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sexta-feira, março 25, 2022

Como falar de jade-rollers e outras futilidades sem que sintamos que estamos a interiorizar a banalidade do mal?

 



O dia foi longo. Quando acabámos de jantar passava das onze da noite. Estou cansada e com sono e o que me vale enquanto escrevo é que, enquanto escrevo com a direita, massajo o rosto com o jade-roller que, na terça-feira à hora de almoço, comprei no Ale-Hop. É um objecto bonito, com umas translúcidas pedras cor de rosa suportadas por metal acobreado. Quando lhe pego, as pedras estão frias e a sensação da pedra macia e fria a rolar no rosto é bastante agradável. Nunca apliquei botox ou fiz lifting ou o que quer que seja. Por vezes, o YouTube, sabendo as saudades que, por vezes, sinto das revistas que via quando ia ao cabeleireiro, propõe-me tutoriais de moda ou de rotinas de beleza. Vejo com alguma curiosidade pois são apresentados como coisas simples, quase como apenas lavar a cara com água e sabão azul e branco e, afinal, são todo um processo. Põem produtos em cima de produtos e, se as mulheres começam com um aspecto normalíssimo, com algumas imperfeições, até com olhos pequenos e lábios secos, acabam com menos anos, sem rugas, sem olheiras, olhos grandes e lábios carnudos. E eu vejo aquilo e sinto-me uma descuidada. Lavo a cara, coloco um hidratante, uma leve sombra nas pálpebras superiores e está feito. Se tenho reunião, ainda ponho um pinkezito nos lábios mas, tirando isso, nem creme para isto, creme para aquilo, anti-olheiras, base, pó, iluminador, máscara, preenchimento de sobrancelhas, etc. Mas agora, com este instrumento, tenho esperança que produza o mesmo efeito que tudo o que não uso. E, se não produzir, paciência, pelo menos mantem-me acordada enquanto o uso.

Estou agora a ver as notícias. Hoje uma pessoa dizia-me que já não conseguia ver notícias pois já andava a sentir-se deprimido, não suportando a impotência perante o grau de violência de Putin e o sofrimento dos ucranianos. A minha mãe diz-me a mesma coisa, que já não quer ver notícias, diz que, sempre que vê o que está a passar-se, fica incomodada, não se sente bem. Ouço isto e receio que isto venha a acontecer comigo, com toda a gente: cansarmo-nos de ver tanta violência, alhearmo-nos da destruição e do sofrimento dos que estão a ser tão vilmente atacados, deixarmos que o criminoso aniquile um país. Quando o mal é assimilado como uma coisa normal é a morte que se metastiza na nossa vida. 

A minha mãe de vez em quando fala de quando era miúda e havia guerra e havia falta de tudo. Ouvia-a falando disso como se se tratasse de uma realidade remota, irrepetível, coisa de outros tempos. Na nossa Europa, agora estável, as fronteiras sagradas, ter havido uma coisa tão medonha  quase parecia coisa de há mil séculos. Quando mais recentemente tantas guerras têm acontecido, embora qualquer guerra seja sempre um buraco negro por onde a vida é sugada, parece que, mesmo que involuntariamente, a minha mente parece que colocava um qualquer filtro que me impedia de as encarar com excessivo realismo. Na minha mente era como se fossem conflitos ancestrais, lutas irracionais por fronteiras, casos de loucura exacerbada como os que levam algumas pessoas a matarem-se por uns centímetros nas extremas de um terreno, povos habituados à violência, civilizações para quem a vida não tem assim tanto valor, alguns arriscam-na para conquistar o paraíso e para irem fazer companhia a bandos de virgens, lugares onde as religiões andam com armas à cintura. Na minha cabeça, alguns eram lugares relativamente longínquos, de instabilidade e sofrimento, quase sem salvação possível, um triste escoadouro de armamento e munições que mantinham florescente a indústria das armas. Mas, de repente, quando estávamos ainda a digerir a nossa fragilidade perante um vírus, acontece uma coisa destas, aqui perto, uma coisa feroz, desalmada, desumana, numa era em que todos queremos paz e amor -- e tudo parece inconcebível, imperdoável e, sobretudo, muito triste.

