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quarta-feira, setembro 26, 2012

Lídia, a mulher triste, tem uma estranha reacção enquanto telefona a Paulo


Uma sonata para Lídia, por favor



Giovanni Bononcini  - Sonata para dois violoncelos


**

O telefone chamou, chamou, e Lídia quase desligava, boca seca, sentindo que mal conseguiria articular palavra, mãos húmidas de nervoso, coração descontrolado, sem conseguir pensar no que diria depois de tanto que tinha tentado ensaiar. Percebia o ridículo da situação, tanta coisa por causa de um simples telefonema, tanta coisa apenas para combinar pagar um dinheiro que devia. 

E então o clique, a chamada que se atende, Estou? E Lídia nada, toda ela um sobressalto, o coração disparado, uma amnésia, um vazio negro, e do outro lado, Está lá? E Lídia em pânico, quase a desligar, e agora o que é digo? E uma voz que já se irrita, Mau! Está lá? E ela amedrontada, Estou…, e era apenas um trémulo fio de voz.

Quem fala?, perguntou Paulo, impaciente, julgando tratar-se de uma brincadeira. Engoliu em seco, limpou a mão na saia, sou eu, a Lídia. Silêncio do outro lado. Lídia aflita a escutar a respiração densa de Paulo. Pensou, esqueceu-se. E então explicou, sou aquela que tem uma mãe doente e eu também adoeci e veio ajudar-me aqui a casa… Esperou e ele nada. Lídia, envergonhada, já arrependida de ter pensado que ele se lembrava, já não se lembra... E então ele disse, lembro-me, lembro-me muito bem. Pôs-me fora de casa sem uma explicação…, e Lídia percebeu que havia um tom de ironia, talvez de condescendência, talvez de caridade. E eu fiquei muito preocupado porque achei que você não estava em condições de ficar sozinha. Fui aí algumas vezes, toquei à porta lá em baixo e ou não me atenderam ou, nas duas vezes que fui à hora de almoço, atendeu-me uma mulher, que deve ser a sua empregada, que me disse que já estava tudo bem consigo e que não valia a pena eu voltar. Desisti. Ficou calado e Lídia calada ficou. Não se lembra de ter ouvido nenhuma campainha. Às vezes é para abrir a porta da rua para pôr publicidade ou o carteiro, qualquer coisa, se calhar não ligou, ou, então, o mais certo, estava a dormir, nos primeiros tempos dormia sem parar. Mas aquela conversa era coisa da D. Fátima, já se estava mesmo a ver, e não lhe tinha dito nada. Ele percebeu que ela não ia explicar nada, Mas tenho pensado em vocês. Como é que estão?




Lídia voltou a sentir uma vergonha muito grande, as lágrimas começaram a correr-lhe, sempre esta tristeza, sempre esta angústia no peito, uma garra silenciosa, o medo de rejeição, o medo de tudo deitar a perder. E afinal ele tinha-se preocupado. Lídia comovida, agradecida: não estava habituada a estas atenções. E a voz de Paulo, Estou? 

E Lídia, num esforço muito grande, estou. E a sua voz era uma voz de menina pequena, de menina assustada, de passarinho. Paulo tentava perceber, mas é afinal o que se passa, que não a ouço? 

E Lídia, a garganta num colapso, estou um bocadinho nervosa, desculpe e quase lhe saía um soluço. Paulo não disse nada durante um bocado mas depois falou e havia cuidado na sua voz, Então calma, respire, não fale agora, respire. Lídia sentiu-se ridícula, que figuras, credo… pensou, numa aflição. Paulo não via as lágrimas, apenas ouvia a voz tão trémula, mas diga-me uma coisa, aconteceu alguma coisa? Sinto-a tão nervosa… Lídia, não, não, não aconteceu nada. Paulo tentava acalmá-la, vá, respire, vá, já se sente melhor?... Então diga lá.

E Lídia disse, a voz muito cansada, muito lenta, muito gasta, uma leve lamúria atravessando o espaço, toda a vida com medo da opinião dos outros, não sair com os amigos, não chegar tarde, não ir de férias com os amigos, não usar saia muito curta, não usar calças muito justas, não usar blusas muito decotadas, não dar confiança aos rapazes, e o tempo a passar. As outras arranjando namorado, casando-se e eu sem sorte, sempre com cuidado, sempre com medo, sempre obediente. Fui ficando em casa com os meus pais. E então quem é que te ligou? Tu vê lá se não é para se aproveitar de ti… Tu não dês ouvidos, há muita malandragem, tu tem cuidado… e o tempo a passar. Depois morreu o meu pai e foi aquele desgosto e a minha mãe muito em baixo, anos de desgosto e eu a ter que a acalentar, um luto no corpo e na alma, e sempre tu não vistas isso que até parece mal agora que o teu pai morreu, tu não andes a rir na rua, o que é que hão-de dizer, ainda de luto e a para aí a rir, e os anos a passarem, e depois já todos os amigos e colegas se tinham casado e sempre aquele medo do que dissessem, não falar com homens casados para não ficar falada, e sempre aquele medo da censura, e ia de férias sempre com ela e ia ao cinema com ela, mas ela também pouco queria sair não fossem pensar que era viúva alegre, e fui ficando uma solteirona e ninguém já olhava para mim e já me sentia diminuída, uma imprestável que nunca ninguém quis, e depois ela adoeceu, esquecimentos, confusões, e eu pensava que eram mentiras que dizia mas depois percebi que a cabeça já não estava a funcionar e agora é isto que vê, uma desolação, falta de meios, falta de tudo, uma solidão tão grande, um cansaço, um sofrimento que nunca mais acaba e eu acho que já não consigo aguentar e olho para mim e vejo que não tenho vida própria, e olho para trás e vejo que nunca tive e olho para a frente e vejo que não há nada.

Parou, cansada, quase sem voz, os soluços enredados na garganta. Do lado de lá, silêncio. Paulo não sabia o que dizer perante tão inesperada confissão. Só lhe ocorreu dizer, estou a ver, mas tenha calma. Mas pensou, coitada, coitada.

Lídia nem conseguia acreditar no que estava a fazer, nunca tinha falado assim com ninguém, uma vida inteira de silêncios e agora esta vergonha, que conversa mais parva e logo com um desconhecido, que vergonha, que vergonha, o que iria ele pensar dela? Uma solteirona tonta, com certeza. Que vergonha, as lágrimas corriam sem parar.

Desculpe, nem sei o que foi isto, desculpe, não era isto que eu queria dizer, eu só queria pagar-lhe, fiquei a dever dinheiro, desculpe.

Paulo só sentia pena, não tem mal, não se enerve, pode falar, falar faz bem, desabafe se quiser.

Não, não, não sou nada disto, não sei o que foi isto que me deu, deve ser dos comprimidos, nem sei, desculpe, desculpe, que vergonha.

Paulo, olhe o dinheiro não é pressa mas, se quiser, eu passo aí.

Lídia não disse nada, atrapalhada, envergonhada. Depois assustou-se, não, aqui não.

Paulo percebeu, pois, desculpe, esqueci-me, diga então onde quer.

Mas Lídia estava bloqueada. Não sei, não conheço nada, não sei.

Paulo acalmou-a, ora essa, com certeza que conhece. Olhe o que acha do café que há no Cais do Sodré, uma casa de madeira que tem uma esplanada mesmo em cima do rio?

Lídia não sabia, nunca tinha visto, mas ele explicou-lhe tudo. Amanhã às 2 da tarde, pode ser? É boa hora para si?

Lídia não conseguiu raciocinar mas disse que sim, a cabeça esvaída.

Quando desligou o telefone toda ela era um tremor, um nervoso descontrolado. 




Depois, aflita, e o que é que hei-de vestir? e a que horas tenho que sair de casa? e se ele ainda não estiver lá, o que faço? e o melhor é não ir, se não ainda vou para lá fazer vergonhas, desatar a chorar, que vergonha, e já só queria que Nita chegasse para lhe pedir ajuda.

A mãe chamava, Então mas então onde é que se meteram todas? tenho aqui o chá e os bolos e foram todas falar para outro lado? estávamos aqui a ver as fotografias, a minha irmã, a minha prima, a minha mãe, e as pequenas, todas aí numa chinfrineira e agora desapareceram todas. Onde é que andam? daqui a na parto o bolo e como-o eu  sozinha. Falta de consideração. E já falava aos gritos, muito zangada. Estão a gozar comigo?! Estão a gozar comigo?!

E Lídia ouviu uma coisa que caía e os gritos Vão ver o que lhes faço! Vão ver! Sempre a gozarem comigo! 

Lídia passou por ela, já vêm, mãe, estão quase aí. A mãe respondeu com indiferença, como se o assunto tivesse deixado de lhe interessar, Ah, está bem.

**

As imagens são partes de pinturas de Lucian Freud e são ainda as mesmas mulheres silenciosamente tristes .

Recordo que, para ler esta história desde o início, poderão procurar nas etiquetas aí do lado esquerdo, lá mais para baixo, 'Lídia - uma mulher muito  triste'

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Caso vos apeteça ainda dar um passeio pelo meu Ginjal, terão a bela música de Boccherini e hoje as minhas palavras são as palavras de uma mãe que ri como se risse deslumbrada quando afinal só sente uma cega dor, junto à explicação do sorriso de Daniel Faria.

