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quarta-feira, setembro 10, 2025

Ro Ro, ou a graça das mulheres-meninas

 

Confesso a minha ignorância: nunca tinha ouvido falar em Angela Ro Ro. Mas devota do Bial como sou, se ele a leva às suas gostosas conversas, eu estou lá. Portanto, pus-me a ouvir.

E, à medida que a ouvia, risonha, provocadora e engraçada como uma adolescente, mostrando continuar sequiosa de vida e diversão, pronta para os amores, ia-me lembrando de uma amiga que é assim. Muito, muito assim (apenas com a diferença de que Angela Ro Ro é gay e a minha amiga é hetero).

Tal como vejo, pela entrevista, que Angela Ro Ro tinha a fama de ser uma malandreca, também a minha amiga, quando entrou a sério na adolescência, virou uma bela safadinha. Tinha fama de alta namoradeira ou mais que isso, fazia coisas que, por vezes, me deixavam um bocado perplexa, sobretudo por achar que ela caía com demasiada facilidade nos braços errados. Mas ela não me ouvia. Não ouvia ninguém. Parecia tomada por uma urgência de experimentar tudo, de quebrar todos os tabus.

Mas, à posteriori, vim a verificar que, afinal, era muita parra e pouca uva. Muitas aventuras, muitos empolgamentos, e, depois, muitas decepções, muitos desgostos. Conta que foi várias vezes traída. No fundo acreditava demais em quem, se via à légua, que não merecia qualquer crédito. Mas ela não via o mesmo que os outros. Olhares racionais e objectivos não eram com ela, toda emoção, toda inocência.

Talvez por isso ou talvez porque a vida, por vezes, prega partidas a quem não o merece, amores verdadeiros, grandes, intensos, duradouros, que não a fizessem sofrer, não os teve.  

Mas não ficou ressentida nem desanimada. De facto, ainda agora continua a ser tal como se descobriu quando, adolescente, resolveu abraçar a vida sem reservas: alegre, brincalhona, sedutora, irreverente, com uma tremenda vontade de amar e de ser amada, a mesma adorável adolescente. E... continua a dar com os burrinhos na água pois continua a atirar-se, sem reservas, para os braços de quem não tem condições de retribuir a paixão. No entanto, continua, sorridentemente a acreditar que o melhor ainda está para vir, a correr atrás da sorte, do amor, da paixão. E eu, do mais fundo do meu coração, desejo que um dia encontre alguém que a ame como ela, desde sempre, desejou ser amada.

A voz INESQUECÍVEL de Angela Ro Ro | Conversa com Bial | GNT

No #ConversaComBial , uma homenagem especial à icônica Angela Ro Ro, cantora e compositora que marcou a MPB com sua voz potente e canções inesquecíveis.

Com uma carreira iniciada nos anos 70, Angela deixou clássicos como Amor, Meu Grande Amor e Compasso, tornando-se referência de autenticidade e emoção na música brasileira.



quarta-feira, maio 14, 2025

Sobre este dia 13 de Maio

 

Depois de um dia de galdeirice, apetecer-me-ia reportar essa actividade. Mas, noblesse oblige, face à indisposição do Ventura, não me parece que haja clima para grandes bordejos. 

Direi apenas que o almoço foi composto de petiscos em versão comida de autor e que, de cada vez que vinha o prato, eu pensava: 'já foste'. Coisinhas pequeninas cuidadosamente dispostas, circundadas por nano-caules ou nano-folhinhas, tudo em versão lilliput. Muito bem confeccionado, tudo saboroso e bonito. 

Curiosamente, saí de lá bem, confortada, e, mais curiosamente ainda, cheguei à hora de jantar sem fome.

Enquanto lá estávamos -- numa mesa junto ao vidro que dá para a rua --, fui à casa de banho. Contou-me o meu marido quando voltei que, nesse ínterim, tinha passado uma conceituada jornalista, conhecida pela sua pretensa sabedoria e pela sua conhecida animosidade, diria até mau feitio, contra alguns ódios de estimação. O meu marido estava um pouco desconfortável com o que viu, disse que a senhora, a andar, quase parece meio trôpega (embora não tenha idade para isso), que tem uma figura um pouco embaraçosa, nada a ver com a pose algo superior com que se apresenta ao balcão do comentário televisivo. Cada um é como é e ninguém tem nada a ver com isso nem tem que alvitrar palpites sobre o tema. Mas, na verdade, já não é a primeira nem a segunda nem a terceira vez que, vendo ao vivo os temíveis jornalistas ou comentadores televisivos, penso: 'coitados... na verdade não metem medo a ninguém...'. É a televisão que é a arma temível, não as (por vezes) fracas figuras que por lá peroram.

Não há muito, íamos no passeio atrás de um que tem a mania que pode demolir políticos, em especial se forem mais à esquerda. Escreve e fala sempre assanhadamente como se tivesse na manga segredos e podres capazes de atirar os seus alvos para a sargeta. Ia ao telefone, a trocar informações com alguma fonte. E eu, que tenho um ladozinho um bocado infantil, ao vê-lo com ar de totó, só pensava: agora era tão fácil passar-lhe uma rasteira... e lá ia o temível jornalista com os cornos ao chão. Mas, claro, a minha mente policia-me e impede-me de concretizar essas inocentes diabruras. Aliás, acérrima polícia de costumes que também é, até me impede de verbalizar expressões mais vernaculares. Fica tudo dentro da minha cabeça.

Posso também acrescentar que, de regresso a casa, passámos pelo supermercado. Havia choquinhos na bancada do peixe e não resisti a trazê-los para os cozer com tinta. O meu marido perguntou se não ficariam bons assados no forno. Não me pareceu, eram miúdos demais. 

Lavo-os bem. Por acaso estavam carregados de areia, lavei e lavei e lavei. Não arranjo, cozo-os com todas as suas vísceras e tentáculos. Cozo-os só em água, não muita. Nem sal ponho pois eles mesmos se encarregam de salgar a água. A água fica negra, claro. Quando estão macios, junto batata doce cor de laranja e roxa, com casca, cortadas às fatias grossas. Ficam tingidas e saborosas. Depois é que arranjo e tempero.

Só que, depois de ter colocado as batatas, ligou a minha filha, ligou o meu filho, e as chamadas foram mais longas. Quando vim ter com o meu marido à sala, deu-me o cheiro. Sempre acabou por ter chocos assados. 

Felizmente, no tacho, coloco-os sempre com a prancha calcária para baixo. Por isso, o que foi à vida foi a membrana fina. Essa desapareceu, derretida no fundo do tacho. Depois as placas dos chocos ficaram castanhas, de queimadas que ficaram. Daí para cima ficou tudo bom, mas quase desfeito. Claro que o pior foi lavar o tacho. Tudo queimado, tudo negro, um cheiro a choco assado que nem vos digo nada. Caraças.

Mas estavam bons, embora quase tudo transformado em puré.

Também vi, depois, nas mensagens de um grupo de amigos, que um esteve doente e que ainda estará com um problema resultante da cirurgia, supostamente um mal menor. E fiquei como sempre fico quando sei de algum problema com os meus amigos, em especial os de longa data: parece que a modos que tolhida, talvez assustada. Tendo a pensar que eu e os que conheço de há séculos somos eternos, eternamente jovens, eternamente alegres, eternamente saudáveis. Quando constato que, de vez em quando, alguém adoece, fico triste, preocupada, com vontade de fazer ou dizer qualquer coisa para que se sintam animados, esperançosos, com optimismo, motivados para ultrapassar as dificuldades. Mas muitas vezes não digo nada com receio de que, ao transmitir uma mensagem de ânimo, deixe transparecer a minha preocupação. Mal comparado, foi o que aconteceu quando a minha mãe estava no hospital, muito mal, e, estando eu a querer animá-la, vejo aparecer um padre no quarto. Fiquei em pânico, com medo que ela percebesse que a morte estava a rondar. Lembro-me que enxotei o padre o mais educadamente que consegui mas numa aflição, receando que ele quisesse dar-lhe a extrema unção. E, de facto, no pouco que ele conseguiu dizer, houve lá umas palavras que me deixaram em transe, furiosa. Salvo erro, dirigindo-se a não sei que entidade, deus ou nossa senhora, não faço ideia, disse: 'recebe esta nossa irmã...'. Não sei se a minha mãe se apercebeu de alguma coisa mas eu fiquei traumatizada com isso. Mas, verdade seja dita, nem sei o que é que dá mais conforto a quem se sente menos bem, com incómodo físico, com receio do que por aí possa vir -- se é que tentem animá-los, tentem transmitir esperança e força, ou se é que lhes digam que se compreende o susto e o medo. Não sei. E acho que deveria saber pois posso agir desaquadamente numa altura em que alguém, estando mais vulnerável, precisaria do apoio devido.

Depois vi as imagens do André Ventura e também fiquei um bocado impressionada. Ainda por cima é bem mais novo do que eu julgava. Politicamente não posso estar mais distante dele. Tudo me separa do populismo. Mas se, a nível político, gostava que ele se estampasse nas eleições, a nível pessoal, não quero o seu mal. Se ele tem pais, imagino o medo que sentiram ao ver o filho agarrado ao peito e ao pescoço e a desfalecer. E depois o Chega é ele. Se ele se retirar de cena, nem que seja por uns dias, não há Chega para ninguém. E a ele, que de burro não tem nada, isso também deve preocupar. No seu íntimo, o seu sonho deve ser arranjar maneira de ainda chegar à liderança do PSD, um partido minimamente respeitável e não aquele aglomerado de gente desqualificada que é o Chega.