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Mas se me compadeço e me solidarizo com os ucranianos, vítimas de uma chacina, tenho que repetir o que já no outro dia referi: tenho também muita pena dos pobres soldados russos que não passam de carne para canhão ao serviço de um louco. Não se sentem motivados para esta guerra, sofrem o frio, a fome e, tantos, o abandono e o medo. E, pelo que se vai sabendo, tirando a força bruta dos bombardeamentos que arrasam habitações, escolas, hospitais, teatros, gente indefesa, o resto demonstra desgoverno e, até, alguma desactualização tecnológica. Ouço falar em corrupção como envolvente do que parece ser um descalabro militar. Mas seja ou não seja, que preço estão estes jovens a pagar? Tal como no outro dia aqui falei, quantos destes rapazes se tornam corpos que ninguém vem resgatar...?

O vídeo abaixo é impressionante e elucidativo. Já tinha visto vídeos com comunicações russas interceptadas mas não os tinha aqui referido pois não sabia se era informação fidedigna. Parecia-me quase impossível. Mas este vídeo é do The New York Times e tudo foi checkado, inclusivamente duplamente checkado, confrontando imagens com o que as informações que militares russos trocavam entre si. Chega a ser desconcertante. Mas é, sobretudo, muito triste. Se os ucranianos lutam com unhas e dentes e anima-os a força de defenderem o seu país, estes pobres soldados estão também a passar por horrores sem saberem porquê e, pelo que se percebe, sentindo-se desprotegidos, desapoiados.

Russia Struggled to Capture a Ukrainian Town. Intercepted Radio Messages Show Why

The Times’s Visual Investigations team analyzed dozens of battlefield radio transmissions between Russian forces during an initial invasion of the town of Makariv, outside Kyiv. They reveal an army struggling with logistical problems and communication failures.


Россия пыталась захватить украинский город. Перехваченные радиосообщения показывают, почему

Группа визуальных расследований The Times проанализировала десятки радиопередач с поля боя между российскими войсками во время первоначального вторжения в город Макаров под Киевом. Они показывают армию, борющуюся с проблемами логистики и сбоями связи.

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Pinturas de Kandinsky ao som de Scriabin -- Poeme Op 32 No 1 na interpretação de Horowitz

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Dias felizes.
Espero que o mundo trave Putin. Sobretudo, espero que os russos travem Putin.
Saúde, paz e amor.

domingo, outubro 24, 2021

E para o OE não vai nada, nada, nada...?
Tudo! Tudo! Tudo!
[Para disfarçar, inclui crónica do meu pequeno dia]

 


Não me interessa muito esta chicana do orçamento. Todos os anos é isto. Um filme pouco inspirado que se repete ano após ano.

As do Bloco de Esquerda gostam de se pôr em bicos de pés e não conseguem resistir à tentação de assim andarem a toda a hora mesmo quando isso é despropositado. A forma como falam, como se tivessem o rei na barriga, é pateta. Poderia dizer que é patético mas acho que a palavra é grande demais para elas. Na minha terra, em situações assim, diz-se: 'já o carapau tem tosse...'.  É que não se enxergam. Acham que podem impor ao país a sua vontade, esquecidas da insignificante votação que tiveram. Não se aguenta. Estas suas atitudes despropositadamente impositivas e arrogantes penalizam-nas em todas as eleições mas, armadas em reizinhos, não percebem que cada vez há menos pessoas a terem pachorra para elas.

O PCP tem outra atitude, são gente crescida, gente confiável. O problema deles é outro. Ainda vivem num outro mundo. Confundem os sindicatos que ainda controlam -- e que representam cada vez menos gente -- com as reais preocupações do mundo laboral. Mantêm-se agarrados a causas que interessam cada vez a menos gente. Muito do que era o seu eleitorado típico está agora a marimbar-se para o que ainda são as causas comunistas. 

