Comecei o dia muito cedo e sabia que a coisa não ia ser fácil. Mas foi ainda pior. Na sequência de uma outra faena que tinha sido também bem complexa, ia preparada para esgrimir argumentos num sentido. Acho que sou dura na queda e, se acredito numa coisa, defendo-a com convicção. Mas não ia preparada para mais um flic-flac da outra parte. Suponham, os meus Caros, que, por exemplo, eu fazia uma cuidada e equilibrada dieta mediterrânica e tinha pela frente um pançudo que comia quilos de bifes a escorrer sangue, carregados de molhos picantes e acompanhados de quilos de batatas fritas. Ia preparada para o esclarecer sobre os malefícios do seu regime. Contudo, ao sentar-se à minha frente, para minha surpresa, ele apresentava-se como vegan. Eu a ver que não mas ele, convictamente, a esgrimir argumentos opostos aos expectáveis, a dar-me, a mim, lições de boa alimentação. Desconcertada, sairia dali furiosa. E, dias depois, indo eu preparada para rebater as vantagens do regime vegan, apanho-o pela frente e agora já não é vegan mas adepto de um regime à base de ovos crus e vinho do Porto. Ou seja, uma conversa de surdos, divergente, uma conversa impossível, assente em coisa nenhuma. Assim foi. Um cansaço e uma deprimente perda de tempo.
E quando, depois disto, me preparava para um almoço descansado, ainda que breve, eis que desaba um problema, coisa na base do susto completo: a possibilidade do céu nos cair em cima da cabeça vista de perto. Declaração de situação de emergência, um grupo sem saber bem o que estava a acontecer -- mas que não era bom não era. E sem que quem talvez pudesse ajudar atendesse o telefone. Uns com o telemóvel no silêncio, outros com o telemóvel no bolso e, no restaurante, sem ouvirem.
E quando, depois disto, me preparava para um almoço descansado, ainda que breve, eis que desaba um problema, coisa na base do susto completo: a possibilidade do céu nos cair em cima da cabeça vista de perto. Declaração de situação de emergência, um grupo sem saber bem o que estava a acontecer -- mas que não era bom não era. E sem que quem talvez pudesse ajudar atendesse o telefone. Uns com o telemóvel no silêncio, outros com o telemóvel no bolso e, no restaurante, sem ouvirem.
Depois, finalmente, uma explicação, um grupo de crise montado, a resolução a caminho.
Um almoço a correr, entre telefonemas, mails e mensagens.
E logo de seguida outra reunião e mais situações e diferenças de pontos de vista e mais coisas e mais coisas e mais coisas e mais reuniões nos próximos passos.
E, ao sair, mais uma chusma de mails e recados e problemas e sei lá que mais. E uma constipação a caminho.
Ao chegar a casa, meio exaurida da cabeça e a sentir-me engripada, diz o meu marido: eu se fosse a ti não ficava por dormir como dormes, sem nada por cima, janela aberta: ligava a ventoinha e apontava bem às costas.
É que não apenas sou eu que durmo do lado da janela (aberta) como durmo sem patavina em cima. Ele, ao meu lado, tapa-se com lençol e manta (fininha mas manta). Volta e meia ainda tenta pôr-me uma perna por cima mas tem a perna tão a ferver que o enxoto logo, não suporto dormir com um tição em cima. No inverno, como também durmo com pouca roupa, sabe-me bem encostar-me a ele mas no verão é impossível.

Mas isto tudo para dizer que há dias complicados, com pouca coisa boa.
Valeu uma coisa: enquanto conduzia, uma reportagem sobre ECT, tratamentos com electrochoques. Juraria que foi na Antena 2 mas agora, antes de escrever, fui confirmar e não encontro. Para mim, um tema surpreendente. Falavam pessoas bipolares, outras com depressão, um com esquizofrenia. E falavam psiquiatras. E eu ia a ouvir com muito interesse, com vontade de conhecer melhor esta realidade, com muita pena das pessoas que sofrem assim, muitas vezes sentindo-se estigmatizadas, muitas vezes sem compreenderem porque se sentem tão arrasadas.