Mas, enfim, espero que melhore. 

E agora vou espreitar o instagram (@veramulanver) antes de me ir deitar. Aquilo é, verdadeiramente, um infinito caudal de cenas, uma janela de onde se vê o mundo (ou parte dele), uma imparável torrente de imagens e palavras efémeras. 

A minha filha no outro dia disse-me que deixar corações ou mensagens nas outras pessoas é importante para alcançar algum engagement -- e espero não estar a distorcer o que ela disse pois há ali uma lógica e uma semântica que ainda não domino bem. Acontece que, salvo raríssimas excepções, nunca me lembro de tal coisa. Aliás, sempre achei essa coisa dos likes uma puerilidade, uma fixação. As pessoas estarem a contar likes ou seguidores parece-me uma coisa tonta, um sinal de carência afectiva -- nem sei. Mas, na verdade, contra factos não há argumentos e tonta devo ser eu por estar tão fora destes tempos em que as redes sociais quase parece que tendem a substituir-se ao mundo real. 

Para já, tenho 251 seguidores, e, tal como ficava estupefacta por tantas pessoas descobrirem o meu blog, agora também fico admirada quando pessoas que não faço ideia quem sejam se tornam minhas seguidoras. Sinto-me agradecida. Comecei a ter conta de instagram em Fevereiro e não faço ideia se 251 seguidores é um número que não envergonha ou se é tão pouco que até dá pena. Mas, seja como for, é o meu ritmo. Não quero nem sei nem me apetece andar à pesca de seguidores. 

Também acontece que, acho eu, tudo o que ponho no Instagram vai também para o Facebook. Mas eu nunca vou ao Facebook, esqueço-me, parece que não me entendo com aquilo, parece-me antiquado, não sei. Mas, volta e meia, reparo que tenho mails a dizer que tenho notificações. Vou ver e são pessoas a quererem ser minhas amigas no Facebook. Mas, como aquilo é público, acho que não tenho que fazer nada. Se querem ser minhas amigas ou seguidoras, pois muito bem, que sejam. O pior é se eu tenho que as puxar ou dar algum ok e estou a deixá-las penduradas. Tenho que me informar. Não quero parecer desagradável ou que pensem que estou armada em coquette.

E é isto.

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Dias felizes

segunda-feira, janeiro 13, 2025

Coisas da vida

 

O domingo foi tranquilo. Estive muito ocupada mas isso não tornou o dia menos tranquilo. 

O tempo esteve afável e, depois de almoço, pus-me em trajes menores ao sol. O buganvília fornece a cortina que garante a minha privacidade face aos vizinhos da casa ao lado. 

Tenho dois familiares internados e, dada a idade que têm, claro que fico bastante preocupada. 

Há cerca de um ano estava eu numa angústia, aterrorizada sempre que o telefone tocava, aterrorizada sempre que entrava no quarto, aterrorizada sempre que não sabia o que dizer à minha mãe sem deixar perceber que sabia que ela podia morrer de um momento para o outro.

Nessa altura, quando estava em casa, via todos os vídeos que encontrava, colocava mil questões ao chatgpt, percorria toda a literatura que encontrava para tentar perceber o comportamento da doença e se havia alguma coisa que se pudesse fazer ou para perceber quais seriam os sinais de que ela estava mesmo a morrer. O meu marido queria impedir-me, achava que eu estava a martirizar-me desnecessariamente. Mas tenho uma necessidade insaciável de querer compreender tudo ao pormenor. A minha filha também me criticava, dizia que era assunto para médicos, não para leigos, e que estava a deprimir-me para nada. Creio que o meu filho talvez me compreendesse pois é um bocado como eu mas acho que o meu marido não chegou a comentar com ele que eu andava, obsessivamente, a tentar saber tudo o que se passava dentro do corpo da minha mãe. Depois, poucos dias depois, morreu. 

Se calhar deveria ser capaz de dizer que, felizmente, poucos dias depois morreu. Mas ainda não consigo associar o conceito de felicidade à antecipação da morte.

Contudo, o meu lado racional começa a interiorizar que, nestas situações, querer que a morte chegue mais tarde é apenas querer que aqueles que amamos sofram cada vez mais. Por isso, tento ter sempre presente o que uma amiga, médica, amiga também da minha mãe, me disse já por mais de uma vez: 'Ainda bem que foi rápido, ainda bem. Não percebes que foi melhor assim?'. Pois, se calhar devia mesmo perceber.

Foi em Janeiro.

Também me lembro de que, quando morreu a minha avó materna, o meu tio, tentando consolar-me, disse: 'É assim, no inverno cai a folha', como se fosse uma coisa natural, chegando-se ao inverno da vida, partir.

Não fixei o mês das mortes de mais ninguém, a não ser a do meu pai que morreu no início de Maio. Dos meus outros avós, tios, sogra, etc, não me lembro. Mas sei que o meu sogro também morreu por estas alturas. Se fizesse uma pesquisa aqui talvez descobrisse o dia da partida de alguns. Mas não quero, não me apetece.

E espero que estes meus familiares que agora estão doentes recuperem. Um parece que está a melhorar, outro nem tanto. A minha prima usa termos médicos e eu depois vou ver no google ou no chatgpt o que é mesmo aquilo. Quando as pessoas chegam a estas idades avançadas, a vida começa a ser um equilíbrio. Felizmente viveram bem até agora pelo que isso já ninguém lhes tira. Não é?

Seja como for, começo finalmente a encarar estas coisas como naturais.

Em contrapartida, ainda fico muito impressionada, mesmo um pouco angustiada, quando alguns dos meus amigos, da minha idade, têm coisas chatas. Dois deles tiveram-nas muito recentemente. Um ainda está em tratamento. Isso faz-me impressão. Um dia estão na boa, toda a gente, incluindo eles, julgam-se na boa, curtem a vida com gosto e alegria, e, afinal, no dia seguinte, descobrem que não estão. Desses dois, um era (e é) médico do outro. A vida é, por vezes, traiçoeira. E breve.

O meu marido não gosta que eu fale disto. Acha que é uma conversa da treta. Mas não sou pessimista, fatalista, nada disso. Acho que é o contrário. Se encararmos a nossa condição humana, precária, frágil, efémera, de forma racional, saberemos dar valor ao que temos, enquanto temos. 

Penso que se tivermos consciência de que coisas assim acontecem a toda a gente, melhor saberemos aproveitar a vida, dar-lhe valor, darmos graças por estarmos bem.

E é isto. Não tenho conseguido responder a mails, comentários ou ver televisão porque, quando me meto em alguma, é de cabeça e pouco ou nenhum tempo sobra para o resto. Hei de voltar à superfície.

Entretanto, desejo-vos uma boa semana.

segunda-feira, dezembro 09, 2024

Revisitar o passado

 

No outro dia, aqui nesta vossa humilde chafarica, verifiquei um número anómalo de visitantes a reler um post já antigo. Fiquei muito admirada. Quando vi o título, percebi. 

Éramos felizes e não o sabíamos...? Voltaremos a sê-lo e ainda não o sabemos...?

Muita gente foi aos motores de busca escrever "éramos felizes e não o sabíamos", expressão que, como sabem, foi usada pelo desbocado Marcelo a propósito dos 8 anos em que trabalhou com António Costa. (Anda a ver se se limpa... mas não se limpa porque não somos desmemoriados nem mentecaptos). Mas, então, os algoritmos mandaram essas pessoas aqui para o Um Jeito Manso.

Nesse post, escrito no fim de Março, eu questionava-me sobre o que estava para vir. A crise Covid era recente, ainda se sabia muito pouco, estávamos todos confinados. Por sorte, temos possibilidade de nos refugiarmos num dos lugares do mundo em que nos sentimos melhor. Estávamos, pois, no campo. Mas trabalhávamos desde manhã muito cedo até às tantas da noite, passávamos os dias inteiros ao telefone ou em frente ao computador e os problemas choviam-nos em cima, em catadupa. Mal tínhamos tempo para almoçar e via-me aflita para conseguir preparar as refeições.

Acresce que nessa altura a minha mãe ainda resistia e dispensar a fisioterapeuta que ia lá a casa e não queria correr o risco de melindrar a senhora que lá ia ajudar com o meu pai pelo que não lhe dizia para se descalçar ou para usar máscara. Achava que era tudo um bocado exagero ou que só acontecia aos outros. Isto enquanto eu acompanhava a aflição de um colega com o pai com uma dor nas costas, depois sem respirar e, por fim, em meia dúzia de dias, a morrer de covid. Contava à minha mãe e ela achava que eram pessoas sem cuidado. Tive que dizer que ia eu telefonar à fisioterapeuta e à outra senhora para ela se encher de coragem e passar a seguir as indicações da DGS. 

Os noticiários abriam e fechavam com os números crescentes de casos e de mortes.

Por isso, naquele post eu relembrava os tempos tranquilos pré Covid e interrogava-me sobre o que estaria para vir.

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Entretanto, ontem, de novo, um número grande de visitantes a lerem um outro post antigo, este de 2019.

