sexta-feira, maio 13, 2022

Duas coisas: uma sobre a qual não quero falar e outra sobre a qual nem vale a pena falar

 



Hoje é um dia importante na minha vida. Não o festejei senão ao fim do dia quando fui caminhar para a beira da praia. Aí, não é que tenha festejado como costumam ser os festejos. Aliás nem comentei com ninguém. Nem me lembrei de comentar com o meu marido. Mas descontraí, aspirei o ar húmido e perfumado, havia uma maresia quase palpável que me refrescou a alma.

E tanta gente, tanta. Na areia, na água, no passeio. Parecia um dia de verão, de férias. A paz é uma coisa muito boa, uma dádiva.

Durante todo o santo dia trabalhei. A principal reunião da manhã foi tão boa que valeu por um belo festejo. Aquela reunião não devia ter acontecido. Aconteceu a pedido dele. Eu não sabia de que se trataria mas também não perguntei. Gosto de ir para as reuniões (algumas reuniões) sem saber a quantas vou, sem me preparar, sem rede. É o que prefiro: ser surpreendida. E fui surpreendida e foi muito motivante.

Os últimos tempos têm sido algo surpreendentes. Daqui por algum tempo falarei nestas situações, mas falarei en passant, recordações que virão ao correr da pena. Agora não, é tudo ainda muito recente. Agora apenas afloro. E faço-o apenas para eu própria tentar perceber o que me acontece.

Outro assunto.

Por vezes tento contabilizar: quantos homens já choraram ao pé de mim? Não sei. E falo de homens pois é suposto ser menos frequente chorarem do que as mulheres. Não sei se chorarão ao pé de outros homens. Não o creio. Que efeito produzo nas pessoas (em algumas pessoas) que as faz desabafar, confessar anseios, chorar quando estão a conversar comigo? Não sei. Não sou de me pôr a chorar o que poderia ser contagiante, não tenho conversas de apelar ao sentimento. Nada. Acima de tudo gosto de ouvir, de tentar compreender. E, no entanto, acontece.

Neste caso, no outro dia, eu estava a ouvir, a olhar com atenção, estava em silêncio a tentar compreender os argumentos que me estavam a ser expostos. Não esperava que acontecesse o que aconteceu a seguir. No segundo antes de acontecer, ainda o não tinha o antevisto. E foi tão inesperado que quase fiquei paralisada. Depois falei. Mas durante o resto do dia fiquei a pensar no que se tinha passado. Contei ao meu marido. E não tenho parado de pensar.

Há uma coisa que não sei: quando uma pessoa que não costuma chorar -- que cultiva a imagem de ser forte, imbatível -- desmorona e chora como uma frágil criança, será que consegue relativizar, no seu íntimo, a dor que sente? Ou, no momento em que as dores se transformam em lágrimas, todas as dores são imensas, iguais?

Os tempos vão atípicos. A finitude vai tocando uns e outros, vai-se fazendo lembrada, por vezes de forma subtil, por vezes de forma ameaçadora. Todos caminhamos para o fim, bem o sei e bem mo lembram, frequentemente, alguns dos meus caríssimos ensimesmados leitores. Mas, enquanto dura a caminhada, se estivermos bem e felizes, se não nos lembramos disso -- não é preciso, para quê a gente se haveria de estar sempre a lembrar disso, a pensar que estamos a caminhar para o fim? -- é melhor. É lugar comum: o objectivo da caminhada não é o lugar onde vamos chegar, não é chegar ao fim, o objectivo é a própria caminhada, é o que vamos vendo, descobrindo, o prazer que vamos sentindo, as agruras que vamos superando, as memórias que vamos guardando (ou partilhando). 

E, nessa caminhada, vamos tomando como grandes desafios ou grandes problemas, coisas passageiras, sem importância nenhuma. Mas, ao resolvê-los, ficamos contentes e esse contentamento torna a caminhada mais agradável.

E ainda mais um assunto.