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E já chega não é? Calo-me já - mas não sem antes vos desejar saúde (tão importante que é a saúde) e felicidade.

sábado, setembro 22, 2012

Lídia, a mulher triste, começa a renascer (e, em aparte, a propósito de dia 21 de Setembro ser o Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer, uma breve nota sobre a demência de Gabriel García Márquez, o Gabo de cuja memória tantas histórias maravilhosas nasceram e, ainda, um filme tocante de André Oliveira)


Música, por favor



[I will be back - de Gabriel Yared da banda sonora do belo filme "The English Patient"]


*

Ao fim de umas três semanas, Lídia começou a voltar a si. 

Menos cansada, mais tranquila, Lídia recomeçou a pensar na gestão das suas responsabilidades e do seu tempo. Sobre os dias que ficaram para trás terá dificuldade em contar como o passou. Olha esse período como uma realidade vaga, indefinida, talvez fosse dos comprimidos, talvez fosse do estado de exaustão total a que tinha chegado. Dormiu, arrastou-se, medicada, indiferente, distante. 

A segunda empregada, a Nita, foi uma ajuda preciosa. Nita, embora de aspecto não muito robusto, é, na verdade, uma mulher de fibra. Trabalha quase sem parar, tem força como um animal de carga, pouco dorme, esperta, desembaraçada. 




Foi ela que, embora tendo pouco tempo livre, se ocupou da recuperação de Lídia. Levou-a ao Centro para tratar da baixa, foi com ela ao multibanco levantar dinheiro, levou-a às consultas no hospital, via o que havia para comprar, orientava as coisas em casa, articulava-se com a D. Fátima para a hora do almoço, assegurava que Lídia tomava os medicamentos, descansava. Lídia, dócil e indiferente, obedecia. A outra dizia-lhe deixei alarmes no seu telemóvel (que entretanto aparecera, descarregado, e caído debaixo da cama da mãe) para as horas em que tem que tomar medicamentos e está tudo escrito num papel na cozinha. E Lídia fazia o que devia. Nita combinava com a D. Fátima o tratamento da mãe de Lídia e Lídia quase não saía do quarto, dormia, olhava janela. Ouvia a mãe a falar, a gritar, a chamar, mas não a afectava, era como se a demência da mãe estivesse a ocorrer algures, num outro lugar, num outro tempo.

Nita dormia no sofá da sala. Quando saía ainda quase de madrugada, os lençóis e o cobertor já tinham desparecido e já deixava a mãe de Lídia lavada, de fralda limpa, bem arranjada, e, na cozinha, tudo separado para o pequeno almoço. 




Perto das dez da manhã aparecia a correr para levantar a idosa e saía logo de seguida para ir trabalhar numa outra senhora.

Quando voltou a ela, Lídia começou a fazer contas e ficou assustada. Pensou em que despesas poderia cortar para o dinheiro lhe dar para este novo encargo. Chegou à conclusão que o melhor era mandar Nita embora dentro de pouco tempo. Depois pensou que poderia levantar alguns certificados de aforro que ao longo da sua vida tinha ido poupando. À noite conversaram. Lídia explicou a situação de aperto financeiro e Nita mostrou a sua desilusão, tinha pensado que Lídia ia continuar a precisar dela, o dinheiro fazia-lhe tanta falta e preferia dormir lá do que, de favor, em casa da mulher do irmão. Em conjunto, abertamente, conversaram e chegaram a um acordo. Nita disse que, além do mais, Lídia deveria agora pensar em si própria, deveria ver que o que lhe tinha acontecido era resultado de excesso de preocupação, excesso de trabalho e de muita falta de descanso e que, para não voltar a acontecer, era melhor que continuasse a ter alguma ajuda. Lídia concordou. 

Um dia, Lídia viu-se ao espelho e descobriu que estava ainda mais velha, magra, triste. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto enquanto se via assim, cabelo baço, cheio de pontas, nem curto nem comprido, mal arranjado, raízes brancas, toda ela uma sombra do que em tempos sonhou ser. 

Uns dias depois, quando Nita chegou à noite, antes de ir tomar banho, disse-lhe hoje vou cortar e pintar o meu cabelo que bem precisa. Lídia admirou-se, aqui em casa? e fica bem? Nita riu-se, nem bem, nem mal, mas é o possível, não tenho tempo nem dinheiro para outra coisa. Lídia disse, era o que eu precisava. Nita, o ar despachado de sempre, riu de novo, se quiser, trata-se já disso.

E, assim, passado um bocado estavam as duas mulheres na casa de banho, Lídia sentada numa cadeira de cozinha, toalha pelos ombros e Nita de tesoura em punho, então como vai ser, madame? E Lídia, já sorrindo, olhe, faça como lhe parecer melhor. E Nita cortou-lhe o cabelo à altura do queixo, depois quando ia a pôr a tinta, disse, vou é pôr a mesma que ponho a mim, não tenho outra, vai ficar quase loura. Lídia sobressaltou-se, ai, isso não, loura não, vou lá agora aparecer loura, o que é que vão dizer? nem pensar, que vergonha, onde é que já se viu, eu loura.

A outra deu uma gargalhada, ai isso é que é um grande problema… O que as pessoas vão dizer… oh oh… Olhe D. Lídia, quem gosta de dizer mal, diz mal de tudo, deixe lá isso. Se aparecer aí feita uma velhinha vão ter pena de si, se aparecer loura, vão dizer mal. E o que é que a senhora quer? Prefere que tenham pena ou que digam mal? Olhe, eu cá não gostava nada era que tivessem pena de mim. Deixe-se disso, não pense no que dizem ou deixam de dizer. Vamos ficar com o cabelo da mesma cor e vamo-nos rir disso.

Lídia sorria com a perspectiva mas, ao mesmo tempo, tinha medo, sempre aquele medo. Medo e vergonha. Como é que podia voltar ao emprego toda loura?, que vergonha, iam-se todos rir dela.

Mas Nita sossegou-a, vá, deixe-se disso, se não gostar de se ver, logo muda, até lá não vai voltar ao trabalho de certeza. Já alguma vez mudou de cor de cabelo?

Lídia disse que não, nunca, e pensou que também não pintava os lábios para não dar nas vistas, não fossem as pessoas ficar a pensar coisas, e também não usava roupa muito colorida com medo que a achassem gaiteira, e tantas coisas inofensivas e banais que não usava e não fazia por medo da opinião dos outros, por falta de motivação, por tudo.

Nita, decidida, declarou, então hoje vai ser a primeira vez. E assim foi. Enquanto ambas esperavam que a tinta actuasse, Nita perguntou a Lídia, ar de brincadeira, e a madame faz nails? Lídia não percebeu. Quer que lhe pinte também as unhas? E, num ápice, foi à mala e trouxe um verniz, rosado. Menos mal, era discreto. Lídia deixou que a outra lho aplicasse. 

Sentia-se quase uma menina. Pela primeira vez em muitos anos sentia o gostinho da irreverência, da ousadia, parecia ela que estava a fazer qualquer coisa de proibido, de extraordinário. E sentia um nervoso no peito, e se me fica muito mal? não me estou a ver loura. Nita ria, então já vai ver, já não falta muito. E, com isto, já passava das onze da noite e Lídia pensou, mas que energia a desta mulher, daqui a nada já tem que estar a pé e aqui anda, toda bem disposta. 

Nita tinha-lhe contado que estava separada, que o ex-marido era um marialva de trazer por casa, sentava-se à mesa e queria ser servido como um nababo, chegava a casa tarde e era para pôr defeitos em tudo, saía à noite para ir para os copos com os amigos e aparecia em casa já fora de horas a cheirar a tabaco e a cerveja, quase não dava dinheiro para a casa e olhe, fartei-me, pu-lo a andar, foi complicado e difícil mas foi o melhor que fiz, que aquilo já não era nada. Que aí tinha ficado difícil manter a casa, cada vez ganhava menos na imobiliária, as pessoas compravam cada vez menos casas, e que, quando a imobiliária fechou, toda a vida andou para trás, que tinha tido um dos maiores desgostos da vida quando tinha tido que entregar a casa, um desgosto, uma casinha de que eu gostava tanto, tive que me desfazer d, dos móveis, de tudo, que desgosto. E que o outro desgosto foi quando teve que mandar o filho para Angola, para o pé do meu irmão, que também teve que ir para lá trabalhar, que cá não tinha trabalho, e eu já não conseguia sustentar o meu filho e pagar-lhe os estudos e assim, lá, fica em casa do meu irmão, trabalha com ele, e estuda à noite, mas custou-me tanto, um desgosto eu não poder ter o meu filho comigo. Mas depois de dizer isto, sorriu, orgulhosa, mas vou-me levantar, vou refazer a vida e o meu filho há-de estudar, há-de acabar o curso, e não há-de passar necessidades, até porque o meu marido lhe manda dinheiro todos os meses e eu ainda consigo tirar um bocadinho para uma poupança que estou a fazer para ele, no banco. E com ar maroto acrescentou, e se quer saber, até já ando a catrapiscar lá um da segurança de um escritório onde faço a limpeza. 