Com incansável inteligência e alguma ocasional petulância

E, também aqui, reli com prazer. Lembrava os tempos em que um grupo de directores, praticamente todos da mesma idade, todos muito irreverentes e bem dispostos, todos amigos uns dos outros, curtiam à grande. Curtíamos no sentido de nos divertirmos à séria. Também trabalhávamos (e, sempre tive essa ideia, trabalhávamos articuladamente e bem) mas era um prazer, uma alegria. 

Ao escrever, relembrei alguns episódios que me fazem sempre sorrir. Ainda ontem o meu marido relembrou um episódio, dos mais picantes e salgados a que assisti, e assisti no meu gabinete (que era um ponto de encontro), que me faz rir à grande sempre que dele me lembro. Como o meu marido conhecia bem os dois envolvidos, na altura contei-lhe. E também achou o máximo. Passou para os nossos anais da truculência, da malícia, da malandrice. (Não faz parte do que contei no post referido).

Depois mudei para uma empresa em que eram todos muito betos, na realidade, supé-betos, daqueles que não se acham betos porque acham que os betos são uma classe inferior, nouveau riches, pois eles, pelo contrári,o são sobretudo old money. Mas que, na verdade, são betada da maior, até à medula. Tudo boa gente, educadíssimos, simpatiquíssimos... mas incapazes de uma brejeirice, de um palavrão. Senti-me desterrada. Era só trabalho, trabalho, trabalho... e, caraças, uma seca...

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Convido-vos, pois, a clicar nos links acima. Por vezes, sabe bem revisitar o passado.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

Saúde. Esperança. Alegria

quarta-feira, novembro 27, 2024

Outras terras, outros sons: na Casa Branca

 

Não sei exactamente de que se trata mas, ao ver a imagem da casa no vídeo que aqui partilho, percebi que era em Portugal. E confirma-se. 

Pus a andar e gostei de ver e ouvir, embora não perceba bem o que se passa ali. Mas, para gostar, também não é preciso compreender - a emoção e o pensamento nem sempre têm que andar a par e passo. É um encontro de pessoas que têm interesses comuns, isso certamente. Não sei porquê ali, naquele lugar, mas isso também não interessa. Enquanto escrevo, estou a ouvir pela segunda vez e agrada-me. 

E qualquer coisa no ambiente que ali se percebe me fez lembrar uma amiga de longa data. A sua profissão é no domínio da razão e do conhecimento, é médica, mas sempre foi um pouco alternativa. E aqui apetece-me dizer 'alternativa no bom sentido' mas também não sei o que isso seja. Mas, só para se perceber, aos dias de hoje, não tem telemóvel. Passa bem sem isso. Não lhe apetece ser incomodada. Quando precisa de contactar alguém, usa o telefone fixo. Quando alguém a quer contactar e ela não está em casa, é o diabo. Quem tem o número do marido, liga-lhe. Quem não tem, terá que ir ligando até que ela regresse a casa. Mensagens, grupos de whatsapp, coisas dessas, é tudo o que ela não precisa, não gosta, não quer, não sente curiosidade. 

Interessa-se por mil coisas mas sobretudo coisas ligadas à terra, à natureza. Sabe muitas coisas que eu não sei. No outro dia, por exemplo, falava-me da planta de onde vem a alpista. Eu não fazia ideia, claro. Também viaja muito e diz que visita museus, galerias, coisa assim, mas aquilo que prefere é andar na rua, ver as pessoas. Por exemplo, já foi algumas vezes à Índia e tenciona voltar. Gosta de andar pelas aldeias, gosta de ver como as crianças se arranjam para ir à escola, por muito modestas que sejam, gosta das cores, dos cheiros, dos sons. 

Agora que deixou de trabalhar, diz que gosta muito de estar no jardim a ler ou a observar. Conhece todos os pássaros, os seus cantos, os seus hábitos. Eu não conheço nada do que ela sabe.

Mas surpreendo-me sempre com o que ela diz. Só para verem, estava a falar-me dos estorninhos, dos pardais, das rolas. Às tantas, falava creio que do melro. Mas não sei se era do melro ou do tordo. E estava naquilo quando me diz: 'Quando andam de roda das oliveiras, gostam de comer o que sobra das azeitonas. Esses são os mais saborosos.'

Fiquei de boca aberta, claro. 

Quando eu era pequena e o meu pai ia aos pássaros com os amigos, armando armadilhas que deixavam, de noite, regressando a casa após as recolherem de madrugada, nós comíamos passarinhos fritos e eu achava-os uma delícia, era um petisco que eu apreciava imenso. Mas desde há mil anos que não consigo pensar em molestar os inocentes passarinhos, muito menos comê-los. E, no entanto, a minha amiga, toda natureza, toda peace and love, ali estava a falar-me do sabor dos passarinhos quando se alimentam de azeitonas maduras. Ainda pensei que não tinha ouvido bem: 'Mas quê? Comes?!'. E ela, sem perceber o meu espanto, 'Claro'. 

A vida é assim mesmo, surpresas, surpresas, surpresas.

Amanhã, se me lembrar, conto uma outra, de uma outra amiga. Uma 'surpresa' que me deixa a rir de cada vez que me lembro.

Mas agora passo a palavra a Mary Keith, que também parece ser bem cool, bem boa onda -- para além de ter um cv bastante interessante.

Other Lands Other Sounds

A setting of the choral processional song used in "Vias", the final performance of the Curiosa "Other Lands Other Sounds" residency at Casa Branca, Portugal summer 2024. 

Music and words by Mary Keith and Kelsie Moore, with thanks to Kate Smith for arrangement ideas, images by Mary Keith, Beatriz Martinez, Ani Keyahova and Ana Torres, with thanks.


terça-feira, agosto 06, 2024

Memória de belos e gostosos slows nas festas de garagem de um amigo.
[E, a despropósito, uma arte diferente]

 

Enquanto as televisões se enchem de entendidos a delinear estratégias para resolver a putativa guerra Irão - Israel, eu distraio-me tentando descobrir outras coisas que me interessem. A esta hora já não me dá para ler livros, só para escrever ou para cirandar pelos vídeos ou pelas gordas dos onlines.

Há bocado, ao ver uma mensagem, num grupo de amigos, de um deles, o que tinha a melhor casa e que generosamente a disponibilizava para as famosas festas em sua casa, pensei como curiosamente continua a mesma pessoa, low profile, reservadíssimo, mas, ao mesmo tempo, surpreendente com a sua cultura, em especial, cultura musical mas, também, uma visão humanista e invulgar sobre o mundo.

Ele sempre foi muito alto. Desde miúdo que é igual. Baixava-se um bocado, parece que se encurvava um bocado para não ficar muito mais alto que os outros. Tinha óculos que parece que lhe punham os olhos maiores e que lhe davam um ar ainda mais tímido. Nas aulas nunca se destacou. Também nunca se portou mal. Nunca se meteu em sarilhos. Quase nos esquecíamos dele de tão boa pessoa que ele era.

As festas eram na garagem que ficava vazia para nós. Ao fundo havia mesas onde a trupe da luz e do som instalava aparelhagem sonora e luzes que piscavam. Estávamos por nossa conta. Havia um belo jardim mas ninguém queria saber do jardim para nada. Queríamos era estar na garagem, de preferência à meia luz.

Muitos slows ali dancei, muito mel ali se destilou. Namorei que me fartei naquelas festas.

À hora do lanche, abria-se a porta que fazia a ligação da garagem à casa e avançávamos. 

A casa era fantástica, grande, muito bem decorada. A escada, interior, era invulgarmente larga e no patamar intermédio, entre os dois lances, junto a uma grande janela, havia um piano. 

Aí, havia sempre alguém que ia tocar, no piano, as músicas mais conhecidas da altura. Nos últimos anos, apareceu um 'artista' e aí as pianadas eram mais a sério. Muito bom.

Na sala de jantar havia uma mesa enorme cheia de comida. Coisas boas com fartura.

Tento lembrar-me da mãe mas a ideia que tenho é vaga, mistura-se com a imagem da mãe de um outro que tinha mais ou menos a mesma maneira de ser e que tinha pais que já não me pareciam novos, o pai era o Notário da cidade e a mãe era uma senhora que se arranjava muito bem, distinta, sempre muito bem vestida e penteada. Lembro-me, sim, que a mãe deste da garagem (o outro também fazia belas festas mas não tínhamos instalações tão independentes) era discreta, simpática, mal se dava por ela (a do outro também).

Curiosamente casou com a irmã do meu namorado da altura. Ele era um maluco de primeira. A irmã era o contrário mas não se espantava, não se escandalizava nem se indignava com as doideiras do irmão. Era como se aceitasse que era normal que, volta e meia, a família tivesse  chatices com o irmão. Casou com o colega do irmão, o colega melhor comportado. Deve ser um casal tranquilo. Pelo menos assim parece. Na altura, ela parecia uma rapariga crescida quando nós éramos uns catraios. Agora parecemos todos da mesma idade.

Sei que se interessam por arte e não me admirava nada que, se eu lhes mostrasse este vídeo, também achassem piada.

Tanya Marcuse: Artist

“I try to kind of have both of those things visible at once…in a single piece there’s some kind of sense of the duality and unity between growth and decay.”

When you venture into nature, you probably find yourself thinking about how naturally beautiful the environment looks. Artists strive to capture that beauty, and Tanya Marcuse does this by foraging and recreating natural scenes in her photography. 