Pensei numa rapariga que trabalha numa das empresas e que desliza pelos corredores, com ar alheado, muitas vezes como se estivesse à beira das lágrimas. Quando a vejo passar assim, como se não estivesse ali, tenho vontade de a puxar para o meu gabinete e pedir-lhe que me conte o que se passa. Mas não sou psicoterapeuta, receio não saber lidar com o que imagino ser uma situação muito pesada, um outro mundo, um mundo onde não deve ser nada fácil estar, onde não se entra como se de visita -- teria que saber ajudar e temo não saber.
Pensei numa rapariga que trabalha numa das empresas e que desliza pelos corredores, com ar alheado, muitas vezes como se estivesse à beira das lágrimas. Quando a vejo passar assim, como se não estivesse ali, tenho vontade de a puxar para o meu gabinete e pedir-lhe que me conte o que se passa. Mas não sou psicoterapeuta, receio não saber lidar com o que imagino ser uma situação muito pesada, um outro mundo, um mundo onde não deve ser nada fácil estar, onde não se entra como se de visita -- teria que saber ajudar e temo não saber.
E agora, enquanto escrevo, está a dar a Prova Oral com o grande Alvim e está lá o Manuel João Vieira e eu simpatizo tanto com ele. No outro dia, eu ia a descer as escadas que mergulham num parque subterrâneo e, à minha frente, ia um homem grande, de físico pesado, chapéu de aba larga. Ao fim do segundo lance, ele entrou para o parque e, nessa viragem, eu, que continuei a descer porque tinha o carro num piso mais abaixo, vi-lhe o rosto: era o Manuel João. E eu, em silêncio, soltei uma exclamação: 'Ah! O Manuel João!' e tive mesmo vontade de ir atrás dele e dizer-lhe: 'Simpatizo imenso consigo'. Mas nunca fiz isso com ninguém, não ia estrear-me logo com ele. Seria embaraçoso para ele e para mim. A fazer alguma coisa, teria que fazer uma coisa lógica, à altura dele, não um elogio dito de forma meio irracional.
No programa está também a Fanny que fala de coisas que não são já bem do meu mundo, diz que faz stories para manter o número de seguidores, e eles, ali no programa, mostram uns pequenos vídeos onde ela faz toda a espécie de parvoíces. Dá ideia que quanto mais parvoíces fazem para postar no Insta mais gente os segue. E nem sei bem que espectáculo é aquele em que ela vai entrar com o José Castelo Branco, fala creio que em roast. Quando lhe perguntaram um momento especial de manifestação de apreço, se foi quando saíu de algum reality show, a Fanny contou que uma mulher pôs uma mama de fora e pediu para ela a autografar. Uma coisa assim talvez fosse à altura do Manuel João. Eu, de salto alto, muito comportada, e fazer-lhe uma destas. Contudo, acredito que ele, na verdade um cavalheiro, ajeitasse o chapéu para disfarçar alguma estupefecção, e, a seguir, talvez mostrasse alguma caridade, talvez me aconchegasse o decote, me pegasse pelo braço e, cautelosamente, me levasse até ao Júlio.
E agora que aqui estou a descansar, percorri as news e dei com outra coisa desconhecida, uma coisa que penso que, se calhar, também já não é do meu mundo. E já nem falo da parvalhona da Ivanka, boneca insuflada, filhinha de papai, levada a passear ao G20, um absurdo que nem o mais maluco se lembraria de inventar. Falo de outra coisa. Falo destas pessoas que aqui abaixo se vêem.
Aliás, terei que aprofundar porque nem estou certa de ter percebido bem de que se trata. Influencers virtuais. Vi as fotografias e fiquei na dúvida se é gente, se é coisa. Posam, mostram-se com roupas, parece que vão para o exterior, umas stars. Mas leio que é virtual, tudo virtual. Se calhar o exterior também é virtual. Mas têm montes de seguidores e parece que, agora, isso é que importa. E há vídeos com elas. E as casas de moda recorrem a elas. Elas e eles. E eu olho e não percebo o que é aquilo que vejo, nem percebo que descaminho é este em que os humanos parecem que gostam de seres inexistentes que emulam os humanos. Tudo demasiado estranho.