Quando já tinha passado o tempo, tiraram a tinta, lavaram o cabelo. Lídia estava nervosa, sabia que não ia gostar de se ver, sabia que ia ter vergonha de sair à rua, estava arrependida. Com a toalha à volta da cabeça ganhava coragem para se ver. A outra ria-se. Finalmente, Lídia puxou por uma ponta, deixou cair a toalha nos ombros. Deu um grito surdo, fechou os olhos, cobriu a cara com as mãos. A outra riu, mas então que susto foi esse? está assim tão mal? Lídia estava aflita, aquele medo que lhe oprimia o peito outra vez presente. A outra olhou-a no espelho. Mas, afinal, que grito foi esse? Pensei que lhe tinha caído o cabelo todo…! Mas está bem, parece outra, mais bonita, mais nova, nem tem comparação. Deixe cá ver o secador que já lhe dou aí um jeito.

Lídia sentiu que as lágrimas lhe escorriam. Uma mistura de sentimentos, uma sensação de ridículo, ridícula ela, quase loura com a idade que tinha, a pintar o cabelo com a mãe doente, e ridícula por estar a chorar por causa disso e, ao mesmo tempo, também infantilmente emocionada por se ver diferente, pela primeira vez na vida um gesto de libertação. Nita não fez caso. Depois, disse-lhe, vá, já se pode levantar outra vez e ver-se ao espelho, vá, coragem. Ela olhou. E gostou, já não foi aquele impacto de instantes antes, o cabelo estava agora penteado com ar natural, solto. Tinha rejuvenescido, e sentia que um mundo novo se podia estar a abrir, e sentiu-se ridícula por sentir uma coisa assim, quase vergonha.




Contudo não quis confessar o que lhe ia na alma, receava que, confessando que gostava, passasse por leviana, mulher fácil ou imatura, ou parva. Nita riu-se, ah, nem precisa de falar… está a gostar… pois então como é que não havia de gostar, toda gira, parece uma menina…?

Nessa noite foi deitar-se com uma inesperada emoção dentro do peito. Ouviu a mãe a gritar, ninguém vai abrir a porta? estão aí a tocar, a tocar e ninguém abre a porta? saíram agora daqui e já estão outra vez a tocar à campainha? sacanas que não me deixam dormir, sacanas dos miúdos, se lhes apanho a bola, fico com ela. Mas, desta vez, Lídia limitou-se a sorrir. Estes desvarios da mãe até tinham uma certa graça.

E havia outra coisa. Todos os dias, várias vezes por dia, Lídia lembrava-se do que tinha acontecido com Paulo, da forma abrupta, sem uma explicação, como o tinha quase escorraçado. Sentia-se envergonhada. Lembrava-se também que lhe estava a dever dinheiro. Mil vezes agarrava no telemóvel para lhe ligar, as pulsações aceleradas, toda ela num descontrolo. Mas nunca conseguia, faltava-lhe a coragem.




Até que um dia ganhou mesmo coragem. Toda ela tremia, toda ela num alvoroço, um nervosismo que só visto, ouvia o coração a bater, desarvorado. Pôs-se de pé à janela, respirou fundo, e ligou.


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As pinturas são, como sabem, de Lucian Freud.

Relembro que, caso vos apeteça ler a história desde o início, poderão procurar aí ao lado, lá mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - a mulher triste'.

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Este dia 21 de Setembro que passou foi o Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer.

Gabriel García Márquez não voltará a escrever, sofre de demência diz o irmão. Há vários casos de Alzheimer na família, diz.

Permito-me, ainda, recomendar que vejam o filme inserido no artigo do Expresso que começa assim: O Alzheimer afeta não só os doentes, mas também os familiares que os rodeiam. Uma realidade dura que nem os mais fortes aguentam. 

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A todos os meus Caros Leitores, com cordialidade, desejo um bom fim de semana e uns dias felizes, cheios de esperança.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Lídia, a mulher triste, uma vez mais abdica de si própria


Música, por favor, para acompanhar Lídia



Da banda sonora de The Piano (um grande filme) - The scent of love de Michael Nyman


*

Enquanto Paulo continuava ocupado com a preparação da canja, Lídia, muito lentamente, em silêncio, agarrada às paredes, agarrada aos móveis, transpirando, muito tonta, conseguiu chegar à sala.

A tremer, ficou encolhida no sofá, toda ela medo, ansiedade, vergonha, cansaço.




A mãe estava imóvel em frente da televisão, olhando o vazio. Quando a sentiu chegar disse, não viste os gatos? Ainda agora aqui estavam, devem ter entrado pelo buraco do tecto. Lídia fechou os olhos.

Quando Paulo deu por falta de Lídia na cozinha foi espreitar à sala, ah, aqui estão as meninas…

Lídia disse-lhe, então, com esforço, como se o cansaço e a tremura quase a impedissem de falar, um fio de voz quase inaudível, obrigada pelo que tem feito por nós. Já tenho quem me venha ajudar, já não precisa de vir mais.

Paulo aproximou-se como se quisesse ouvir melhor. Esperou que ela dissesse mais qualquer coisa mas Lídia calou-se, tremia. Ele duvidou, sim? tem a certeza? veja lá, olhe que a mim não me custa nada vir até a senhora estar melhor, trabalho por turnos, tenho tempo. 

Lídia nada disse, apenas tremia. Paulo olhava-a, admirado, e com apreensão, está cheia de frio… Mas não está frio nenhum. Será que está com febre? Não é melhor ver se não apanhou para aí alguma?

Lídia disse, isto passa, pode ir tratar das suas coisas. Faça aí as contas ao dinheiro que gastou que eu passo um cheque. Paulo achava esta reacção inesperada e estranha. Mas qual é a pressa?, deixe lá isso, passa-me agora um cheque... logo me paga, ora essa…

Mas Lídia acrescentou, e a voz quase não se ouvia, não tenho dinheiro em casa, era para ter ido ao multibanco, não fui, mas passo um cheque, diga quanto é.

Paulo sentiu que ela estava impaciente, como se quisesse que ele saísse de imediato, mas ainda tentou fazer mais qualquer coisa, a canja está ao lume, não é melhor eu esperar que esteja pronta para desligar o gás, fico mais descansado?, e ajudo-a a dar  à sua mãe, não é melhor? veja lá...

Lídia falou de olhos fechados, não, eu trato disso, já estou melhor, pode ir-se já embora.

Paulo não percebeu. Olhou para ela: tremia, descorada, magra, encolhida, sem forças. Não está em condições de ficar sozinha, disse-lhe.

Lídia ficou calada, as mãos húmidas, trémula, tudo a andar à roda, sem conseguir encarar a luz do dia. Já vem alguém para me ajudar, pode ir já.

Paulo ficou calado, parado no meio da sala. Lídia de olhos fechados, exangue, inerte, a mãe ausente, de vez em quando dizendo palavras sem sentido. Duas mulheres perdidas na sua imensa solidão, tão grande o desamparo. Sentiu muita pena.




Depois aproximou-se da idosa, segurou-lhe nas mãos e disse, a menina porte-se bem, está a ouvir? Ela olhou para ele e disse não te esqueças de arranjar a fechadura do portão. Ele sorriu, já vou tratar disso, e quase se comoveu. Beijou-lhe as mãos e, muito devagar, pousou-as de novo. Depois fez-lhe uma festa no cabelo.

A seguir aproximou-se de Lídia, na bancada da cozinha está o meu número de telemóvel. Ligue-me se precisar de alguma coisa. Vou preocupado por deixá-las assim. Mas Lídia permaneceu imóvel, indiferente. Paulo continuou, não se esqueça de tratar da sua baixa. Olhe, daqui a meia hora já pode desligar o lume, veja lá, não se esqueça. Ia inclinar-se para lhe segurar nas mãos mas Lídia encolheu-se, como se estivesse com medo.

Paulo saíu. Ia incomodado sem perceber o que se tinha passado e muito pouco tranquilo com o estado em que as ia deixar ali sozinhas, ambas incapazes de tomarem conta de si próprias, quanto mais uma da outra.

Quando a porta de fechou, Lídia deixou-se escorregar no sofá, encolheu-se sobre si própria e era tanto o frio. Lembrou, não lhe paguei... e agora? E começou a chorar devagarinho, mas depois já era um choro compulsivo, silencioso, quase sem lágrimas. Quem me dera morrer, quem me dera que morrêssemos as duas.

Sempre sozinha, sempre entregue à sua imensa fragilidade. A vida inteira preocupada com os outros e com a opinião dos outros, esvaziada, nula, um nada, a vida a passar e ela sem a viver, a vida a esgotar-se e ela ali, perdida, doente,sozinha, triste, tão triste, sempre tão triste.

Como se sonhasse, pensamentos em fiapos, uma lamúria silenciosa, enquanto me viram sozinha, sem uma ajuda, a vida inteira trabalho-casa, sem amigos, sem uma diversão, ninguém se lembrou de pensar em mim, agora que apareceu uma pessoa para me ajudar, toda a gente veio logo criticar. Quero lá saber que seja ladrão, não tenho nada para ser roubado. Mas também que pouca sorte, logo havia de ser casado, para ficar mal vista, que pouca sorte, isso também não, que para trabalhos já chegam os que tenho, e chorava, infeliz, assustada, e agora aqui sozinha como é que faço? e como é que vou à rua?, não consigo, não consigo, mais valia que isto acabasse tudo, assim iam todos ficar cheios de pena, só têm pena do que já está remediado, o que é que faço da minha vida? e parecia boa pessoa, e ela também gostava dele, se calhar só queria ajudar. Agora aqui as duas, como é que a lavo? como é que lhe dou de comer? como é que a levanto? como é que vou às compras? valha-me deus, e o trabalho? e os papéis da baixa? porque é que não morremos já as duas? 

