Uma sonata para Lídia, por favor
Giovanni Bononcini - Sonata para dois violoncelos
**
O telefone chamou, chamou, e Lídia quase desligava, boca seca, sentindo que mal conseguiria articular palavra, mãos húmidas de nervoso, coração descontrolado, sem conseguir pensar no que diria depois de tanto que tinha tentado ensaiar. Percebia o ridículo da situação, tanta coisa por causa de um simples telefonema, tanta coisa apenas para combinar pagar um dinheiro que devia.
E então o clique, a chamada que se atende, Estou? E Lídia nada, toda ela um sobressalto, o coração disparado, uma amnésia, um vazio negro, e do outro lado, Está lá? E Lídia em pânico, quase a desligar, e agora o que é digo? E uma voz que já se irrita, Mau! Está lá? E ela amedrontada, Estou…, e era apenas um trémulo fio de voz.
Quem fala?, perguntou Paulo, impaciente, julgando tratar-se de uma brincadeira. Engoliu em seco, limpou a mão na saia, sou eu, a Lídia. Silêncio do outro lado. Lídia aflita a escutar a respiração densa de Paulo. Pensou, esqueceu-se. E então explicou, sou aquela que tem uma mãe doente e eu também adoeci e veio ajudar-me aqui a casa… Esperou e ele nada. Lídia, envergonhada, já arrependida de ter pensado que ele se lembrava, já não se lembra... E então ele disse, lembro-me, lembro-me muito bem. Pôs-me fora de casa sem uma explicação…, e Lídia percebeu que havia um tom de ironia, talvez de condescendência, talvez de caridade. E eu fiquei muito preocupado porque achei que você não estava em condições de ficar sozinha. Fui aí algumas vezes, toquei à porta lá em baixo e ou não me atenderam ou, nas duas vezes que fui à hora de almoço, atendeu-me uma mulher, que deve ser a sua empregada, que me disse que já estava tudo bem consigo e que não valia a pena eu voltar. Desisti. Ficou calado e Lídia calada ficou. Não se lembra de ter ouvido nenhuma campainha. Às vezes é para abrir a porta da rua para pôr publicidade ou o carteiro, qualquer coisa, se calhar não ligou, ou, então, o mais certo, estava a dormir, nos primeiros tempos dormia sem parar. Mas aquela conversa era coisa da D. Fátima, já se estava mesmo a ver, e não lhe tinha dito nada. Ele percebeu que ela não ia explicar nada, Mas tenho pensado em vocês. Como é que estão?
Lídia voltou a sentir uma vergonha muito grande, as lágrimas começaram a correr-lhe, sempre esta tristeza, sempre esta angústia no peito, uma garra silenciosa, o medo de rejeição, o medo de tudo deitar a perder. E afinal ele tinha-se preocupado. Lídia comovida, agradecida: não estava habituada a estas atenções. E a voz de Paulo, Estou?
E Lídia, num esforço muito grande, estou. E a sua voz era uma voz de menina pequena, de menina assustada, de passarinho. Paulo tentava perceber, mas é afinal o que se passa, que não a ouço?
E Lídia, a garganta num colapso, estou um bocadinho nervosa, desculpe e quase lhe saía um soluço. Paulo não disse nada durante um bocado mas depois falou e havia cuidado na sua voz, Então calma, respire, não fale agora, respire. Lídia sentiu-se ridícula, que figuras, credo… pensou, numa aflição. Paulo não via as lágrimas, apenas ouvia a voz tão trémula, mas diga-me uma coisa, aconteceu alguma coisa? Sinto-a tão nervosa… Lídia, não, não, não aconteceu nada. Paulo tentava acalmá-la, vá, respire, vá, já se sente melhor?... Então diga lá.
E Lídia disse, a voz muito cansada, muito lenta, muito gasta, uma leve lamúria atravessando o espaço, toda a vida com medo da opinião dos outros, não sair com os amigos, não chegar tarde, não ir de férias com os amigos, não usar saia muito curta, não usar calças muito justas, não usar blusas muito decotadas, não dar confiança aos rapazes, e o tempo a passar. As outras arranjando namorado, casando-se e eu sem sorte, sempre com cuidado, sempre com medo, sempre obediente. Fui ficando em casa com os meus pais. E então quem é que te ligou? Tu vê lá se não é para se aproveitar de ti… Tu não dês ouvidos, há muita malandragem, tu tem cuidado… e o tempo a passar. Depois morreu o meu pai e foi aquele desgosto e a minha mãe muito em baixo, anos de desgosto e eu a ter que a acalentar, um luto no corpo e na alma, e sempre tu não vistas isso que até parece mal agora que o teu pai morreu, tu não andes a rir na rua, o que é que hão-de dizer, ainda de luto e a para aí a rir, e os anos a passarem, e depois já todos os amigos e colegas se tinham casado e sempre aquele medo do que dissessem, não falar com homens casados para não ficar falada, e sempre aquele medo da censura, e ia de férias sempre com ela e ia ao cinema com ela, mas ela também pouco queria sair não fossem pensar que era viúva alegre, e fui ficando uma solteirona e ninguém já olhava para mim e já me sentia diminuída, uma imprestável que nunca ninguém quis, e depois ela adoeceu, esquecimentos, confusões, e eu pensava que eram mentiras que dizia mas depois percebi que a cabeça já não estava a funcionar e agora é isto que vê, uma desolação, falta de meios, falta de tudo, uma solidão tão grande, um cansaço, um sofrimento que nunca mais acaba e eu acho que já não consigo aguentar e olho para mim e vejo que não tenho vida própria, e olho para trás e vejo que nunca tive e olho para a frente e vejo que não há nada.