Muitos que integram o anteriormente designado proletariado, nomeadamente o operariado ligado a empresas industriais, estão-se nas tintas para a precariedade e para as carreiras. Querem é andar de empresa em empresa, consoante lhes paguem melhor. Por exemplo, quando alguma empresa os quer contratar, dizem: quero ganhar mil e quinhentos líquido. Ou mil e oitocentos, o que for. Tanto se lhes dá se recebem metade por baixo da mesa ou por fora, tanto se lhes dá se o que é descontado para a segurança social é o mínimo dos mínimos. E se lhes oferecem mais para irem trabalhar lá para fora, nem pensam duas vezes, vão. E se puderem fazer carradas de horas de extraordinárias, melhor. Na minha terra também se diz sobre atitudes assim: tudo o que vem à rede é peixe. E é nessa que estão muitos dos actuais operários. Preferem empresas de vão de escada, que fogem a responsabilidades, ao fisco, às recomendações da ACT mas que lhes garantem o 'líquido' que eles pedem. Ora, nestas águas, o PCP já está fora. 

Ou seja, os poucos por cento que o PCP representa já não têm muito a ver com nada da vida real.

Portanto, o pobre do Costa ali anda, sem dormir, a aturar uns e outros a ver se consegue que viabilizem o Orçamento.

À direita o despautério é ainda mais oco, embora seja mais colorido, mais divertido. 

No PSD devoram-se uns aos outros. A galinha cacarejante continua a ser levada ao colo pela comunicação social, mostrando-se entusiasmada com o que imagina ser uma onda laranja que, na realidade, não existe. E o desagradável mangas de alpaca que, volta e meia, quer dar um ar da sua graça mas apenas consegue que o olhem com algum espanto e comiseração, anunciou que vai outra vez a jogo. Entre uma galinha cacarejante e meio careca e um carapau de corrida venha o diabo e escolha. Não vão longe.

O CDS já não existe e o Chega é uma agremiação de patifes, malfeitores, fala-baratos e, num ou noutro caso, parece que verdadeiros bandidos. Portanto, nem vale a pena pensar no que querem. Não querem nada. Querem apenas fazer barulho e lançar confusão. Apenas existem porque a comunicação social lhes dá palco. Senão, seria fumaça que se dissiparia por si.

Depois há o PAN com a sua moçoila simpática e o IL com um líder que tem a vantagem de ser um peralvilho com alguma pinta. Conteúdo em qualquer dos casos: zero.

Portanto, o que posso dizer é que espero que o raio do orçamento seja aprovado e que, se não for, que o Costa siga em frente e governe na mesma.

E espero que o Marcelo consiga manter a cabeça fresca para pôr alguma ordem na mesa e assegurar a estabilidade suficiente para o país conseguir sair o melhor possível deste vulcão de desgraças que não pára de lançar lava e cinza sobre todo o mundo: pandemia, crise energética, escassez internacional de matérias primas. 

Só gente intelectualmente destituída ou desonesta é que pode achar que faria sentido, no meio disto, irmos agora para nova campanha eleitoral.

Enfim. Adiante.

Tirando isso, só se for para falar da minha vidinha, do meu pequeno dia. 

Dia tranquilo. Caminhada alargada. Depois supermercado. A seguir, fomos abastecer-nos a um nepalês, um restaurantezinho pequeno, simpático a meia dúzia de quilómetros daqui.

Ao chegarmos a casa, ao arrumar as coisas do supermercado, verifiquei que uma peça de carne não me cheirava bem. Arrumámos tudo menos isso. Depois fui pôr uma máquina de roupa a lavar. A seguir almoçámos parte do que trouxemos e constatámos com agrado que daria para três refeições. Muito bom. Que saudades tinha. Que bem que soube. 

Depois estendemos a roupa. Estava sol e ventinho, bom para secar.

A seguir fomos ao supermercado para entregar a carne malcheirosa e receber o dinheiro de volta, o que aconteceu sem piarem ou sequer confirmarem a veracidade da queixa. Dizem que as pessoas, por vezes, deixam as arcas frigoríficas abertas. Não sei. 