A mãe chamou, muito alto, oh mãe, mãe! anda cá, parece que está aqui uma menina a chorar, não sei se sou eu ou se é a outra. Mãe, mãe!

Lídia não se mexeu, não olhou para ela. Tapou os ouvidos, depois pegou numa almofada e tapou a cara. Passado um bocado adormeceu.

Algum tempo depois acordou com a campainha. Não foi capaz de se mexer. Outra vez outro toque. Cheirava a queimado. Lídia olhou vagamente em volta, não percebia que cheiro era aquele, não percebia que toque era aquele. Lembrou-se que tinha sonhado que tinha o cabelo muito curto, que parecia outra, o rosto quase se confundia com o de Paulo, e que dormia agarrada a um cão mas o cão estava frio, e ela tremia agarrada a um cão frio, talvez um cão morto.




Depois ouviu abrir a porta.

Era a D. Fátima com outra mulher. Toquei à campainha, como não vinha sozinha não quis abrir logo a porta. Mas que cheiro é este? 

Como Lídia não respondesse, foi a correr à cozinha e a outra foi atrás. Ouviu-a a dizer alto, Valha-me deus, isto é que está aqui uma desgraça. Olha para isto, se a gente não tem vindo, o que era disto? Ai que desgraça. Tudo queimado, daqui a nada pegava fogo à casa. Uma mulher ainda tão nova e já está nesta desgraça, na volta está já como a mãe, que desgraça.

Algum tempo depois apareceram de novo na sala, esta é a Nita, a pequena de que lhe falei. Trabalhava numa imobiliária que fechou. Ela diz que pode vir das quatro às seis da tarde, vá lá seis e meia. Lídia mal conseguia ver as duas mulheres. Tentou focar a vista. Depois, com esforço, a voz arrastada, e ficar de noite? A outra estava de pé à sua frente, só se for depois das dez e só até às cinco da manhã. Lídia olhou para ela sem perceber. A mulher explicou, é que tenho limpezas nuns escritórios das sete às dez da noite e pego logo outra vez às seis da manhã noutro escritório. Mas até me dá jeito dormir cá porque tive que entregar a casa ao banco, e ainda estou a pagar uma prestação, de repente a vida toda desgraçada, e estou a dormir de favor na casa da minha cunhada, agarro todos os trabalhos que posso, e a voz desta mulher também era cansada e triste. Lídia pensou há tanta gente com vidas tão difíceis. E perguntou-lhe, pode começar já hoje? A D. Fátima atalhou, mas então a senhora não combina quanto é que isso vai custar para ver se pode pagar? Lídia olhou-a, confundida, atordoada, pois é, ainda não pensei, mas a outra mulher disse, a senhora agora não se preocupe que a gente depois logo se entende. Lídia sentiu compaixão na voz de Nita.     

Depois percebeu que a D. Fátima andava a mostrar a casa à outra, e a seguir viu que estavam as duas a tratar da mãe. Ainda lhe disseram qualquer coisa antes de saírem mas não fixou. 

A mãe disse, sabes onde é que foi o meu marido? veio aí despedir-se, não sei a que horas é que ele volta.

Lídia enrolou-se, de olhos fechados, uma noite escura dentro dos seus olhos, e soluçava baixinho, toda a vida isto, a abdicar de tudo a troco de nada, e ele se calhar só queria ajudar, e soluçava baixinho e uma e outra vez, se calhar só queria ajudar, se calhar e soluçava, as lágrimas já secas.

**

Bom, meus amigos, antes de começar a escrever estava a pensar mudar o rumo à história mas não estou a conseguir ter mão nela, segue o seu próprio rumo e, como se vê, o caminho continua a ser o da solidão, o das recusas, o da dor silenciosa. É a vida real de tantas mulheres. A dor da gente não sai nos jornais.

As imagens são ainda de Lucian Freud e as mulheres que ele retrata são também mulheres reais, silenciosas.

Volto a referir que quem quiser ler esta história desde o início, poderá pesquisar aí do lado direito do écran , lá mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - uma mulher muito triste'.

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E o que vos quero desejar é que tenham um belo dia, que a cada momento saboreiem o lado bom da vida (por pequeno que ele seja)

quarta-feira, setembro 19, 2012

Lídia, a mulher triste, começa a ser falada


Um pouco de música, por favor


Bernardo Sassetti - Alice

*

O homem perguntou à mãe de Lídia como estava e ela pareceu despertar da sua ausência e respondeu-lhe que estava a entrar muita luz pelo buraco que estava no tecto. Ele tranquilizou-a, já vou tratar disso

Depois disse a Lídia que talvez fosse melhor ela e a mãe comerem qualquer coisa porque já passava da duas da tarde. E acompanhou-a até à cozinha. Lá, viram um papel escrito pela D. Fátima no qual ela mostrava estranheza mas dizia que tinha tratado da higiene da mãe e que já lhe tinha dado o almoço e os medicamentos.  

Ele lembrou-a, então, de que talvez fosse melhor ela tomar banho, que aquilo no hospital nunca se sabe, os vírus, as bactérias. Depois perguntou-lhe onde estava um pijama ou um roupão para ela vestir a seguir, foi buscá-los e colocou-os na casa de banho. Passado um bocado, uma vez que ouvia correr a água há muito tempo, foi à porta perguntar se estava tudo bem. Como ela não respondesse, entreabriu a porta e, do lado de fora, voltou a perguntar. Lídia não se assustou nem estranhou e respondeu-lhe que sim, que estava tudo bem. Quando saíu, cabelo molhado, sentou-se pesadamente numa cadeira da cozinha. O homem amornou leite e preparou-lhe um pão com queijo. Ela aceitou sem uma palavra que ele mexesse nas gavetas, espreitasse os armários, abrisse o frigorífico.

Depois, quando ela estava a comer, ele tirou-lhe a receita médica da carteira, viu que estava lá uma outra receita, ah, é a da minha mãe, já não me lembrava, disse ela, distante, indiferente, e ele disse que ia à rua comprar os medicamentos para ambas. Quando ia a sair, disse-lhe que ia levar a chave. Lídia não disse nada.

Passado um bocado ele regressou, deu-lhe um comprimido, perguntou se ela não queria ligar para o emprego e, como Lídia não soubesse do telemóvel nem se lembrasse do número fixo, ele perguntou-lhe o nome da empresa, ligou para as informações e depois perguntou-lhe o nome do chefe e falou ele.

A seguir disse-lhe, agora tenho que me ir embora, está quase na hora de entrar ao serviço. Vou ver se consigo passar por cá ainda hoje mas não deve ser fácil. Senão venho amanhã. Acho que devia falar à senhora que vem tratar da sua mãe para ficar cá consigo durante um dia ou dois. Agora acho que devia ir dormir. A sua mãe está bem, já lhe pus uma manta por cima. Está aqui um papel com o meu número de telefone, se precisar ligue-me. Separei-lhe os comprimidos para tomar ao jantar e amanhã de manhã. Estão ali naquele prato, com um papel a explicar. Quer ir deitar-se enquanto eu estou cá? Ela não respondeu mas, passado um bocado, abanou a cabeça. Ele disse, está bem, mas a seguir vá descansar e depois não se esqueça de comer. Lídia estava muito cansada, não respondeu.

Quando ia a passar pousou, por um instante, a mão sobre o ombro de Lídia e depois saíu. 

Mais tarde, depois de ele ter saído, Lídia, ainda sentada na mesma cadeira da cozinha, reparou que ainda sentia o calor da mão de Paulo no ombro. Colocou então uma mão nesse sítio e, sem dar por isso, ali ficou, como se quisesse preservar esse calor.

O homem não apareceu nessa noite mas Lídia nem se deu bem conta disso. Tratou da mãe com muita dificuldade, mecanicamente, sem dizer nada, não tinha força para falar. Depois tomou os comprimidos e adormeceu.

No dia seguinte de manhã Paulo voltou a aparecer e trazia pão fresco, fruta, fiambre.

Tratou da idosa, tratou de Lídia, conversou com elas apesar de nenhuma lhe responder.




Com a mãe falava do tempo, das árvores, dos pássaros, e ela nada. Mas depois lembrou-se de lhe perguntar pela meninice. E, aos poucos, a senhora foi prestando atenção e começou a falar de quando era pequena, falou das amigas de infância, uma conversa desconexa, mas Paulo prosseguia como se tudo fizesse sentido. Depois ela falava do buraco no tecto e ele dizia que já ia tapar e ela descansava, depois dizia que tinham estado uns homens a roubar o ouro e ele dizia que ia apresentar queixa na polícia e ela ficava descansada. Mais tarde voltava à mesma conversa e ele respondia da mesma forma. Depois já era ela que lhe perguntava se ele já tinha tapado o buraco ou apresentado queixa e ele dizia que sim. E ela sorria, agradecida, ainda bem que hoje chegaste mais cedo do trabalho, a minha mãe não trata de nada.