Dias felizes!

sexta-feira, maio 10, 2024

Savant

 

Ao aparecer-me um dos vídeos que partilho abaixo lembrei-me daquele meu extraordinário colega a quem estou em dívida quanto a um telefonema. É das pessoas mais desconcertantes que já conheci.

Começa-se a falar com ele e, de início, não se percebe que há ali qualquer coisa de especial. Ou melhor, perceber até se percebe, não se percebe é o quê. Aliás, eu própria comecei por dizer que achava que havia ali qualquer coisa que não batia certo. Não sabia definir o quê mas intuía que qualquer peça, naquela cabeça, parecia estar um bocado fora do sítio. 

Mas, por acaso, no bom sentido.

Muito inteligente, de uma inteligência rápida e bastante holística. Mas, mais do que a nível profissional, era nas conversas sobre outros temas que se percebia que estávamos em presença de uma pessoa incomum.

Sobre história, sabia tudo. Mas, quando digo tudo, quero dizer tudo, mesmo tudo. Com nomes, com datas, com locais. Sobre qualquer assunto, o conhecimento dele era infinito e relacional. 

Mas a nível de literatura, no que lhe interessava, também nunca conheci ninguém, assim. Ele sabe os títulos, as editoras, as datas das edições e, mais que isso, ele sabia partes inteiras de cor. Não sei, porque nunca ousei testar, se não saberia os livros inteiros de cor. Dos livros não portugueses que lhe agradam, ele conhece as várias traduções, compara-as, tem preferências.

Em poesia, do que gosta, sabe não sei quantos poemas de cor e, por exemplo, no caso de Borges, não apenas os sabe em português como os sabe no original.

A nível político, falar com ele é quase diabólico pois lembra-se de cada peripécia que envolva um e outro, acordos, derrapagens, passos em falso, notícias que saíram, resultados das eleições, ano a ano. Nem sei. Tudo.

Contudo, a nível profissional, sendo um trabalhador incansável, não é, contudo, apreciado. O problema é que se torna compulsivo. É capaz de refazer dezenas de vezes um relatório ou uma apresentação pois descobre sempre qualquer coisa a melhorar. É frequente, no meio disso, perder-se nas versões e já não saber a quantas anda. Acontecia, em reuniões, em vez de ter enviado a apresentação de véspera como era habitual, só a enviar de madrugada, por vezes de manhã muito cedo, evidenciando que tinha estado toda a noite de volta daquilo e, no fim, por vezes acontecia enganar-se e enviar a versão errada.

Os subordinados impacientavam-se com ele. Uma arranjou uma depressão e saiu da empresa em total estado de desespero. Já não conseguia aguentá-lo pois ele exigia-lhe a perfeição mas uma perfeição tão exagerada que chegava a ser irracional.

Sendo pessoa com saberes enciclopédicos, era, no entanto, incapaz de fixar os nomes de algumas pessoas com quem lidava mais de perto e que, por algum motivo, ele achava que eram pessoas sem valor acrescentado. Causava embaraço ver como ignorava o nome de pessoas com quem trabalhava todos os dias desde há que tempos. Mas não era só o nome, eram as próprias funções. Não conseguia fixar o que faziam nem como se chamavam e, por ele, podiam sair da empresa que nem daria pela diferença. As pessoas só não se sentiam lixo pois conheciam as suas  particularidades, alguém cuja 'normalidade' era muito discutível.

Acontecia também, quando contrariado, ter fúrias, atitudes despropositadamente agressivas que deixavam toda a gente perplexa. Sendo uma pessoa educadíssima, gentilíssima, de repente, por  coisas de nada, ficava possesso, inconveniente, gritava e, no meio de reacções explosivas, na prática mandava as pessoas embora. 'Saia da minha frente!', 'Vá para casa e não volte a aparecer!'. 

Depois caía nele, aceitava bem as críticas, e acabava arrependido e a pedir desculpa. Mas eu percebia que era qualquer coisa que fugia ao controlo dele.

Do que lhe conheci, não tinha vida afectiva apesar de ser uma simpatia. Mas tudo nele era tão excessivo, tão obsessivo e tão desconcertante que dificilmente arranjaria alguém que conseguisse viver uma vida partilhada com ele.

Depois de muito termos especulado entre nós que raio de pancada ele teria, acabámos por acordar que, muito provavelmente, será um savant. 

Tive divergências profissionais com ele resultantes da sua forma obsessiva e compulsiva de lidar com as situações. Mas sempre as superei pois os seus lados positivos superavam os negativos. Pessoalmente sempre me dei muito bem com ele, éramos amigos, sempre houve do meu lado muita empatia pois conseguia perceber como, sendo ele como era, vivia as situações.

E o que posso dizer é que pessoas assim são fascinantes... e um desafio para os outros.

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Autistic savant Daniel Tammet on ‘the language of numbers’ - BBC Newsnight

Am I capable of being loved? - Daniel Tammet 

Diferenças entre o Autista e Savant | ANA BEATRIZ


segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Não me peçam para comentar o lado positivo e as coisas grossas de que o PCP gosta.
Vou antes contar como foi o meu dia, incluindo o telefonema da minha amiga sobre a minha mãe

 


Dia chuvoso e sem grande atractivo. Mais um dia em casa da minha mãe, mais um dia confrontada com armários e roupeiros cheios que nem ovos, coisas boas, mal empregadas para serem deitadas fora, e nós sem as querermos para nós, porque não temos falta, porque não temos onde pô-las, porque não nos serve ou não são o nosso género.

Tudo muito, muito, tudo infindável.

Valeu-me a minha filha que fez um bom rastreio e que consegue ter um desapego que eu não tenho.

Começo a pensar que, se a minha mãe guardou durante toda a vida, é porque era importante para ela e, se era importante para ela, dá-me pena deitar fora.

Mas tem razão, ela (e do meu marido nem falo pois, por ele, não aproveitava nem um só copo) pois poderia ter importância para ela mas teve-as guardadas longe da vista, durante décadas. A nós pouco nos diz e, a guardarmos tudo aquilo, seria também para ter encafuado, sem qualquer préstimo. E vamos ter as nossas casas atafulhadas de coisas que vão estar escondidas e que são inúteis?

É verdade, reconheço.

Portanto, enchemos vários sacos com coisas que considerámos lixo. 

E voltei a deixar a cama com uma pilha imensa de roupa que a senhora -- que lá ia a casa e que lá irá até esta monda estar feita -- fará o favor de ver se quer alguma coisa para ela e, o que não quiser, tratará de lhe dar destino. Contou que uma rapariga brasileira que veio para Portugal quase só com a roupa que trazia no corpo delirou com a leva anterior, que lhe assenta tudo bom, que está feliz da vida. Fico contente.

A minha filha levou algumas coisas, eu trouxe coisas que acho que têm valor e não podem ir para o lixo e que ela não quer e o meu filho ainda menos.

Ela também já levou alguns livros e eu trouxe também uns quantos. O meu filho diz que fica com o Eça. Mas espero que ele fique com mais alguns pois há muitos, muitos. Eu depois verei se há alguns que  não tenha ou que minimamente me interessem. Depois... nem quero pensar.

E de copos nem sei que dizer. Várias prateleiras cheias de copos. Ora, ninguém quer mais copos, e eu não tenho mesmo onde pô-los. É de loucos, não sei como é possível ter tantos copos. E eu, que ali vivi e que toda a vida frequentei aquela casa, nunca tinha reparado em tal. A gente, à força de tanto ver as coisas, parece que deixa de vê-las. Penso que vamos ter que embalá-los e serão mais alguns caixotes que ficarão na garagem. Como já aqui o referi, só espero que os meus netos, quando estiverem a 'montar' as suas casas, queiram ficar com todo o material que cá estará à sua espera.

Entretanto, quando estava lá, ligou-me uma amiga. Gostei imenso de falar com ela. Conhece a minha mãe desde os nossos dez anos. Contou-me que tem uma grande admiração por ela desde essa altura pois, nesse tempo, entre o nosso grupo de amigas e amigos, era a única mãe que trabalhava. Todas as mães estavam em casa. Lembra-se de estar em minha casa e gostar imenso de falar com ela e de, outras vezes, passarmos pela escola em que ela dava aulas e vê-la, com a sua bata branca. E isso, para ela, era o máximo. Achei graça ela dizer isto. Nunca tinha visto isso segundo essa perspectiva. Para mim era natural a minha mãe trabalhar, tal como era natural que todas as outras mães estivessem em casa. Depois, voltou a estar frequentemente com a minha mãe pois era médica no Centro de Saúde onde a minha mãe ia e, portanto, conversavam sempre e, através dela, ia sabendo sempre notícias de mim. Tal como eu ia sabendo notícias dela. Mas, diz ela, que, do que conhecia a minha mãe, não estranhou a decisão de não nos contar a doença que tinha, não se deixar aprisionar pelos exames e tratamentos que, vendo bem as coisas, não iam servir para salvá-la e iam estragar-lhe a qualidade dos últimos meses de vida. Assim, teve uma morte muito rápida. Quando eu disse que ainda me custa acreditar e que me custa perceber como é que ela esteve tão bem, sem que ninguém percebesse nada, até cerca de mês e meio antes de cair a pique, disse ela: 'Mas ainda bem, não é? Ainda bem que esteve bem quase até ao fim, não é?'. Pois, nessa perspectiva, sim. Esta minha amiga nunca foi médica dela mas conversavam muito e diz que também nunca lhe percebeu nenhum mal estar ou que sofresse daquilo que viria a morrer. Mas reforçou várias vezes: 'Ainda bem que foi assim'.