No outro dia tinha uma coisa para dizer e, depois, meteram-se outros temas e acabei por não dizer. Digo hoje. Comecei um diário. Achei que era o dia certo. Nesse dia dei um passo importante. E, para o marcar, comecei o diário. Quis que fosse essa a primeira coisa a ser escrita.

Como sou muita dada a aspectos logísticos, comecei por criar uma pasta nos meus documentos. Pensei num nome sugestivo. Depois abri o documento de word e dei-lhe o nome. Depois escrevi a data, a primeira entrada, e comecei a escrever. Quando dei por mim, estava a escrever coisas que não interessavam para nada. Pensei apagar e começar de novo. Depois recebi um telefonema, depois isto e aquilo -- e não voltei a pegar-lhe. Nem ontem nem hoje. Há pouco, pensei que, se era para ser diário, mais valia escrever qualquer coisa em vez de escrever no blog. Mas, quando fui à procura dele, já não me lembrava do nome que tinha dado à pasta. Tive que entrar pelo word para encontrar o dito cujo. E agora estou aqui a escrever isto e a pensar que o melhor é esquecer aquilo. Não tenho disciplina para diários. Venho aqui ao blog porque isto é numa base anarca, escrita-livre: escrevo sobre o que calha e não me preocupo em ter uma sequência coerente. Num diário, digo eu, haveria de ser mais organizada na escrita, mais dissertativa. Não é para mim.

Enfim.

Bem, distraí-me e falei de tudo e de nada e não expliquei porque é que foi um dia importante para mim. E agora já é tarde. 

Também não ia dizer... (queriam...)


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E, agora, para que não se pense que me esqueci da suprema cavalgadura, aqui está ela. Sempre tive para mim que um tipo que nem sequer sabe estar à mesa é para esquecer. Olhem bem para este animal aqui abaixo. Tira um bocado, inspecciona, volta a pôr no prato. Um burgesso, um trongalaronga que nem sabe estar nem conversar. Se não tem maneiras para estar à mesa, como haveria de ter maneiras no resto? 

Nem vale a pena a gente perder muito tempo com uma besta destas (pardon my french), há-de cair por si.

(Quanto ao pormenor da bota acho que também não há muito a dizer. É a kultura, dirão os amantes da grande alma russa. E o que eu tenho a dizer é que sim, sim, está bem, abelha)

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As fotografias provêm de Leap of the imagination: the best of Photo London 2022 – in pictures onde há outras igualmente interessantes

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Desejo-vos um dia tão bom quanto possível

Boas descobertas. Boa sorte. Tudo a correr pelo melhor. Paz

8 comentários:

Segismundo disse...

Marc Bloch (1886-1944) disse que «a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado». E o nosso Teixeira de Pascoaes (1877-1952) dizia que o futuro é a aurora do passado. Não tenha medo do passado e recorra a ele cada vez que o presente não lhe faça, aparentemente, sentido. Reflicta e pense, eu sei que é chato, mas às vezes é vantajoso. De resto, eu não me chateio nada que se julgue que o senhor Putin é o maior facínora existente, e que o resto é tudo gente do melhorio. Até aí tudo bem. Durmo bem com isso. O que eu acho é que por aí campeia grande hipocrisia, porque tenho a certeza de que se os USA invadissem a Nicarágua ou o México (a quem no século XIX espoliaram cerca de 50% do território, por via do Destino Manifesto), ou se a França entrasse pelo Burkina Fasso adentro, a coisa era tratada de modo diferente, e eu sei muito bem porquê, mas não digo que é para não ferir susceptibilidades. E, por ora, fecho este ciclo epistolar. Amanhã, ao pôr-do-sol, partirei à desfilada, rumo às montanhas brancas da Amazónia, onde vou amamentar jaguares e terminar a minha colecção de escaravelhos trombudos, por recomendação expressa do último faraó da III dinastia egípcia, que me informou, secretamente, existirem, em Mértola, duas ânforas com o vinho remanescente das bodas de sua alteza o rei Benevides Saturnino Escangalhado, da Casa do Cadaval, que, em 2024 se esqueceu de um balde atulhado de nenúfares azuis, relíquia que, supostamente, Jesus Cristo havia oferecido a Maria de Magdala, quando esta lhe perguntou por que a Terra era redonda quando, afinal de contas, os equinócios permaneciam a jusante da linha do Equador, sendo que então Cristiano Ronaldo alvitrou que se acabasse com aquela conversa por a Georgina ser filha de pai incógnito, ao que João Batista, que nesse momento saia do Jordão, onde acabara de baptizar 7643 gentios, respondeu que isso não tinha importância alguma porque ele próprio descendia de uma pomba branca. Au revoir UJM.