Com Lídia, Paulo dizia há cada vez mais mendigos e mais sem-abrigo, à noite as filas de pessoas junto às carrinhas da sopa dos pobres são cada vez maiores e aparece cada vez mais gente com bom aspecto, esta crise está a estilhaçar a classe média, são vidas desgraçadas, só quem vê, ou falava dos turistas que gostam muito do País ou falava da insensibilidade deste governo, que não sabe o que é a vida das pessoas mas acrescentava isto vai mudar, que isto assim não se aguenta, há nova miséria a nascer todos os dias, a gente que tem trabalho nem sabe a sorte que tem. Outras vezes falava com ela da casa dos pais no campo, às portas de Lisboa, e da horta que lá tinha mas que com o preço da gasolina e das portagens cada vez era mais difícil lá ir, só continuava com aquilo pelo gosto, não era pelo rendimento. Lídia ouvia-o e não dizia nada, tudo lhe era muito distante. Talvez fossem os comprimidos, talvez fosse do esgotamento. 

Depois ele disse, não há nada que se coma para o almoço. Eu tenho que ir fazer umas coisas, demoro um bocado mas depois passo pelo supermercado. Lídia pensou vagamente que ele estava a gastar do dinheiro dele, que lhe devia dizer que tinham que fazer contas mas ficou-se pelo pensamento, perdida dentro de si própria.

Levo a chave, acrescentou. Lídia foi deitar-se.




À hora de almoço, antes de Paulo chegar, estava Lídia deitada, sentindo-se triste, com sede, cansada, confusa, sem conseguir dormir, apareceu a D. Fátima, preocupada, mas afinal o que é que está a acontecer? Ali no café dizem que a senhora ontem passou a noite fora e que chegou de manhã com um homem que se meteu cá em casa e que continua cá metido, que já o viram a entrar e sair. Lídia encolheu os ombros e, com indiferença, disse é um polícia. A outra arregalou os olhos, um polícia? Mas o que é que aconteceu para meter polícia? Lídia demorou a responder, muito cansada, não sei bem explicar, não me lembro bem, estive no hospital. A outra quase saltou, quase em transe, no hospital? mas o que foi que aconteceu? Fizeram-lhe mal? Assaltaram-na? Mas Lídia apenas respondeu, estou muito cansada, não sei se é também dos comprimidos. Depois lembrou-se e perguntou-lhe, pode vir à noite tratar da minha mãe? E pode vir mais tempo agora durante uns dias? deve haver aí roupa para lavar, outra para apanhar, nem sei bem. A mulher estava decepcionada, não percebia nada do que se passava e Lídia parecia não ser capaz de a esclarecer. Depois pensou na pergunta e respondeu, eu não posso, já tenho outras pessoas, não posso, se pudesse vinha, mas sei de uma pequena que anda à procura de trabalho, vou falar com ela, se ela ainda tiver horas, trago-a cá. Mas logo voltou ao assunto que a interessava, mas será que ele é mesmo polícia? Um polícia mete-se assim na casa das pessoas? A senhora veja lá, tenha cuidado, sabe lá se é algum meliante, ponha-o mas é fora de casa, e o que vão as pessoas pensar de si? Fica falada, já viu? Tenha cuidado, diga-lhe que não precisa dele, não lhe abra sequer a porta, ponha-o a andar.

Lídia pensou ele tem a chave, não precisa que eu lhe abra a porta mas, tão exaurida estava que nem conseguia ter energia para se preocupar com isso, quanto mais para responder. Depois pensou, não o conhece e já está desconfiada, de facto é mais fácil desconfiar do que confiar. E fechou os olhos, esgotada.

A outra continuava, não deve ser polícia coisa nenhuma, onde é que se viu um polícia meter-se numa casa onde vivem duas mulheres sozinhas?, quer é aproveitar-se de si, tenha cuidado; e dizem que não tem boa cara, que nem o querem na vizinhança, e não lhe abra mais a porta, e da fama já não se livra, sabe? já viu o que vão dizer de si? a sua mãe sem tino e a senhora sozinha aqui com um homem que ninguém conhece, valha-me Deus, ouça o que eu lhe digo.

Lídia pensou é mais fácil censurar do que ajudar. Mas não disse nada, deixou-se ficar sentada, caída. Só lhe apetecia dormir.

Um pouco depois da mulher sair, Paulo chegou.




Trazia pizzas, sumos, um gelado, uma caixa de ovos, um frango. Pizzas para o almoço e vou fazer uma canja para vocês comerem ao jantar. E, olhe lá, não tem que tratar da sua baixa...? Lídia pareceu acordar, o estômago revolveu-se, e o medo anterior pareceu voltar. Baixa…? Ah, pois é, que horror, estou a faltar ao trabalho. E agora…? No hospital não deram um papel? Nunca estive de baixa... o que será que tenho que fazer? ai... Ele disse amanhã vou consigo ao Centro aqui da zona para tratarmos disso, não se preocupe

Depois acrescentou, enquanto se virava para o fogão, vou ter que sair daqui a nada, logo a seguir a comer aqui uma bucha tenho que ir com a minha filha tratar de um assunto. Lídia ficou imóvel mas, aos poucos, foi sentindo um tremor, um frio, uma aflição. Casado. Um homem casado aqui metido dentro de casa. Em que sarilhos é que me meti? Quem é ele? O que é que quer de mim? Estou desgraçada... Ai, quando souberem que ele é casado o que é que vão dizer? Ai... O pânico voltou, as mãos transpiradas. Olhou para a janela e sentiu uma vertigem, tudo branco, tudo à sua volta a rodar. Apoiou a cabeça nas mãos, parecia que ia cair, que estava a ser sugada, e toda ela tremia. 

**

As imagens continuam a corresponder a pinturas e gravuras de Lucian Freud, o inclemente pintor.

Caso pretendam ler esta história desde o início, poderão procurar aí do lado direito, lá mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - uma mulher muito triste'. Aparecer-vos-ão todos os capítulos, do último para o primeiro.

E, uma vez mais, tenho que vos pedir desculpa. Comecei a escrever com a firme vontade de levar a história para o lado bom da vida. Infelizmente, desta vez as palavras seguem um rumo diferente do que me é habitual. Desta vez os caminhos são os da pequena solidão, os das tristezas silenciadas, a dos medos.

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Mas vocês, Caros Leitores, não se deixem contagiar com nada disto. 

Tenham uma bela quarta-feira, neste Setembro que vai tão doce e tão animado!

terça-feira, setembro 18, 2012

Lídia, a mulher muito triste, passa a noite no hospital


Música, por favor, para acompanhar Lídia



[Do filme The end of the Affair, da autoria de Michael Nyman - Love Doesn't End ]



O carro patrulha levou-a até ao hospital. Confusa, cansada, chorava sem conseguir dizer nada que se percebesse. Falava no emprego, no chefe, falava na mãe, nas gotas que tinha dado à mãe, chorava, não sabia dizer nada de concreto.

Puseram-na a soro, deram-lhe um ansiolítico, e ali ficou numa maca. Adormeceu de imediato.

Quando acordou, lembrou-se que tinha sonhado de novo com um cão, que estava deitada abraçada a um cão, que vinha dele um calor bom, um calor quase humano a que não estava habituada. 




Mas, de repente, percebeu que não estava em casa e sobressaltou-se, tentou gritar mas não tinha força, e foi quase num murmúrio que gritou por alguém, acudam, acudam, a minha mãe, a minha mãe, valha-me Deus, a minha mãe. Mas quase não se ouvia, era apenas uma lamúria.

Passado um bocado alguém passou e viu que estava a acordar. Foi vista de novo, agora por um outro médico, mas Lídia estava numa aflição, a voz presa na garganta e, sem força, gemia, deixei a minha mãe sozinha, meu deus, não fui trabalhar, meu deus, a minha mãe. Depois, mais tarde, uma assistente social veio ter com ela, levou-a por um braço para um pequeno gabinete. Mas Lídia, quase sem lágrimas, assustada, aflita, muito cansada, tenho que ir para casa já, deixem-me sair, por favor e já era uma súplica, embora quase silenciosa. Depois lembrou-se que não tinha dinheiro, e então rompeu num choro brando, envergonhado. Meu deus que é isto que me está a acontecer?

Achavam que não estava em condições de sair dali sozinha mas a aflição dela era tanta que a deixaram ir e marcaram duas consultas, escrevendo os nomes dos médicos e as datas numa pequena ficha que meteram na sua mala, tratando-a como se trata uma velha demente, olhe que não se pode esquecer, ouviu? Reparou que lhe pusemos um papelinho na mala com as datas? Não perca, veja lá. Olhe, qualquer coisa volte cá, ouviu? Olhe, vamos pôr na mala também a receita, depois vá aviar e comece a tratar-se, ouviu? O que a senhora teve é aquilo a que se costuma chamar um esgotamento. Tem que se tratar a sério. Percebeu? Percebeu que tem que se tratar? E que tem que cá voltar? Vá, vá lá, as melhoras e tenha calma. 

Tão atenciosos mas ela tão aflita. Não ouvia nada, só queria sair dali a correr. Mas não conseguia, estava aérea, cansada, estranha. A assistente social levou-a até à porta e fez sinal a um taxista. Ele aproximou-se e ela, habituada a estas situações, combinou, olhe, a senhora quando chegar a casa vai buscar o dinheiro para lhe pagar, está bem? O taxista disse que sim. A assistente social disse ainda umas palavrinhas ao taxista que assentiu, compreensivo.

