabalho era sagrado. Sair a meio da tarde era coisa que nunca tinha acontecido. Tentei descansá-la. Passado um bocado, veio dizer-me que estava intrigada, preocupada, e que também se ia embora para ver o que se passava. Fui com ela até ao elevador. Ela estava numa ansiedade: 'Estou preocupada. Passa-se alguma coisa. Estou com medo'. Era uma sexta-feira. Eu disse-lhe que podia ser stress, qualquer coisa, mas que vinha aí o fim de semana, era bom, ele ia descansar e ficar bem. Mas ela sentia que alguma coisa se passava, estava inquieta.
No dia seguinte, sábado, tínhamos ido passear com os miúdos e com os meus pais ao campo. E então recebi uma chamada de um amigo comum. Disse-me: 'Tenho uma notícia triste. Morreu o Rui.'. Como sempre me acontece nestas circunstâncias, nunca sei de quem se trata. Instintivamente, tento lembrar-me de alguém que eu conheça com aquele nome e que pudesse ter morrido. O meu amigo ajudou-me e disse que se tratava do marido da nossa amiga. Fiquei sem acção. Como era possível tal coisa? Não estava doente. Tinha cinquenta e poucos anos. Ele esclareceu-me: tinha tido um ataque cardíaco.
Dias depois, foi ela que me contou. Ao fim da tarde, o filho, adolescente, tinha percebido que algo estava a acontecer, quis perceber o que o pai sentia, parecia que estava engasgado, com dificuldade de respirar. O pai, sempre tão delicado, tinha soltado um grito rouco: 'Chamem uma ambulância! Estou a morrer, porra!'. A minha amiga diz que tinha sido a primeira vez que ele tinha falado assim com o filho. Quando os do inem chegaram, já ele estava inanimado e ela aflita, a chorar. Foi na ambulância com ele. No percurso, ele acordou, olhou para ela, suspirou e fechou os olhos. Ela disse-me que achava que ele tinha morrido naquele instante. No hospital tentaram reanimá-lo mas já não foi possível. No enterro, ela estava absolutamente debilitada, num estado de grande fragilidade, quase irreconhecível de tão transtornada que estava. Tinha que estar amparada e, quando o caixão desceu à terra, desmaiou. Saiu de lá ao colo de um dos sobrinhos.
Não se recompôs do desgosto. Ficou sempre triste. Perdeu a juventude, perdeu o sorriso. Deixou de trabalhar ao fim de não muito tempo pois não conseguia seguir uma rotina da qual o marido já não fazia parte. Nem queria ir para a casa tão bonita na costa vicentina nem queria saber que o filho, de quem era tão chegada, fosse para fora. Desinteressou-se. Aos poucos, depois, foi retomando alguma actividade mas nunca mais foi a que era. Uma parte dela morreu quando o marido a olhou para nunca mais.
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E se me ocorreu evocar estas memórias foi porque comecei a ver o documentário sobre Joan Didion (Joan Didion: o centro não consegue suster-se) na Netflix. Ainda não vi muito mas estou a gostar bastante. Como geralmente faço, para ver se me agrada, fui saltitando a espaços. É o que faço com os livros. Folheio ao acaso. Se gosto, volto então ao início e vejo direitinho.
E agora, ao escrever este post, lembrei-me de ir ao Youtube ver o que encontrava sobre ela. Partilho convosco os excertos que aqui partilho (texto de um dos livros de Joan Didion, justamente aquele em que ela descreve como, num dia, sem aviso prévio, o marido morreu deixando-a em estado de total desamparo). As desgraças na vida dela não se ficariam por aí mas foram tão mais difíceis de suportar quanto ela não o tinha a seu lado para a amparar.
"The Year of Magical Thinking" by Joan Didion
Vanessa Redgrave
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