Hoje, lá em casa, vi as flores que plantou, ela própria, no canteiro do meio, perto do portão, pouco antes de ir para a residência. Estão floridas, alegres. São a prova viva da força dela.

Queixava-se de mil pequenos sintomas, coisas que atribuía sempre aos comprimidos que tomava, achava que mais valia não tomá-los pois vivia melhor sem os seus efeitos secundários. Pelos vistos também não os tomava todos. E, se calhar, dada a conjunção de maleitas e dada a sua idade, mais valia gozar a vida como se tivesse vinte anos, sem medicamentos e, quando tivesse que ser, isto é, quando chegasse a sua vez, chegava. E chegou. Para o mês que vem faria noventa e um anos. 

E toda a gente fala dela como uma pessoa jovial, independente, bem disposta e muito sociável. Uma vez, ao princípio de estar na residência, eu estava a falar-lhe de uma senhora que tomava as refeições na mesma mesa, uma senhora muito interessante, escritora. Como havia lá mais duas, uma delas, uma das quais sua amiga, a minha mãe perguntou a qual me referiu eu: 'Qual, a velhota?'. Fiquei como sempre ficava quando ela se referia às pessoas da idade dela ou mesmo mais novas como 'velhotas'. Mas, de certa forma, percebia. É que, se as outras pareciam ter a idade que tinham, a minha mãe não parecia nada uma velhinha. Nada. Uma vez, ela tinha que ir aos Correios. Disse-me que não ia em dada altura do mês porque estava 'cheio de velhos que iam receber a pensão'. Só que ela parecia bem mais nova mas, na realidade, já era nonagenária. Mas não se sentia. Nunca se sentiu velha. Quando se queixava que os medicamentos para o coração lhe provocavam a sensação de cabeça vazia e tinha receio de ter tonturas, eu e os médicos dizíamos que, se calhar, por segurança, podia usar uma bengala. Nem pensar. Nunca usou. Para ela usar bengala devia ser sinónimo de ser velha. E, de facto, ágil e desembaraçada como era, uma bengala não tinha nada a ver com ela.

Enfim.

Por vezes penso que pode parecer estranho eu, tão cedo, estar a querer dar destino às coisas da minha mãe. Não sei explicar. Como fui várias vezes a casa dela não estando ela lá (quando foi para a residência, como já contei, nas duas ou três primeiras semanas, enquanto ainda estava bem, queria mais casacos, mais sapatos, calças de fato de treino, etc). Por isso, entrar em casa sem ela lá estar não me faz impressão. E acho que, resolvendo já isto, me custa menos do que estar muito tempo sem lá ir e depois ir a uma casa abandonada, triste. Não sei explicar. Cada um vive e gere as suas emoções da forma que lhe é mais natural. Eu parece que fico mais tranquila se souber que as coisas que lhe eram mais queridas estão connosco, em nossas casas. Parece que assim, arrumando e organizando e vendo as suas coisas (como, por exemplo, as cartas, as fotografias, etc), estou a honrar melhor a sua memória, não deixo as suas coisas por lá, tristes e sem razão de ser.

Hoje descobrimos uma coisa que nos fez rir. Num dos roupeiros, numa bolsinha de crochet feita por ela para supostamente trazer, à tiracolo, com o telemóvel ou com a carteira, meia escondida no meio de uns casacos compridos, descobrimos cadernetas antigas da CGD, envelopes de cheques, uns antigos, outros actuais e, no meio, completamente ocultado, um molho de fotografias. Eram fotografias minhas com aquele namorado de quem já tantas vezes aqui falei. Nem me lembrava que as tinha. Ou seja, deu-lhes sumiço, escondendo-as completamente. Provavelmente foi para que nunca se corresse o risco de o meu marido ou os miúdos darem com elas. Mas que mal fazia? Não sei. Só sei que ela nunca engraçou com ele. Não quis que, de alguma forma, ele fosse tema. Fartámo-nos de rir.

Assim, parece que, às tantas, vamos encarando com mais naturalidade o que aconteceu e que tanto nos abalou e que tanta tristeza nos trouxe.

Afinal é o que se diz, a vida continua.

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Chegámos a casa ainda a tempo de vermos o Montenegro com a Inês Sousa Real, uma coisa sem história, pelo menos pela parte que me toca. Nada que se lhe diga. E vimos o infeliz Raimundo que, coitado, não consegue dar uma para a caixa a debater com a Mortágua. Também nada a dizer a não ser que o Raimundo arranjou dois tópicos: o PCP está ao lado do que é positivo e que só vale a pena o que é grosso. Quem viu e ouviu poderá confirmá-lo. Ora não explica o que é isso das coisas serem positivas e, quanto àquilo de só valer o que é grosso, nem vou querer saber até porque a língua portuguesa é traiçoeira. Tirando isso, é uma mão cheia de nada e que, quando quer dizer qualquer coisa, não é capaz. E quando se esforça, como no caso da Ucrânia e da Rússia, é uma infelicidade, vem com a conversa das 'forças da paz' sem que ninguém consiga perceber o que é isso das forças da paz. Uma conversa de pombinha, ainda por cima titubeante. 

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Uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Ânimo. Paz.

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Coincidências do caraças

 

Por estas bandas, a maior concentração de aniversários verifica-se nos meses em que o calor já se faz sentir. Mas, apesar disso, ainda há os que vieram ao mundo uns meses antes. Por exemplo, parecendo que não, ainda há uns aquários e como, nestas coisas, parece que gostam de se juntar, já vamos no segundo.

Por isso, cheguei a casa mais tarde. Acontece que, dado que a avaria comunicada à hora de almoço ainda não está resolvida, estou sem televisão por via normal e a net que tenho no computador está a ser fornecida pelo telemóvel. 

Ainda chegámos a tempo de tentar ver o Luís Paixão Martins mas parece que não houve. Espero que não o tenham cancelado pois, de facto, é daquelas vozes que sabe bem ouvir. Não tem medo, não tem papas na língua e é inteligente, et pour cause irónico. Se o retiraram das televisões fizeram mal.

Enfim, espero que tenha sido ele a ter tido algum resfriado ou insignificância do género e que não tenha querido estar a falar e a espirrar ou a assoar-se em directo e que, amanhã ou para a semana, esteja de volta.

Hoje também cheguei à conclusão que uma série de démarches que, na minha santa ingenuidade, convencida eu que o mundo já estava a virar digital, pensava que poderia resolver por mail enviando todos os documentos, e, ainda por cima, enviando-os de um mail certificado junto dessas instituições, afinal têm que ser resolvidas presencialmente, com papéis na mão. Um atraso de vida. Portanto, amanhã vou ter que andar a visitar capelinhas, à moda antiga.

Durante a tarde estive a dar uma volta, ainda que superficial, muito pela rama, no saco com a correspondência de que falei ontem. Há ali muito mais cartas e postais do que poderia supor.

Descobri o nome completo daquele tal meu amigo do Porto. Estive a reler várias das suas cartas. Era um aluno excelentíssimo, tinha tido 20's e 19's e, naquela altura, estava indeciso quanto à profissão a seguir. Pois bem, o google leva-nos quase até casa das pessoas. É um ilustre catedrático na Universidade do Porto, membro de inúmeros júris de doutoramento a nível internacional, publicou dezenas de artigos. Vi as fotografias dele agora. Não mudou muito. Era alto, magro e bonito e assim continua, só que agora em versão platinada, mais interessante que antes. Se quisesse poderia contactá-lo pois lá está o endereço de mail dele.

Encontrei também várias cartas do Brian, um inglês de que, estranhamente, também já não me lembrava. De Wales. Era alto, na altura parecia-me desengonçado, cabelo liso pelo ombro. Ao reler as cartas fiquei admirada: como pude varrer da memória o que, lendo agora, me parece bastante interessante? Falava do ambiente em Inglaterra, dos problemas com o IRA, do separatismo. Contudo, à medida que ia relendo, a memória parece que ia acordando. Naquela altura, lembro-me agora, era excitante eu corresponder-me com uma pessoa que me falava de temas que me eram, então, algo distantes. Tinha um cosmopolitismo que eu sentia como contagiante. Eu devia colocar-lhe muitas questões pois ele escrevia que estava a responder às minhas questões e que ficava muito contente quando, ao receber o envelope, percebia que lá dentro vinha uma carta com muitas folhas. As dele também eram grandes. Pesquisei. Com o nome dele, e tinha o nome completo, em Wales, encontrei um que foi desportista em novo e também um cirurgião. Falecido há dois anos. Não consigo ter a certeza que era o mesmo.

Encontrei também várias cartas de um amigo de liceu que viria a ser colega de faculdade do meu marido e com quem eu me dava muito bem. Digamos que se chamava Valeiro. Tinha muitos irmãos e queixava-se do barulho que havia sempre em casa. Era uma pessoa de uma franqueza extraordinária. Era diferente. Tinha interesses e gostos atípicos nos rapazes daquela idade, naquela altura. Gostava de música clássica e inventava aparelhos que eu achava fantásticos. Era um amigo com quem eu treinava a telepatia. Ele achava que eu tinha dons de divinação pouco usuais e punha-me à prova e eu gostava que ele o fizesse. 