Quando Lídia estava a entrar para o táxi, um homem que não conhecia dirigiu-se a ela. Então como está? A assistente social ficou à espera. Lídia olhou-o confusa, não percebia quem era o homem, o que queria. O homem perguntou-lhe? Então, não me está a conhecer? Não estava.  O rosto num esgar de aflição, quase sem conseguir falar, com muito esforço, conseguiu responder, não, não sei quem é mas estou com pressa, a minha mãe está sozinha, não sei se está bem. O homem percebeu a aflição e disse, sou um dos agentes que ontem à noite a encontrou e a trouxe aqui. Liguei para cá de noite e disseram-me que ficava cá até de manhã, em observação. Como estou no turno que entra às 4 da tarde, resolvi vir cá ver se está tudo bem. Tirou do bolso a identificação. Lídia ouviu sem atenção, aflita, com pressa, assustada como sempre. O homem ofereceu-se para a acompanhar. A assistente disse que era melhor. O agente disse que podia levá-la no carro dele. A assistente perguntou a Lídia se queria. Como ela não fosse capaz de decidir nada, foi a assistente social que resolveu, então, se não se importa, talvez seja melhor, pode ser que seja preciso mais qualquer coisa e, assim, o senhor, se não se importa, estando perto dela, pode ajudar. Encaminharam-na para o carro do homem, ajudaram-na a pôr o cinto de segurança. A assistente social estendeu-lhe um papel com a morada e disse, era o papel que eu ia dar ao taxista, encontrámos a morada nos documentos que a senhora tinha na carteira.

O carro arrancou e Lídia, aos poucos, foi sentindo uma espécie de alívio. Finalmente alguém que a acompanhava, alguém que a levava de carro a casa, alguém disposto a ajudar. Olhou pela janela do carro. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto mas agora havia nela uma estranha tranquilidade. Estava num carro com um desconhecido depois de uma noite passada num hospital e, no entanto, parecia-lhe que nunca estivera tão protegida como naquele momento.

Depois reparou que o homem falava. Lídia não lhe tinha prestado atenção, não sabia se ele tinha começado a falar naquele instante ou se já estava a falar há muito tempo. A voz do homem era muito tranquila. Olhou para ele. Talvez fosse dos calmantes ou de tudo o que se tinha passado, sentia-se a pairar, atordoada, tudo à sua volta lhe parecia distante, vago.

Chamo-me Paulo, dizia ele. Ela não disse nada, olhava-o com olhar vazio. Não saberia dizer como era o seu olhar compassivo ou a boca que quase parecia sorrir.




Estamos quase a chegar. Quer que entre consigo? Ela ouviu a pergunta mas não sabia o que responder. Pensou que a mãe podia estar morta e que ele a podia ajudar e, ao pensar isso, reparou que a ansiedade que sempre a tomava quando pensava nisso, parecia muito distante. Depois pensou que não conhecia o homem, podia ser um ladrão, ou que as vizinhas podiam pensar coisas ao verem-na a chegar de manhã com um homem. No entanto, não disse nada, não conseguia arranjar as palavras certas nem tinha força para as procurar.

Passado um pouco, o carro parou, o homem saíu, depois veio abrir-lhe a porta. Teve que a ajudar a soltar o cinto de segurança, ela estava sem acção. O homem acompanhou-a. 

Subiram até ao segundo andar. Depois Lídia não descobria a chave, estava cansada, apetecia-lhe desistir de procurar mas o homem ajudou-a, abriu-lhe a porta; e, apesar dela não o ter autorizado, entrou depois dela.

Lídia, lentamente, dirigiu-se ao quarto da mãe. Num primeiro instante, sentiu um sobressalto. A mãe estava destapada, de olhos abertos, imóvel, descarnada. 




Está morta. Alguém a amortalhou, pensou, mas estava estranhamente calma. Foram as gotas. Matei-a. Mas não sentia emoção alguma. De pé, imóvel, sem reacção, Lídia olhava a mãe. 

Olhou pela janela. Acabou-se tudo, pensou. Vou-me entregar. E sentia um grande alívio, é o fim, vou descansar, quem me dera morrer também, e quase lhe apetecia deitar-se ao lado da mãe, começar já a morrer devagarinho, ou simplesmente dormir.

Quando voltou a olhar a mãe, viu que esta pestanejava. Com a mesma indiferença pensou, está viva, ainda bem.

Muito cansada, respirou fundo e deixou-se ficar ali, de pé, parada, a olhar a mãe que olhava para um ponto fixo na parede. Lídia sentia-se suspensa no tempo, um tempo indefinido e longínquo.

O homem estava junto dela, em silêncio.


**

As pinturas são ainda de Lucian Freud. Acho que ainda não disse que a mulher de idade era a sua mãe.

Quem quiser ler esta história desde o início poderá pesquisar aí do lado direito do écran a etiqueta 'Lídia - uma mulher muito triste'.

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Uma vez mais chego ao fim com vontade de vos pedir desculpa pela tristeza desta história. As minhas histórias não costumavam ser nada assim, não sei porque é que agora me está a dar para isto. Mas, enfim, isto acaba não tarda nada, que eu não sou dada a tristezas. Ou fica já por aqui, ainda não sei.

Seja como for, que este espírito não vos contagie. Tenham, meus Caros Leitores, uma bela terça feira!

sábado, setembro 15, 2012

Lídia, a mulher muito triste, perde-se na noite


Da noite ao silêncio
(para nos acompanhar, por favor)


Bernardo Sassetti

*

No emprego, precisavam que ficasse até mais tarde, era preciso alterar umas coisas que têm que entrar em vigor em breve, um trabalho ainda de alguma complexidade. Lídia sentiu aquele aperto no peito que sempre sente. Como? E a mãe? A medo disse que levava o trabalho para fazer em casa mas ao chefe não lhe pareceu boa ideia, tinham que ficar quatro pessoas a trabalhar em conjunto e ele queria ir validando ou tirando dúvidas, porque haveria dúvidas de certeza e ele próprio, à medida que se fosse avançando, ia percebendo a melhor forma de as resolver. Insistiu, veja lá se arranja maneira. Lídia tentou sorrir numa tentativa de esconder a preocupação.




Como? Pedir ajuda a quem? A D. Fátima tem a sua vida, pode lá ir de noite. E a mãe iria ficar inquieta. Sente que está quase a desfazer-se em lágrimas mas evita, ninguém iria perceber que por uma coisa de nada, pedirem-lhe para ficar até mais tarde, desatasse a chorar. Vai para a casa de banho e ali fica, encostada à porta, sem saber o que fazer. E logo hoje que também tenho que ir ao Centro, tinha é que pedir para sair mais cedo, valha-me deus.

Se pudesse desabafar ou pedir ajuda a alguém. Mas não quer nem sabe a quem, tudo complicado, não quer ouvir mais conselhos, queria era poder dividir com alguém o fardo que é a sua vida.

Depois pensa que vai é pedir para sair mais cedo, passa pelo Centro, pode ser que seja rápido, vai a casa, trata a mãe, mete-a na cama e depois vem trabalhar de novo.

Quando vai pedir isto ao chefe, sente que vai a tremer, que a voz lhe treme, as lágrimas enrolam-se na língua. Sempre esta angústia, sempre este medo, medo de não cumprir, medo de não ser capaz, medo que tudo lhe falte de repente, tanto medo, apesar de já ser tão pouco o que tem, parece que está sempre com medo de perder tudo. O chefe olha-a apreensivo, percebe a ansiedade dela, é uma mulher muito nervosa, pensa, e diz-lhe que sim. Quando ela sai do seu gabinete sente pena, fica a pensar, tem falta de homem.

As colegas vieram de férias bronzeadas, alegres, falam alto, riem. Mas a ela, no seu canto, tudo lhe chega de longe, é um outro mundo. Já combinam pedir pizzas, já estão na maior animação, as mais novas já falam em irem beber um copo à saída, já estão a avisar os maridos ou namorados. Ela não tem quem avisar. E para ela tudo é sempre tão complicado.

O dia decorre normal, telefonemas, trabalho, cabeça enfiada no computador. Almoça na copa do escritório com uma colega de outro departamento, uma que tem problemas de tiróide, rinite e outras coisas e que só fala de doenças e de tratamentos que resultam e outros de que lhe falaram, e médicos e dietas e muita conversa de pensamento positivo à mistura. Lídia ouve-a com atenção mas, por dentro, está desligada. Nada daquilo lhe interessa mas, de facto, não há nada que a interesse. A colega, às vezes, pergunta-lhe porque não põe a mãe num lar. Não pode, lá se ia o ordenado todo, a pensão da mãe mal dá para os medicamentos e para as fraldas, resguardos, pomadas, e agora com este novo rombo que o Passos e o Gaspar, esses malvados, anunciaram, nem sabe como vai ser, já se alimentam tão mal, cada vez o dinheiro chega para menos. Além disso, pôr a mãe no lar? Morria logo. Não, nem pensar. A colega alvitra, então porque não metes uma mulher lá em casa, dia e noite, interna? Ela pensa, talvez saísse mais em conta, talvez o dinheiro ainda chegasse para isso, embora muito à justa, se bem que era também mais uma boca a alimentar. Mas e onde se deitava a outra? Na sala? E ficava sem sala, com uma estranha a dormir lá em casa? Seria a sua vida a ser ainda mais devassada, mais esvaziada, sem um tostão para si, nem pintar o cabelo poderia. Por isso, nem quer falar no assunto, pensar nisso deprime-a ainda mais, não há solução a não ser esta, a de ir vivendo um dia de cada vez, dias sem história e sem futuro, dias tristes.