Parou, cansada, quase sem voz, os soluços enredados na garganta. Do lado de lá, silêncio. Paulo não sabia o que dizer perante tão inesperada confissão. Só lhe ocorreu dizer, estou a ver, mas tenha calma. Mas pensou, coitada, coitada.
Lídia nem conseguia acreditar no que estava a fazer, nunca tinha falado assim com ninguém, uma vida inteira de silêncios e agora esta vergonha, que conversa mais parva e logo com um desconhecido, que vergonha, que vergonha, o que iria ele pensar dela? Uma solteirona tonta, com certeza. Que vergonha, as lágrimas corriam sem parar.
Desculpe, nem sei o que foi isto, desculpe, não era isto que eu queria dizer, eu só queria pagar-lhe, fiquei a dever dinheiro, desculpe.
Paulo só sentia pena, não tem mal, não se enerve, pode falar, falar faz bem, desabafe se quiser.
Não, não, não sou nada disto, não sei o que foi isto que me deu, deve ser dos comprimidos, nem sei, desculpe, desculpe, que vergonha.
Paulo, olhe o dinheiro não é pressa mas, se quiser, eu passo aí.
Lídia não disse nada, atrapalhada, envergonhada. Depois assustou-se, não, aqui não.
Paulo percebeu, pois, desculpe, esqueci-me, diga então onde quer.
Mas Lídia estava bloqueada. Não sei, não conheço nada, não sei.
Paulo acalmou-a, ora essa, com certeza que conhece. Olhe o que acha do café que há no Cais do Sodré, uma casa de madeira que tem uma esplanada mesmo em cima do rio?
Lídia não sabia, nunca tinha visto, mas ele explicou-lhe tudo. Amanhã às 2 da tarde, pode ser? É boa hora para si?
Lídia não conseguiu raciocinar mas disse que sim, a cabeça esvaída.
Quando desligou o telefone toda ela era um tremor, um nervoso descontrolado.
Depois, aflita, e o que é que hei-de vestir? e a que horas tenho que sair de casa? e se ele ainda não estiver lá, o que faço? e o melhor é não ir, se não ainda vou para lá fazer vergonhas, desatar a chorar, que vergonha, e já só queria que Nita chegasse para lhe pedir ajuda.
A mãe chamava, Então mas então onde é que se meteram todas? tenho aqui o chá e os bolos e foram todas falar para outro lado? estávamos aqui a ver as fotografias, a minha irmã, a minha prima, a minha mãe, e as pequenas, todas aí numa chinfrineira e agora desapareceram todas. Onde é que andam? daqui a na parto o bolo e como-o eu sozinha. Falta de consideração. E já falava aos gritos, muito zangada. Estão a gozar comigo?! Estão a gozar comigo?!
E Lídia ouviu uma coisa que caía e os gritos Vão ver o que lhes faço! Vão ver! Sempre a gozarem comigo!
Lídia passou por ela, já vêm, mãe, estão quase aí. A mãe respondeu com indiferença, como se o assunto tivesse deixado de lhe interessar, Ah, está bem.
**
As imagens são partes de pinturas de Lucian Freud e são ainda as mesmas mulheres silenciosamente tristes .
Recordo que, para ler esta história desde o início, poderão procurar nas etiquetas aí do lado esquerdo, lá mais para baixo, 'Lídia - uma mulher muito triste'
**
Caso vos apeteça ainda dar um passeio pelo meu Ginjal, terão a bela música de Boccherini e hoje as minhas palavras são as palavras de uma mãe que ri como se risse deslumbrada quando afinal só sente uma cega dor, junto à explicação do sorriso de Daniel Faria.
**
E já chega não é? Calo-me já - mas não sem antes vos desejar saúde (tão importante que é a saúde) e felicidade.