O ano passado escrevi uma história na qual incluí diversos acontecimentos invulgares e, estranhamente, verídicos, acontecidos comigo numa dada altura da minha vida. Uma vez encontrámo-nos e ele, do nada, perguntou-me se não estavam a acontecer-me coisas inexplicáveis. Fiquei muito admirada com a pergunta e contei-lhe. Ele disse-me que não se admirava e aconselhou-me a ter cuidado. Contei isso na história. E, tal como sempre me acontece quando escrevo, às tantas, no decurso da história, as coisas ganham uma dinâmica que é independente da minha vontade. E foi assim que, na história, eu descobria, consternada, que esse meu amigo, que coloquei a viver no Alentejo, tinha morrido. Fiquei muito incomodada por estar a 'matar' um personagem que era, na verdade, uma pessoa real. Tive vontade de apagar aquelas páginas mas não consegui pois esse era o rumo que a história tinha seguido. Convenci-me que não era ele, era um personagem fictício e, embora com algum esforço, prossegui.

Entretanto, tentei ver se sabia alguma coisa dele. Googlei. Não encontrei. Procurei pelo nome de que me lembrava, digamos que João Valeiro. Nada. Tentei lembrar-me de outros apelidos. Não me lembrei.

Por essa altura, estava eu já mesmo quase no fim da história, uma amiga ligou-me. Falámos de um outro. Perguntei por esse tal outro. Digamos que Antunes. Essa minha amiga perguntou: "Qual Antunes? É que havia dois, não sei se te lembras, o Vaz Antunes e o Antunes Valeiro". E eu respondi: "Ah, pois é, tens razão. Mas referia-me ao Vaz Antunes. Sempre tratei o Valeiro por João Valeiro, nem me lembrava que também era Antunes. Que é feito dele também?" Ela não sabia do João, só que estava pelo Alentejo. Sabia, sim, do primeiro, do Vaz.

Nesse dia contei ao meu marido a graça da coincidência. "Vê lá tu que estou a escrever uma história em que entra o João Valeiro e, sem mais nem ontem, hoje liga-me a Sofia e às tantas veio à baila o nome dele, parece que está a viver no Alentejo". O meu marido lembrava-se bem dele, ficámos a conversar sobre as suas excentricidades. Eu não achava que fossem excentricidades, achava que eram apenas coisas surpreendentes de uma pessoa surpreendente.

Dias depois, estando eu a conversar com outros amigos, porque andava com aquela atravessada, perguntei se sabiam do João Valeiro. Fiquei gelada quando me disseram que tinha morrido recentemente. Nem perguntei como foi não fosse dar-se o caso de ser como eu escrevi na minha história. 

Quando contei ao meu marido, ficou incomodado. Tínhamos estado a recordá-lo, era 'rapaz' da nossa idade e, afinal, já tinha morrido.

Não tive coragem de lhe contar que, na minha história, ele também tinha morrido, deixando a personagem feminina, que eu escrevi na primeira pessoa, eu, deveras abalada.

Tive vontade de não pegar mais na porcaria da história, tão incomodada fiquei com a diabólica coincidência. Mas depois forcei-me a ser racional. Tinha sido uma coincidência (uma coincidência do caraças mas uma coincidência). Por isso, acabei a história.

Como sempre faço, no fim, peço ao meu marido para ler. Mando-lhe por mail na noite em que acabo.

No dia seguinte, o meu marido estava mal disposto. Nem queria falar. 

Quando lhe perguntei o que era, quis saber: 'Quando escreveste que o personagem do João Valeiro tinha morrido já sabias que ele tinha morrido de facto?'

'Não. Escrevi isso a meio da história. E só soube que isso aconteceu de verdade para aí há uns três ou quatro dias, já a história estava praticamente no fim. Porquê?'

'Foi o que pensei, que não tinhas tido tempo de escrever tudo em tão pouco tempo'

Quis saber o que tinha achado. 

Incomodado disse-me que tinha parado ali pois tinha percebido que eu tinha adivinhado que ele tinha morrido.

Não consegui que ele acabasse de ler a história. Acho que teve receio de descobrir mais coisas estranhas.

E hoje, ao ler aquelas cartas dele, uma pessoa tão especial, tão diferente, também me fez muita impressão. Como é possível que já não esteja vivo? E como é possível que eu tivesse adivinhado que ele tinha morrido? É que nem consegui alterar a história pois parece que tinha a certeza de que ele já não estava vivo.

Tempos depois, num almoço de verão, um outro amigo perguntou-me: 'Já sabes que o João Valeiro morreu? Foi recentemente.... Uma coisa terrível... um choque para toda a gente...'. Disse que sim mas atalhei a conversa com receio que ele fosse contar-me a causa e que fosse tal e qual como descrevi. 

Numa das cartas ele falava-me num equipamento que estava a testar, que descodificava o código de morse e enviava sinais já nem sei para onde. Estava sempre a ter ideias. E, na história que inventei, muito da trama tem a ver com uma cena engendrada por ele. Na volta, de lá, onde está agora, envia e descodifica sinais que eu, que sempre captei os seus pensamentos, consigo 'apanhar'.

Enfim. Coisas que não consigo bem explicar. Nem interessa. Mais vale ficar assim.

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Desejo-vos um dia bom

Saúde. Serenidade. Paz.

terça-feira, janeiro 16, 2024

Love myself

 

Levei na cabeça por ter escrito o que escrevi ontem e não só por isso mas porque eu própria penso que não posso estar sempre a deixar-me afogar em preocupações e tristezas, decidi que hoje ia ser diferente.

Mas a minha cabeça deve mesmo andar perturbada pois por mais que procure parece que dentro dela pouco encontro. Quero arranjar outro assunto mas sinto-me a patinar em seco.

Ao longo do dia vou espreitando as brincadeiras e as piadas que os meus amigos partilham no grupo. Há algum tempo que não participo. Mas, como eu, muitos dos que antes eram muito activos e tinham acesas discussões ou palpitantes conversas parecem ter-se acalmado ou passado para os bastidores. Mas tenho uma certa pena por não participar no próximo encontro, especialmente porque uma grande amiga que não participou no anterior desta vez vai estar lá e gostaria de pôr a conversa com ela em dia. Mas, pronto, não vale a pena lamentar. Não vou porque não quero ir. Sei que não ia ser boa companhia. Irei ao seguinte. 

Curiosamente, parece que agora das três pessoas com quem tenho mais afinidade, com duas delas antes não tinha nenhuma, uma porque nem dava pela sua existência e outro porque, vá lá saber porquê, embirrava à brava com ele. 

Mas agora gostava de estar com aquela que era sólida amiga. O marido correu mundo, dada a sua actividade. Ela, porque a sua profissão a obrigava a estar (é médica), ficava em casa enquanto ele andava por fora. Construíram a sua casa numa zona de campo, embora perto da cidade. E adoram a casa e o lugar. Muito ligado à cultura, com prémios e medalhas de mérito, dir-se-ia que ele vive num mundo que pouco tem a ver com o mundo dela (e vice-versa). E, no entanto, desde que os conheço, são parceiros de vida. Ao telefone, achei graça quando ela me disse: 'sempre tive a vida que quis, sou feliz'. E não tem telemóvel. Se calhar também não vê televisão. A minha mãe via-a sempre que ia ao centro de saúde e falava-lhe de mim como a mim me falava dela. Dizia-me que ela tinha um ar um pouco alternativo. Acredito, nunca foi de modas, nunca quis saber das opiniões alheias. 

Não sei como me veem a mim. Devo ser a única que trabalhou toda a vida em contexto empresarial e isso, do que vejo, desperta alguma curiosidade. As minhas amigas são maioritariamente professoras ou médicas. Dos homens, destacam-se também os médicos, muitos, alguns engenheiros, poucos advogados. Aquele que curiosamente parece ter uma vida mais excitante é aquele que, quando éramos miúdos, era dos mais neutros. Não só tem uma profissão incomum, direi extraordinária e com mérito, que o leva a vários países como consegue conciliá-la com os seus hobbies que são também inacreditáveis. Manda-nos vídeos fantásticos dos lugares mais recônditos do mundo. E talvez seja quem também tem a casa mais extraordinária, uma casa com muita mão dele.

Desejo ter mais disponibilidade mental para voltar mais ao convívio com eles. 

E há pouco a minha filha enviou-me uma imagem do comboio de luxo que vai percorrer a Itália, dizendo que temos que nos organizar para irmos. E eu fiquei com vontade, sim. 

E hoje, ao retirar as etiquetas ao que comprei, fiquei com vontade que venha o bom tempo para poder largar os casacos, para vestir blusas leves e coloridas e enfeitar-me com brincos e colares espaventosos, bem coloridos.

E um dia destes vou pegar numa tela e vou pôr-me a pintar a ver o que sai. Estou curiosa.

E a ver se o tempo melhora. Apetece-me passear, ir ver exposições, laurear. Mas agora, para além de tudo o que se passa e que me deixa apeada e, reconheço, completamente 'mongas', está sempre cinzento, tudo húmido, uma coisa meio deprimente. A chuva faz muita falta mas era bom que houvesse pelo menos um dia de sol. Sinto falta do sol e da alegria que ele traz.