De tarde esteve ainda mais nervosa, o trabalho não rendia. E o sono, tantas noites sem conseguir dormir capazmente, tenho frio, tenho calor, quero água, tenho fome, que horas são, dói-me a perna, vai chamar a minha mãe, sempre, sempre, ora uma lamúria, ora gritos, ora choros, uma tortura, de hora a hora isto, sempre, há tanto tempo sem conseguir descansar a cabeça. Um cansaço extremo a pesar-lhe nas costas, nos olhos. Olhava para o relógio, estava quase na hora de sair e ela sempre com medo que pensem que se está a furtar ao trabalho. Saíu enervada, a correr. Foi ao Centro, tirou a senha, esperou pela vez para a marcação, depois esperou enervada que a atendessem. Quando chegou a casa ia transpirada, cheia de sede, a boca seca e sempre aquele mesmo medo.

A mãe dormitava em frente da televisão, não deu pela sua chegada. Lídia correu à cozinha, preparou um Nestum e fez um batido de banana, levou à mãe, cobriu-a com um pano a ver se não se sujava toda.




Não quero, apetece-me uma sopa de peixe, a minha filha fazia sopa de peixe, vai fazer uma sopa de peixe.

Lídia, paciente, enervada, vá lá, mãe, coma lá, está bom este batido, a mãe gosta, prove lá… Mas a mãe manteve-se de boca fechada. Estiveram aí uns a perguntar pela minha filha mas eu disse que ela nunca mais apareceu, disseram-me que se mudou com os filhos para outra terra. 

Lídia não diz nada. Podia ir-se embora e vir outra mulher na sua vez que a mãe não daria pela sua falta. Fala como se não a conhecesse. Filhos da filha? Onde foi ela buscar essa ideia? Só invenções, credo. 

Vá lá mãe, vá lá que é para depois ir para a cama, vá lá, coma lá. E tenta forçar a abertura da boca com a colher. A mãe dá-lhe um grito, levanta a mão para lhe bater, que é isso? queres apanhar? Experimenta fazer isso outra vez, que já te mostro o que acontece, experimenta.




Lídia senta-se, arrasada. As lágrimas correm de novo. Vai até á casa de banho, vê-se ao espelho. Todos os dias envelhece um pouco mais. Repara nos braços, flácidos, brancos, já enrugados junto às axilas, que horror, o que é isto que me está a acontecer? Qualquer dia pareço mais velha que ela, que desgraça a minha.

Sente-se transpirada, usada, gasta. Mete-se na banheira, toma um duche. Depois, mais refrescada, vai até à cozinha, devia comer qualquer coisa mas nem sabe o quê. Senta-se por um segundo, exausta, mas logo se levanta e come um iogurte, uma maçã já velha, come uma barra de cereais. Volta à sala. Vá mãe, agora já pode ser? Vá lá, beba um bocadinho, é batido, está fresquinho, a mãe gosta tanto. Coloca uma palhinha e leva-a à boca da mãe. A mãe começa então a sugar o líquido. Depois tenta o Nestum. Nada. Papas de aveia?! Que porcaria é esta? E ela, enervada, o tempo a passar, oh mãe é Nestum, a mãe gosta. A mãe encolhe os ombros como se não quisesse saber.




O tempo a passar. Lídia enervada, vá lá mãe, vá lá. Depois a custo levanta-a, doem-lhe as costas, a custo lá a leva para o quarto, limpa-a, muda-lhe a fralda, a mãe diz que não tem sono, que ainda é de dia, não quer ir para a cama, quer todos os dias mas logo hoje não quer. Lídia sente-se a tremer, vá lá mãe.

Não quer dizer que tem que sair a seguir para não a enervar, vai sair pé ente pé mas preferia deixá-la a dormir. Lídia chora, aflita, o tempo a passar, a esta hora estão lá todos a trabalhar e eu ainda aqui, valha-me deus, que vida a minha.

Vai mas é dar-lhe mais umas gotas a ver se ela adormece mais rapidamente mas não gosta nada de fazer isso. Mas fazer o quê? Devia ter alguém a quem perguntar se faz mal, a partir de quanto é que há risco, com quem dividir a responsabilidade. Só lhe apetece fugir e nunca mais voltar. Mas logo se arrepende. Vá lá mãe, vá lá, ajude um bocadinho, mãe, vá lá.

Lá consegue dar-lhe os comprimidos e, em vez das dez gotas para dormir, as que já toma em cima de tudo o resto, dá-lhe catorze, não há-de fazer mal, são só quatro gotas a mais, podia até ser um pequeno engano. Mas as mãos tremem-lhe, as lágrimas correm, o medo quase a paralisa. 

Vê as horas. Tardíssimo, que vergonha aparecer lá tão tarde.

Já não consegue esperar que a mãe adormeça. Pega na carteira, calça-se, pega num casaco e sai a correr, o coração disparado, a transpirar de novo, se o autocarro não passar ainda vai é a correr até lá abaixo a ver se apanha um táxi.

Passado um bocado, já ia a correr rua abaixo, o autocarro. Voltou a correr para trás. Entrou no autocarro quase sem conseguir respirar, deixou-se cair pesadamente num assento, quase morta.




Acordou com o motorista a bater-lhe no ombro, rindo ‘Bom dia!’. Lídia não percebeu. Onde estava? Não foi capaz de dizer nada, já assustada de novo. O motorista explicou ‘Chegámos ao fim da linha. Só agora reparei que estava a dormir.’. Lídia nem queria acreditar, o coração quase a saltar. Olhou o relógio. Tinha saído de casa há cerca de uma hora, aquele autocarro é dos que vai de uma cidade para outra, atravessando Lisboa pelo meio. Noite cerrada. Aflita, pergunta ao motorista e a voz e apenas um fio muito frágil, mas agora vai de volta, não é? Ele explica que só daí por uma hora, no período da noite são mais espaçados. Aflita, descontrolada, mete a mão na carteira tentando encontrar o telemóvel para avisar o chefe. Nada. Desatinada, quase a chorar, começa a tirar as coisas da mala, a pô-las no banco ao lado, o motorista ri, as malas das senhoras são todas iguais. Mas tenha calma, ele há-de estar aí. Mas não estava. Com a pressa deve ter ficado esquecido em casa. Em casa ou no escritório. Pega no porta-moedas, vai de táxi. Mas repara, então, que o porta-moedas está vazio, só uns trocos de nada. Lembra-se que no Pingo Doce na véspera não aceitavam cartão, pagou com o que tinha na carteira. Volta a meter tudo, a eito, dentro da mala e sai. Uma velha atarantada. Ainda nem cinquenta anos tem mas quem a visse diria que era uma velha, uma pobre demente, cabeça baixa, curvada, e doem-lhe as costas e sente um formigueiro nos braços. O motorista ainda lhe pergunta se quer ajuda. Diz que não. E sem saber para onde vai, começa a caminhar, perdida na noite, as lágrimas correndo.

****

Num dia como o de hoje, talvez não fosse a melhor ideia pôr-me para aqui com estas tristezas. Mas andava com esta história dentro de mim, não consegui resistir a escrevê-la. Mas vocês, Caros Leitores, não liguem que o dia é de festa, não de lágrimas.

As imagens são ainda de Lucian Freud.

Caso pretendam ler esta história de seguida (do último post para o primeiro), queiram, por favor, pesquisar aí do lado direito, mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - a mulher muito triste'.

*

E tenham, meus Caros, um belo sábado. 

Hoje é dia de ir para a rua, não vos parece? 
O tempo está bom e é melhor falar e gritar e protestar em sítios em que nos ouçam do que no entre quatro paredes em que ninguém nos ouve. 

sexta-feira, setembro 07, 2012

Lídia, a mulher triste que sonhou que estava triste com um seio triste à vista e um cão branco e muito triste ao colo


Mãe Maria


Maria Bethânia

*


Lídia saía do emprego cansada e já enervada. Aliás, também era assim que se levantava todos os dias, cansada e enervada.

Neste dia, tal como nos outros dias, sem saber se havia de ir depressa se, pelo contrário, arranjar um pretexto para se atrasar, descia o caminho que a levaria à paragem de autocarro.

Até ao autocarro chegar, ensaiava desculpas sem saber a quem as havia de apresentar.

Depois, já no autocarro, hesitava em parar junto ao supermercado ou ir logo para casa. Pensava, o pão dá até amanhã, de manhã já só havia duas maçãs e já estavam um bocado murchas. E há as fraldas e os resguardos que se não comprar hoje, tenho que comprar amanhã. Suspirando, desceu para ir ao supermercado.