Sinto-me como que incomodada, aquela sensação estranha de não saber bem onde estou. Na volta é aquilo da zona de conforto, ou seja, é capaz de ser caso para dizer que esta gente virtual me tira da minha zona de conforto.
Por isso, fujo.
Leio, então, sobre árvores e livros, sobre lágrimas e terra, sobre coisas de estimação, frágeis, sobre pernas cruzadas que lembram o verão e figos e Godot e o mar, sobre sabores e cores e outros momentos e pensamentos de gente de verdade -- e isso traz-me o meu mundo, um mundo afável, diverso, humano, um mundo com recantos onde é bom estar, que apetece descobrir ou imaginar.
E, de caminho, vou em busca da paz dos bosques, do som da água, do canto dos pássaros, da música tranquila, dos gelados feitos com frutas, flores, vagares e sons familiares e envoltos em harmonia.
No programa está também a Fanny que fala de coisas que não são já bem do meu mundo, diz que faz stories para manter o número de seguidores, e eles, ali no programa, mostram uns pequenos vídeos onde ela faz toda a espécie de parvoíces. Dá ideia que quanto mais parvoíces fazem para postar no Insta mais gente os segue. E nem sei bem que espectáculo é aquele em que ela vai entrar com o José Castelo Branco, fala creio que em roast. Quando lhe perguntaram um momento especial de manifestação de apreço, se foi quando saíu de algum reality show, a Fanny contou que uma mulher pôs uma mama de fora e pediu para ela a autografar. Uma coisa assim talvez fosse à altura do Manuel João. Eu, de salto alto, muito comportada, e fazer-lhe uma destas. Contudo, acredito que ele, na verdade um cavalheiro, ajeitasse o chapéu para disfarçar alguma estupefecção, e, a seguir, talvez mostrasse alguma caridade, talvez me aconchegasse o decote, me pegasse pelo braço e, cautelosamente, me levasse até ao Júlio.
E agora que aqui estou a descansar, percorri as news e dei com outra coisa desconhecida, uma coisa que penso que, se calhar, também já não é do meu mundo. E já nem falo da parvalhona da Ivanka, boneca insuflada, filhinha de papai, levada a passear ao G20, um absurdo que nem o mais maluco se lembraria de inventar. Falo de outra coisa. Falo destas pessoas que aqui abaixo se vêem.
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Lil Miquela, Noonoouri, Shudu... Le phénomène des influenceurs virtuels |
Aliás, terei que aprofundar porque nem estou certa de ter percebido bem de que se trata. Influencers virtuais. Vi as fotografias e fiquei na dúvida se é gente, se é coisa. Posam, mostram-se com roupas, parece que vão para o exterior, umas stars. Mas leio que é virtual, tudo virtual. Se calhar o exterior também é virtual. Mas têm montes de seguidores e parece que, agora, isso é que importa. E há vídeos com elas. E as casas de moda recorrem a elas. Elas e eles. E eu olho e não percebo o que é aquilo que vejo, nem percebo que descaminho é este em que os humanos parecem que gostam de seres inexistentes que emulam os humanos. Tudo demasiado estranho.
Sinto-me como que incomodada, aquela sensação estranha de não saber bem onde estou. Na volta é aquilo da zona de conforto, ou seja, é capaz de ser caso para dizer que esta gente virtual me tira da minha zona de conforto.
Por isso, fujo.
Leio, então, sobre árvores e livros, sobre lágrimas e terra, sobre coisas de estimação, frágeis, sobre pernas cruzadas que lembram o verão e figos e Godot e o mar, sobre sabores e cores e outros momentos e pensamentos de gente de verdade -- e isso traz-me o meu mundo, um mundo afável, diverso, humano, um mundo com recantos onde é bom estar, que apetece descobrir ou imaginar.
E, de caminho, vou em busca da paz dos bosques, do som da água, do canto dos pássaros, da música tranquila, dos gelados feitos com frutas, flores, vagares e sons familiares e envoltos em harmonia.
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I always wanted,
to return
to the body
where I was born.
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As pinturas que intercalei no texto são de Yoo Youngkuk
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Desejo-vos um belo dia. Alegria e saúde. E amor.
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Desejo-vos um belo dia. Alegria e saúde. E amor.