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Como estive para aqui a escrever mas na verdade sem muito para dizer, deixem que partilhe convosco mais um daqueles vídeos que gosto de ver, que me põe bem disposta. Tem legendagem em português.

Love myself

In the quiet corners of our minds, there's a voice that tends to undermine and sow doubt - the inner critic. The negative one. The one who preys on our insecurities. Confirms our self doubts and attacks our confidence.  It might sound like, 'you should', 'why didn’t you?', or 'what’s wrong with you?'

Recognising this internal dialogue is important because it so often shapes our actions and decisions. When we're too hard on ourselves, it messes with our confidence and blocks our creativity. 

It's essential to name it, acknowledge its influence, and most importantly, not let it take the reins of our lives. Instead of allowing self-doubt to dictate our choices, we should strive to foster self-acceptance. By doing so, we empower ourselves to break free from the grip of the inner critic and embrace our authenticity.  

Embracing our imperfections and celebrating our unique qualities empowers us to step into the fullness of who we are meant to be. And it brings with it a profound sense of inner peace, enabling us to navigate life's challenges with confidence and grace.

Filmed in Hermanus, South Africa.

Featuring Catherine Brennon

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Um dia bom

Saúde. Alegria. Paz.

domingo, agosto 13, 2023

Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa

 

Hoje o dia foi especial. Aquilo de que não se deve voltar onde já se foi feliz, afinal, não é forçosamente bem assim.

Não sou saudosista e, em geral, página virada é página esquecida. Mas, lá está, também há aquilo do nunca digas nunca

Assim, hoje fui visitar uma pessoa que, em tempos, foi queridíssima amiga. A vida levou-nos por caminhos distintos e, quando andamos muito atarefados a criar filhos, a trabalhar, a construir uma vida, pouco tempo sobra para o que vai ficando para trás.

Mas nunca me esqueci dela. Enquanto eu sempre fui de ter muitas ideias, muita vontade de fazer coisas, amores intensos, ela sempre foi a serenidade em pessoa, a companhia perfeita e justa, a que ouvia e aconselhava. Nunca uma palavra de julgamento ou censura, nunca um gesto de deslealdade. Nunca. Sempre a presença amiga, autêntica, amável.

Fui, em tempos, muitas vezes a casa dela, na cidade, e passei muitas tardes, belíssimas tardes, na grande casa que tinham no campo, no sopé da serra.

No lugar dessa grande casa há agora duas belas casas, uma dela, outra de uma das irmãs. O que antes era campo, é agora um dos limites da cidade. A casa dela está agora envolta noutras casas. Está na cidade mas com vista para a serra, com a acalmia do campo. 

Abraçámo-nos com emoção, um abraço muito amigo. E conversámos como se a conversa nunca tivesse sido interrompida. O seu olhar doce é o mesmo. A compreensão com que antes me ouvia é a mesma. A afabilidade é a mesma. Com ela continuo a sentir-me aceite, acarinhada, apoiada como antes me sentia.

E a casa, que eu não conhecia, é uma casa acolhedora, ampla, de uma beleza delicada, generosa, repleta de memórias, de afectos. Vê-se que é a casa de quem costuma acolher amigos, uma casa que nos abraça. 

Falámos das nossas famílias, falámos de nós, falámos do nosso reencontro.

Estava com medo que o urso cabeludo se atirasse a ela mas, estranhamente, foi como se a reconhecesse. Fez-lhe, imediatamente, uma festa, pôs-se em duas patas como se lhe quisesse agradar, como se quisesse abraçá-la. Ficámos admirados com aquela reacção.

E isto foi de tarde. Agora à noite estive à conversa com ela e com outros queridíssimos amigos. 

A vida sabe tão melhor quando é vivida em torno de afectos, de afinidades, de compreensão perante as diferenças, de admiração perante o que, nos outros, é bom.

Sempre tive vontade de, quando me reformasse, ter uma vida nova, ter um recomeço numa outra direcção. E é o que está a acontecer. E sinto-me muito agradecida, muito feliz. 

Amor Como Em Casa
| Poema de Manuel António Pina com narração de Mundo Dos Poemas

Desejo-vos um belo dia de domingo

Saúde. Afecto. Paz.

segunda-feira, julho 17, 2023

Coisas da vida

 

Jane Birkin que, com a sua voz sussurrada e os seus suspiros embalou vários slows na minha adolescência, morreu. 

É o caminho inexorável da vida.

Estava doente. Foi encontrada morta em casa.

Mas a sua voz, os duetos com o bad boy Serge Gainsbourg, sobreviver-lhe-ão.

No grupo dos meus antigos colegas de liceu está a fotografia de grande parte de nós, o que éramos na altura e o que somos agora, quase um pouco como a fotografia de Jane, antes e depois. A muitos eu não reconheceria se não visse a fotografia da altura e, muitos, só mesmo com o nome, pois a minha memória tinha apagado alguns rostos.

Quando vejo estas fotografias emociono-me sempre. Fazem-me lembrar aqueles filmes sobre pessoas de verdade em que, no fim, aparecem as fotografias reais das pessoas, dizendo que idade têm agora e o que fazem ou onde vivem.

Fez-me também muita impressão saber que alguns dessa altura já morreram. Fico sempre um bocado sem acção quando o sei. Tenho vontade de saber de que foi que morreram, como se isso adiantasse alguma coisa. Contenho-me, não pergunto. Mas fico com essa dúvida a roer-me, como se não pudesse aceitar o facto sem conhecer as razões da morte.

Uma das que morreu foi uma que, creio, namorou o meu marido. Ele nunca se confessou, não sei porquê. Aliás, recusa-se, ainda hoje, a falar dos namoros ou affairs que teve. Desta sei pois ela contava-me, falava-me dele. Lembro-me de estar a falar comigo e depois despedir-se à pressa porque tinha combinado ir com ele à Feira do Livro. Lembro-me de a ver com um saco com compras, coisas de comida, porque ia fazer jantar, ele ia jantar lá a casa. Vivia sozinha num apartamento. Lembro-me do que ela, enlevada, me dizia dele, que era assim, assado e cozido. E eu, dizendo-me ela que ele era um gato, uma brasa, um borracho e mais não sei o quê, logo conclui que devia ser aquele que eu achava o máximo. E era mesmo.

Não me incomodava nada saber que ele tinha um caso com ela até porque eu também namorava com outro. Tinha, com muita clareza, a certeza de que o nosso tempo, o meu e o dele, haveria de chegar. E chegou.

Quando comecei a namorar com ele, falei-lhe nela. Mostrei-me admirada. Via-o sempre rodeado de raparigas, lembro-me de o ver de braço ao peito e umas sentadas ao colo dele e outras a escreverem-lhe dedicatórias no gesso, e, no entanto, pelos vistos, tinha namorado com aquela minha colega de liceu que eu achava muito simpática mas pouco bonita e que, ainda por cima, tinha as mãos sempre frias. Ele não ligou nada a isso, limitou-se a dizer que ela tinha um corpo fantástico. Nunca eu lhe tinha reparado no corpo. 

Fez-me muita impressão quando soube que morreu. Lembrei-me logo das mãos frias.

No outro dia, vi uma fotografia em que estava um grupo dos mais boémios. Eram giraços, cabelos meio compridos, ar de bon vivants, volta e meia faltavam às aulas, fumavam, iam jogar snooker, eram uns bad boys. Agora são uns homens grisalhos, outros sem cabelo. Mantêm-se bonitos mas eu, se os visse, jamais pensaria que eram eles. E fiquei a saber que um que era dos mais terríveis, um que, numa das fotografias, aparece com um cigarro ao canto da boca, sorriso malicioso, sentado com as pernas completamente abertas, uma rosa numa das mãos, já morreu. Fiquei bloqueada. Parece que não pode ser. Não bate certo.

Agora soube que um desse grupo, um dos mal comportados, para mim o pior dos piores, um por quem a minha melhor amiga da altura incompreensivelmente se apaixonou perdidamente e com quem se casou, num casamento que foi sol de pouca dura, também morreu. Fiquei a lembrar-me dele todo gingão, todo gozão, todo convencido e mal comportado. Tinha a vida toda nas suas mãos. E afinal já morreu.

Outro, já aqui o referi, lembrei-me dele numa história que escrevi, tornei-o personagem, e sem saber porquê, escrevi que ele tinha morrido. E, afinal, morreu mesmo. Fiquei muito incomodada e o meu marido também.

Claro que a larga maioria está viva, bolas, mas, na minha cabeça, seria natural que, sendo meus colegas, gente da minha idade, ainda estivessem todos vivos.

Enfim. É o que é. É a vida. Uns morrem, outros envelhecem.

Mas o curioso é que a 'malta' mantém o espírito folgazão e até adolescente de então.

Quando entrei para a faculdade senti muito a falta dos meus amigos divertidos, descontraídos, tudo gente que gostava de passear, ir à praia, ir ao cinema, dançar. Na faculdade era tudo gente ensimesmada. Custou até que conseguisse descortinar outros que gostassem de alinhar numa vida agradável. Curiosamente, uma dessas que me salvou daquele cinzentismo tinha sido minha colega de liceu, embora de outra turma. Mas trazia aquela leveza e gosto pelo bom humor que me são fundamentais. E continua assim, tal e qual, brincalhona.