Enquanto se aproximava, pensava no que iria fazer para o jantar. Ainda lá tinha um resto de canja, talvez uns ovos ou um queijo fresco. E lembrou-se outra vez que no dia seguinte tinha que passar pelo Centro para ir buscar a receita. Outra vez. Ou era para marcar consulta, ou para ir buscar prescrições para análises ou receitas, ou era ir mostrar as análises, sempre isto, sempre, horas nisto e sempre enervada, o tempo que tudo aquilo demorava.

No supermercado reparou numa mulher elegante, umas calças justas, uma blusa justa sem mangas, cabelo comprido, ágil toda ela.

Comparou-se com ela e achou-se pesada, cabelo baço, raízes brancas à vista, uma blusa larga sem graça e os olhos, sabia, conhecia tão bem os seus olhos, tristes, sempre tão tristes.



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Para se consolar, pensou que a outra devia ser bem mais nova. No entanto, passado um bocado, um miúdo de uns sete ou oito anos apareceu com um livro gritando pela avó, se podia levar aquele livro. Lídia desanimou, já avó? querem ver que afinal é mais velha que eu? 

Cabeça baixa, comprou o que tinha a comprar e lá foi, rua fora, um saco pesado de cada lado. Pensamento positivo, auto estima, toda a gente lhe diz isto, bons conselhos, pensa Lídia. Mas como? E para quê?

Ainda não tinha chegado junto à porta do prédio e já o coração estava a disparar. Como estarão as coisas hoje? Sempre aquele pavor. Pousou os sacos, viu o correio. Nada. Nunca havia uma carta, nunca. Só facturas, folhetos, coisas sem interesse. Uma carta de uma amiga, um postal de uma prima, um bilhetinho de um admirador desconhecido, nunca.

Subiu o elevador. O coração acelerado, uma aflição, sempre aquela angústia. Um dia chegaria e teria um susto, descobriria o que em sonhos tantas vezes lhe aparecia. Um corpo caído. Encostou o ouvido à porta. Nada, nem um som.

Abriu devagar, sempre tanto medo, tanto. Meu Deus, fazei que esteja viva, fazei.

Não valia a apena chamar, não ouviria. Pousou os sacos. Foi à sala. Lá estava a mãe de olhos quase fechados, sentada onde a tinha deixado de manhã, o prato, o copo, o pacote de sumo ao lado. A D. Fátima tinha lá ido à hora de almoço tratar da higiene, dar-lhe o almoço, os comprimidos e, depois, a meio da tarde, outra vez para lhe dar o lanche.

Então mãe? Bem à frente dela, bem alto.



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A mãe acordou da sua letargia, Estiveram aí uns poucos. Traziam uns sacos, remexeram tudo, levaram os teus anéis. Estou farta de dizer que devias esconder tudo. Agora vieram cá, levaram tudo. Entraram por aí, por essa porta, e eu em me mexi. E apontava para uma estante.

Lídia não se alterou, era sempre a mesma conversa e agora confundia a estante com uma porta. Perguntou-lhe Então e esteve bem? A D. Fátima levou-a a dar uma voltinha pela sala, levou-a até à janela? 

A mãe, com ar aborrecido, fez que não ouviu. Lídia repetiu mais alto. A mãe respondeu Ela hoje não veio cá, estou aqui sozinha desde ontem. Tens que a mandar embora, só cá vem para roubar tudo, já levou os lençóis todos.

Lídia encolheu os ombros. Depois, cansada, Mãe, veja se não dorme agora; porque não presta atenção à televisão? Estava mais distraída. Assim já sabe que de noite não tem sono, não dorme e não me deixa dormir, mãe, e era quase uma súplica, precisava tanto de dormir uma noite descansada.

A mãe encolheu os ombros, Não ouço nada e Lídia não percebeu se a mãe dizia que não a tinha ouvido a ela ou se estava a justificar-se de não ver televisão.

Cansada, Lídia foi mudar de roupa, passou pelo espelho e viu uma mulher a envelhecer, desviou o olhar, foi para a cozinha. Ligou a televisão da cozinha. Só tretas, só doenças, mortes, roubos, aumentos de impostos, roubos e mais roubos, a televisão só dá disto, pensou.

Aqueceu a sopa, fez um cerelac, arranjou um tabuleiro e levou à mãe.

Não quero, ainda não tenho fome, e o tom é quase agressivo. Vá lá mãe, já é tarde, a ver se não vai para a cama de barriga cheia, tem que comer. Mas a mãe insiste, não quero, ainda há bocado acabei de lanchar. Até há algum tempo atrás Lídia confrontá-la-ia então, mas não disse que a D. Fátima não veio? mas agora já não diz nada. Põe-lhe um pano no colo, ajeita-a, põe-lhe a colher na mão. Mas, como a mãe não se mexe, começa a dar-lhe a comida à boca. A mãe não quer, afasta a colher com gestos de criança, fecha a boca, depois diz a minha mãe esteve aí há bocado e disse que eu estou bem assim, que não preciso de comer muito. Lídia não se admira, Está bem, mãe, mas agora coma lá, vá lá, mãe, mas o cansaço na voz de Lídia é pesado, apetece-lhe desistir, apetece-lhe descansar.

Resolve esperar. Vai ela jantar. Senta-se sozinha na mesa da cozinha, olhando a televisão. Adriano Moreira numa entrevista a Fátima Campos Ferreira, uma grande entrevista, percebe, mas não consegue concentrar-se. De repente, sem motivo aparente, começa a chorar. A vida é uma coisa boa, pensamento positivo, pois, é bom de dizer, o pior é o resto... Chora com pena de si própria, sem solução, enredada neste destino a que não pode nem quer fugir. Se pudesse falar com alguém, ao menos isso. Se alguém aparecesse para a abraçar e para tomar conta dela e da mãe.

Lembra-se da mãe, a querida mãe Maria, a mãe quando era nova, enérgica, a pôr a mesa, estendendo a toalha, passando com a mão para alisar, toda ela vivacidade, ou a fazer a cama e os lençóis faziam um ventinho bom quando ela os sacudia, e à noite sentava-se a organizar o álbum de fotografias e era bonita, arranjava-se e, depois, Lídia lembra-se também de si própria, menina cheia de vida, cheia de alegria, a vida pela frente, pensando que ia ter um namorado, um marido, filhos. E agora estava ali sentada a uma mesa de cozinha, sozinha, lágrimas escorrendo, pensando que piores dias ainda estavam por vir e que teria que os enfrentar sozinha.

Depois viu as horas. Tarde. Voltou para a sala, a mãe dormia. Vá lá mãe, acorde, tem que comer, vá lá que tem os comprimidos para tomar e não os pode tomar de barriga vazia, tem que comer qualquer coisa, mãe, vá lá. A mãe abre os olhos, ar agressivo, deixa-me, sempre a chateares-me, estúpida, vai chamar a minha filha, quero ir-me embora daqui, quero ir para casa. Vais ver o que te vai acontecer quando souberem o que me fazes.

Lídia não diz nada. Tenta dar-lhe a sopa mas a mãe afasta-a com violência e a colher vai parar ao chão, isto já está frio, não quero nada disto, que porcaria, só me dão porcarias, vais ver o que te acontece, vais ver.

Lídia vai buscar papel e limpa o chão. Depois diz, vá, mãe, vamos lá então para a cama, agarre-se a mim, faço outra papa e dou-lha na cama. E pensa, agora vai ser um drama para lhe mudar a fralda. Chora em silêncio, cansada, mas não diz nada para não enervar a mãe.

Mais de uma hora depois, depois de ter deitado a mãe, fralda limpa, medicamentos tomados, meia dúzia de colheres de cerelac, Lídia dá-lhe as gotas para dormir. Por um momento pensa que devia aumentar a dose mas tem medo, não o faz. Lembra-se que uma colega, anos atrás: deu gotas a mais à mãe, também já não conseguia passar mais noites mal dormidas e no dia seguinte a mãe não acordava e ela apanhou um susto de morte.

Depois, finalmente, quando estava despachada, ficou sem saber o que fazer. Sentou-se na sala, pegou numa boneca de pano que comprou muito tempo atrás numa feira de artesanato, sentou-a ao colo, sempre era uma companhia. Abriu o computador, leu umas coisas. Sempre era uma companhia, também o computador.

Depois encostou-se no sofá, braços cruzados no peito, era como se estivesse abraçada a si própria, a única companhia que tinha. A solidão pesava-lhe tanto, estava tão triste.

Acordou algum tempo depois, angustiada, assustada. Tinha tido um sonho estranho, e, assustada, logo pensou em ir espreitar a mãe, será que lhe tinha dado as gotas na dose certa? e o sonho não lhe saía da cabeça, era mais nova, e estava sozinha, triste, os olhos tão tristes e vazios, tão perdida, sempre tão triste ela, e tinha um seio branco e inútil de fora do roupão. E ao seu colo dormia um inquietante cão branco, também muito triste.




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As pinturas são de Lucian Freud (1922-2011), pintor inglês, nascido alemão, neto de Sigmund Freud.


[Caso pretendam ler esta história de seguida (do último post para o primeiro), queiram, por favor, pesquisar aí do lado direito, mais para baixo, a etiqueta 'Lídia - a mulher muito triste'].

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Hoje deu-me para tristezas. Peço desculpa se vos contagiei. 
Pode não parecer mas desejo-vos um dia alegre. Aproveitem a vida, meus Caros Leitores!