Dali fomos à minha mãe o que deixou o little baby bear doido de alegria. Abraçou-a, quis mordiscá-la, agarrou-a, correu e saltou em volta dela. Pelo meio tentou tirar a mantinha que estava no cadeirão e roubou-lhe um chinelo. A minha mãe só lhe chamava 'seu maluco'. No fim, para nossa surpresa e alegria da minha mãe, queria lá ficar. Só saiu de casa quando a minha mãe também saiu. Penso que é o espírito de pastor. Só sai quando todas as ovelhas saem.

Também estivemos com o meu tio, irmão do meu pai. 

Como não o conhecia, a pequena fera não deu confiança, manteve-se sentado a ladrar-lhe, depois rodeou-o a cerca de meio metro sempre a ladrar. Estava nitidamente desconfiado. O meu tio tentou fazer-lhe uma festa mas ele não deixou. Apenas ao fim de algum tempo, quando constatou que o meu tio não era um perigoso predador, é que começou a brincar com ele, já permitindo festas. Aí foi uma festa, tentou empoleirar-se, saltou. O meu tio falou dos cães da minha prima, aquele mais velhinho, grande, uma ternura, e este agora, mais novo, igualmente escolha da filha da minha prima. 

A seguir, fomos a uma clínica levar um aparelho de um exame cardiológico que a minha mãe tinha feito.

Quando chegámos a casa, apanhámos e dobrámos a roupa. E arrumámos coisas. E tomámos banho. E fomos jantar mais comidinha nepalesa.

E estivemos na sala da televisão, o peluche animado a tentar mordiscar-nos, a tentar arrancar o galão de uma banqueta, a tentar roubar-nos almofadas, a tentar arrancar a franja de uma coberta, a tentar roer as pernas de uma mesinha. O dono tenta educá-lo mas ele à educação diz nada, quer é brincar. É uma graça.

Agora ambos dormem, o pequeno urso peludo e o dono. 

E eu estou aqui, escrevendo como se estivesse a conversar convosco. Só que não vos ouço. 

Não sei como foi o vosso dia, não sei se já vestiram uma camisola mais quente ou se ainda andam com roupa de verão, não sei se preferem o ruído ou o silêncio, a confusão ou a solidão, não sei se gostam mais de ler ou de ver televisão. 

Mas, apesar de não saber nada de vocês, continuo a gostar de conversar convosco.


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Pinturas de Hamed Nada na companhia de Daniil Trifonov que interpreta : Etude, Op. 42 No. 5 de Scriabin

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Desejo-vos um belo dia de domingo

terça-feira, outubro 17, 2017

Tristeza e preocupação. E esperança.


Burning Oil Well at Night, near Rouseville, Pennsylvania
James Hamilton   ca. 1861


Há tantas e tão cruzadas causas -- há tanto acaso misturado com maldade com causas naturais extremas.

Há uma tal improbabilidade potenciada por elementos incontroláveis, há uma tal dimensão num desastre que se multiplica e projecta -- que é impossível, com meios humanos dimensionados para o provável, conseguir deter a besta sobre-humana que, como uma hidra de mil cabeças jorrando fogo, devorou algumas zonas do país.

Quando foi de Pedrógão já o disse e mantenho a opinião. Anos de incultura de toda a espécie, anos de abandono de terras, anos de redução de custos públicos, anos de laxismo e de más políticas, excesso de divulgação mediática dos incêndios num registo apoteótico, porventura um sistema judicial que não intimida os criminosos, porventura muito mercantilismo em áreas que deveriam estar ao abrigo de apetites espúrios, porventura estruturas pouco adequadas a situações limites, etc, etc, etc - não se resolvem de um dia para o outro, não se resolvem com a demissão de uma ministra, não se resolvem com uma competição entre comentadores a ver quem se sai com a tirada mais bombástica, não se resolvem com rostos piedosos e frases incendiárias.

Não vou, pois, alinhar em nada disso.

O momento é de consternação, desgosto, apreensão. E é de esperança de que tamanha mortandade e tamanha devastação sirvam para se parar para pensar, para equacionar de forma inteligente e equilibrada, o muito que há para fazer.