Arménio Pereira disse...

O que para uns é heróico combatente p'la liberdade para outros não passa dum imbecil numa fardeta qualquer.
Não interessa: os seres humanos não foram feitos para escapar ao confinamento dualista; mas eis uma pista: Tudo é necessário, até deixar de ser.

Arménio Pereira disse...

(7 : God's pH)

We all do the same
(we do it all the same):
We do what we can to become
what we're supposed to be.
What are we?
A bittersweet degree.

(You're welcome)


(7 : o pH de Deus)

Não importa o que fazemos,
todos fazemos o mesmo:
fazemos o que devemos
para ser o que pudermos.
O que seremos?
Uma vida a mais,
a mais, ou a menos.

(dulçacre ? cul-de-sac)

Não importa o que fazemos,
todos fazemos o mesmo:
fazemos o que podemos
para ser o que devemos.
O que faremos?
Viver mais,
ou mais ou menos?

Arménio Pereira disse...

(orago)

Tormenta
ou porto seguro,
calma ou
vertigem da paixão:
uns são arrastados,
outros não dizem que não.

Há quem viva no conforto firme das convicções;
outros, na suavidade macia das suas questões.
Firmes, macios, agrestes, doces:
seremos felizes, teremos desgostos.


[A vida tem sido doce exílio, suave pena(lidade) - asserções com um lado luminoso e outro sombrio; nenhum deles anula o outro, o sombrio leva a palma porém. Porquê? Só Deus & Demo sabem, e mais ninguém.]

Um Jeito Manso disse...

Olá Segismundo,

Será que V. é uma mulher? Que conversa é essa de ir amamentar jaguares? Instinto maternal? E vai de biberãozinho? Conte-me tudo.

E só espero que, vá para onde for (mesmo que o seu destino seja outra divisão da sua casa), vá sempre para onde haja rede para poder continuar a visitar-me e deixar aqui epístolas assim em que me leve pela mão nessas viagens extraordinárias que atravessam épocas e geografias. Já agora: se um dia lhe ocorrer oferecer-me nenúfares azuis, não mos apresente atafulhados em baldes. Se faz favor, prefiro numa taça de vidro com água. O vidro pode ser azul, verde ou transparente. Obrigada.

Quanto àquilo de ter a certeza de como seriam as reacções (a minha, incl.) caso os USA invadissem o México ou a França o Burkina Fasso o que tenho a dizer-lhe é o seguinte: vai uma apostinha...?

À bientôt, Segismundo.

Um Jeito Manso disse...

K.

O que seremos?
Uma vida a mais,
a mais, ou a menos.

O que faremos?
Viver mais,
ou mais ou menos?


O que viveremos?
Menos que uma vida?
Nada mais do que uma não-vida?
Entre o que podemos e o que devemos, o que seremos?
Como estaremos?

Acomodados no porto seguro do desgosto?

Ou desistiremos de viver?
Ou desistiremos de ser?

Ou deixar-nos-emos ir
na torrente da paixão?

Antes que deixemos de ser necessários, vamos viver.

Um sábado luminoso, K.

aamgvieira disse...

Para o Srº ou Srª Segismundo ou Segismunda:

"Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos."

Padre António Vieira

A.Vieira

Um Jeito Manso disse...

A. Vieira

Bem visto.

O comentário não era para mim mas gostei e, por isso, venho dizer que está bem apanhado, sim senhor.

Bom domingo, Alexandre.