Não é tempo de atender à pressão mediática ou tempo de refregas partidárias. É tempo de seriedade e de mostrar que se ama, de verdade, o País.

de Mark Rothko

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E está a chover.

Enquanto escrevo, ouço a chuva. Ao fim de tantos meses de secura, finalmente a bênção da chuva.

Que bom. 

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segunda-feira, agosto 31, 2015

Vers la flamme


Quem assiste a tamanha beleza não pode fazer de conta que não viu. 

Toca-me a beleza o coração, a pele, os nervos, a alma. Toca-me e fica, por instantes, presa a mim.

Fecho os olhos e revejo, dentro de mim, o que o olhar me trouxe de fora. Tanta, tanta beleza.




O Tejo, os cargueiros ao longe, os elegantes veleiros, Lisboa, suave, suave, o sol que se põe, a luz dourada que se encosta às águas. Fecho os olhos e tudo se mistura ternamente com os meus pensamentos.

Fecho os olhos e vejo um céu navegando nas águas de um rio dourado, lembranças de outros dias, sonhos esfumados, poalhas de luz trazidas pela toada doce que escuto dentro de mim. 




Depois a luz dourada desaparece, agora há um brilho metálico, e os barquinhos não parecem de verdade. Talvez lá vão pessoas de verdade mas eu quase não as vejo. 

As águas parecem estremecer ao de leve sob esta luz prateada.

Noto, então: um veleiro vai, afasta-se de mim, segue o seu caminho rumo a um outro horizonte. E outro vem, aproxima-se, pára. E então reparo em alguém que lá vem. Alguém. Alguém trazido pela luz, sobre as águas, braços abertos, talvez o coração também aberto, respirando a beleza infinita a que eu também assisto.

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Grigorij Sokolov interpreta "Vers la flamme" de Alexander Scriabin 

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sexta-feira, agosto 14, 2015

Eis-me sem explicações crucificada em amor: a boca o fruto e o sabor


Pensa que poderia ouvi-lo ao longo de muitas horas, muitos dias. E, pensando isto, interroga-se: muitos anos? Mas deixa a pergunta a pairar, a pairar dentro de si.






Pensa que gostaria de passear com ele, pensa na tal aldeaziña galega, um lugar de mar e frios, pensa que gostaria de se agasalhar. Pensa nele e pensa que há qualquer coisa no seu olhar desabrigado que pede aconchego. 

Pensa nele e pensa que quer que ele lhe fale de reinos perdidos, de florestas, de templos, de outras civilizações, de castelos, de palácios, e quer que ele descreva tudo como se para lhe fazer lembrar outros tempos em que ambos estiveram juntos.

Talvez pudessem passar umas semanas na vila que se debruça sobre a enseada onde o mar se acolhe em sossego.



Uma casa no meio da aldeia. Ou um pouco afastada, talvez. E a casa terá um quintal grande, árvores, pássaros nas árvores. E terá uma varanda virada para o quintal e ambos sentar-se-ão lá, agasalhados, talvez uma manta sobre as pernas ou a envolver-lhes os ombros, talvez se sentem num cadeirão de dois lugares e irão lendo livros enquanto se chegam um ao outro para se aquecerem, e irão olhando as árvores, o sol que se põe, a noite que começa a cair, o gato que salta do outro lado para se pôr ali, sossegado a olhar para eles.



Outras vezes estarão abraçados junto à varanda que dá para o mar, olharão os veleiros que passam, as gaivotas, olharão os reflexos de luz nas águas. Pouco dirão porque estarão emocionados, tantas vidas noutros mundos para agora estarem ali, unidos, o corpo, a alma, o coração. Ele dirá de vez em quando ‘olha a cor do mar’ e ela dirá ‘e a do céu’. E ele estreitá-la-á mais, como se querendo impedi-la de se perder dele. 

Às vezes, enquanto escolhe o que há-de vestir ou enquanto se põe de lado para se ver melhor ao espelho, a mulher verá como ele a olha, umas vezes sorrindo, outras muito sério. Perguntar-lhe-á ‘o que é?’ e ele encolherá os ombros, ‘nada’ e ela irá sentar-se junto a ele, o braço enfiado no dele, encostará a cabeça ao seu ombro, far-lhe-á uma festa no rosto. Nada dirão. 

Depois, ao jantar, uma pequena vela sobre a mesa, um vinho bom, a mão de um tocando a mão do outro, ela pedir-lhe-á, ‘um poema’ e ele dirá um e outro, tantos quantos ela pedir. Mas ela não pedirá muitos, receará que ele diga que não sabe mais. 

Um dia, quando ele menos esperar, dirá ela um poema, talvez aquele de que tanto gosta:

Eis-me sem explicações 
crucificada em amor: 
a boca o fruto e o sabor.

Imagina que ele sorrirá, admirado. Talvez veja nisso uma declaração de amor ou, mais do que de amor, de desejo. Ela dirá ‘é um poema pequeno, é o único que consigo fixar, a minha cabeça não dá para mais’. Ele sorrirá, ‘então, se por incapacidade de memorização, teve que ser selectiva, permita que lhe diga que seleccionou muito bem’. E logo de seguida, ele, com a sua boa memória, repetirá:

‘      Eis-me sem explicações 
       crucificada em amor: 
       a boca o fruto e o sabor.

Ah, este eu não posso dizer, este só pode ser dito por uma mulher’.

E aproximar-se-á e dirá em voz muito baixa, quase como se segredasse, ‘deixe-me ver a que fruto sabe a sua boca’ e beijá-la-á e ela deixará que, devagar, ele seinta o sabor do sumo do fruto da sua boca.
E, enquanto pensa nisso, diz em voz muito baixa, 'o sumo do fruto da minha boca'. Depois diz 'prova-o'.
À noite, na cama, lendo cada um o seu livro, de vez em quando um pousará o seu e pedirá que o outro leia em voz alta. Adormecerão muitas vezes assim, a voz de um embalando o outro.

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Adormeceu.

Mais tarde, a mulher abre os olhos, respira fundo. Volta a fechá-los, volta a imaginá-lo. Volta a vê-lo silencioso e sério.

Levanta-se, vai até à janela, espreguiça-se. Deixa-se estar ainda sob o efeito do pensamento.

Sacode o cabelo, agita os ombros, afasta o homem da sua cabeça, do seu corpo.

Afinal foi apenas uma curta entrevista.


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  • Lá em cima era Richter a interpretar Scriabin (Sonata no. 2, Op 19 (movement 1))
  • O pequeno poema é de Natália Correia.
  • As imagens mostram Muros e uma das suas casas. 
  • A mulher que escolhi para dar corpo à jornalista é, uma vez mais, Kristin Scott Thomas.
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Hoje os meus filhos, depois do trabalho, foram para os concertos do Sol da Caparica. Daqui a nada chegará ela, que virá pernoitar por cá. Os seus dois rapazinhos já aqui estão a dormir depois de terem jantado como uns leões esfomeados, a seguir feito ginástica, depois jogado à bola, a seguir ao Jogo da Glória (com várias tentativas de batota pelo meio), terem andado a desafiar o avô com 'truques', tendo ele que se recordar dos seus tempos de jovem quando praticava karaté, depois ceado forte e feio como se não comessem há muitos dias e, para rematar, me terem posto a inventar histórias de ursos em grutas guardadas por bombeiros e etc. -- até que adormeceram de súbito.
Os outros dois pimentinhas ficaram com a outra avó e virão para cá no sábado já que o Sol da Caparica continua e os pais não o querem perder.
Por isso, como é bom de ver, depois de um dia de trabalho, com uma empreitada destas, estou mais do que perdida de sono e já nem sei muito bem o que é que estive para aqui a inventar.

Portanto, com vossa licença fico-me já por aqui que daqui a nada tenho que estar a pé e estou mesmo a ver que vai ser o bom e o bonito para os arrancar de cá a horas decentes.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira. 
Divirtam-se e sonhem. Sonhar é bom.

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