Mas, pronto, já chega de conversa. Hoje estou completamente pedrada de sono e, pelos vistos, isso está a dar-me para o sentimento.

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From the archives: The iconic Jane Birkin


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Desejo-vos uma boa semana
Saúde. Humildade e disponibilidade para desfrutar cada pequeno instante desta nossa vida. Paz.

quinta-feira, novembro 10, 2022

Gal.
Profana, sagrada. Eterna.

 



Já aqui falei várias vezes daquele período feliz da minha vida em que convivíamos quase semanalmente com amigos do tempo da faculdade. Éramos três casais a que se juntaram dois outros. Éramos novinhos e os filhos iam chegando, e nós, em grupo, acolhendo uns e outros, na maior alegria e brincadeira.

Mesmo quando a mais complicada do grupo não conseguia engravidar ou quando começou a desatinar com o marido, nós, colectivamente, ajudámo-los a ir superando as dificuldades (até ao ponto em que, vários anos mais tarde e muitas crises disparatadas depois, acabaram mesmo por romper). Ou quando uma outra não conseguia, de maneira nenhuma, engravidar e optaram pela adoção, foi entre todos que acolhemos a criança tal como foi entre todos que os ajudámos a superar os problemas que vieram a enfrentar .

Juntávamo-nos ora em casa de um ou de outro, conversávamos, ríamos, as crianças brincavam. Outras vezes passeámos e conhecemos o país, outras vezes fazíamos picnics. 

Nem sempre conseguíamos encontrar-nos todos ao mesmo tempo pois a conjugação de disponibilidades obrigava a encontros em geometria variável mas havia um fio condutor que nos unia. E os miúdos iam crescendo, alguns iam mudando de empregos, as famílias iam evoluindo. 

Até que começaram as escolas mais a sério e uns tinham testes, outros tinham festas de anos, depois vieram os namoricos, e era cada vez mais difícil mantermos o hábito de nos encontrarmos ao fim de semana. 

Mas, durante anos, éramos assíduos e guardo a melhor das melhores recordações desses anos abençoados. 

Em especial um deles era divertidíssimo e ainda hoje nos rimos com as brincadeiras dele. 
(Por exemplo, quando estava na cozinha a preparar o almoço e eu na sala e ele, de lá, gritava pelo meu nome, perguntando a seguir: "Queres na brasa?'. E eu, distraída, pensando que se referia aos bifes, caindo sempre. 'Pode ser'. E ele, malicioso: 'Não preferes devagarinho...?')
Daquelas pessoas que não envelhecem, mesmo fisicamente. Era também ele que mais novidades musicais descobria e nos dava a conhecer quando nos encontrávamos em sua casa. 

Por essas alturas orgulhávamo-nos das 'aparelhagens': amplificadores, grandes colunas. E o som era puxado, grandes batidas, a música soava alto e bom som, e toda a gente cantava. E alguns dançavam. 

Os miúdos estavam na deles, enfiavam-se nos quartos a brincar uns com os outros e não ligavam patavina à farra que os pais faziam. Nunca me lembrei de perguntar aos meus se têm ideia da música que sempre rolava nesses dias mas tenho para mim que lhes passou ao lado.

Já aqui falei da Rita Lee e o que dançávamos e saltávamos, creio que já falei da Sade (para uma onda mais cool e romântica) ou do Simon and Garfunkel para uma onda (nem sei como dizer) talvez mais urbana. Ou o Lou Reed ou o Bruce Springsteen. Tantos. 

E havia, sonora, luminosa, festiva, intensa, a Gal. 

Cantávamos a plenos pulmões com ela, apaixonados pela vida, apaixonados pela alegria de estarmos juntos, apaixonados pela festa que sempre fazíamos.

E, como geralmente nos encontrávamos ao domingo (o dia em que não havia natação, ginástica, karaté ou o que quer que fosse que sempre algum dos miúdos tinha ao sábado), o Dia de Domingo da Gal com o Tim Maia era quase um hino. Por isso, ainda agora, quando aqui vos desejo um bom domingo, não sei se alguma vez repararam mas costumo escrever um bom 'dia de domingo'. 

Quando hoje soube que a Gal tinha morrido senti que se tinha aberto um vazio nas minhas memórias. É certo que os discos, os cds e os vídeos superam as ausências mas saber que ela afinal era mortal e que toda aquela energia e sensualidade e vida eram, afinal, perecíveis deixou-me francamente abalada. Foi mesmo uma bandeira dos meus tempos de alegre juventude que foi descida. Com tristeza.


Eu preciso te falar,
Te encontrar de qualquer jeito
Pra sentar e conversar,
Depois andar de encontro ao vento.
Eu preciso respirar
O mesmo ar que te rodeia,
E na pele quero ter
O mesmo sol que te bronzeia,
Eu preciso te tocar
E outra vez te ver sorrindo,
E voltar num sonho lindo

Eu preciso descobrir
A emoção de estar contigo,
Ver o sol amanhecer,
E ver a vida acontecer
Como um dia de domingo.

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Desejo-vos um bom dia
Saúde. Boas memórias. Paz.

domingo, outubro 03, 2021

Um homem que partiu cedo demais

 


Ontem à noite pensei numa pessoa que me foi muito querida. Mais do que um colega com quem me dei muito bem, foi não apenas um amigo mas, sobretudo, uma pessoa que deixou as mais gratas memórias.

Já aqui falei dele algumas vezes, por vezes em episódios avulsos. Era daquelas pessoas de quem sempre se podiam contar muitas peripécias. 

No outro dia. falei de quando comecei a trabalhar em ambiente empresarial: uma grande, grande empresa, com uma longa, longa história, em que havia muita gente ainda a trabalhar de forma que a mim me parecia arcaica. Mas havia muita gente nova. Viviam-se tempos expansionistas, havia projectos com fartura e um enorme bando de jovens licenciados criava uma permanente animação um pouco por todo o lado.

Várias dessas pessoas acompanharam-me profissionalmente durante anos. Um deles viria a tornar-se um dos meus melhores amigos. Outro quase também. Outros apenas bons amigos (o que, convenhamos, não é pouco). Naquela empresa eram quase só homens e, com formação superior, as mulheres contavam-se pelos dedos da mão. Porque as coisas estavam organizadas dessa forma, eu quase apenas tinha contacto com os ditos licenciados. Até o refeitório tinha um horário e um local que eram destinados aos 'quadros'. Mas, elitismos à parte, era também uma questão geracional. As idades eram relativamente afins, as vivências também.

De todos aqueles jovens turcos, um destacava-se naturalmente. Não seria o mais 'apessoado' mas era um homem interessante. Mas era sobretudo um misto de muita coisa em generosas doses: hiperactivo, hiperdivertido, hiperinteligente. Onde ele estava, não havia lugar à monotonia ou à indiferença.

As mulheres caiam de amores por ele. A secretária do director era das mais apaixonadas. Mas havia outras. Tinham crises de ciúmes, ameaçavam denunciar-se umas às outras. Ele geria isso com boa disposição. Eram todas casadas e não era com ele. Tal como ele era casado e não era com nenhuma delas. Mas, se bem me lembro, tenho ideia que ninguém os censurava. 

Mais tarde, quando já éramos directores, uma equipa de, salvo erro, umas catorze pessoas, todos reconhecíamos que era ele o mais brilhante. Não era apenas a forma como delineava estratégias e as punha em prática mas também a forma como contribuía com boas ideias para as outras áreas, como trabalhava bem em equipa, como era sempre fair, como tudo o que dizia e fazia transpirava energia e joie de vivre.

Foi com ele que aconteceu aquilo de ter sido apanhado, fora de horas, no seu gabinete, a ter relações com uma colega de outro serviço. Toda a gente comentava e ele piscava o olho e ria. Nada parecia afectá-lo. Estavam em cima da mesa que, mais tarde, viria a ser a minha mesa de reuniões e da qual toda a gente dizia: 'se esta mesa falasse...'.  E ele, se o ouvia, ria-se. Era atrevido, descarado, bem disposto.

Numa altura, por razões que agora não vêm ao caso, a empresa quis aumentar brutalmente as vendas. 

A ordem era 'venda-se', 'alcancem-se as melhores facturações de sempre', 'esmague-se a concorrência'. Disseram-nos explicitamente: 'overbooking, se for caso disso'.  As nossas reuniões de trabalho eram de loucos. Ele vendia como se não houvesse amanhã. Na logística, nos aprovisionamentos, na produção, em todas as áreas, era a loucura. Dar vazão àquela avalancha de pedidos de compra por parte dos clientes era uma montanha russa em que uns dias nos ríamos e noutros nos pegávamos uns com os outros. Ele avisava: querem vendas, eu arranjo-as. Mas atenção que isso tem custos. Mil vezes, em público, avisou a administração. Mas alguém queria lá saber disso? Queriam era números.

Até que mudaram os ventos. O objectivo do record de vendas tinha sido atingido. 

Quando as canas por apanhar começaram a aparecer, quem tinha pedido, a qualquer custo, um valor extraordinário de vendas, saltou fora. Havia muitos incobráveis. Ele tinha vendido sem acautelar se os clientes tinham capacidade financeira para pagar a tempo e horas. Por muito injusto que fosse, quem estava no degrau acima, ao querer desresponsabilizar-se, fez a jogada clássica: começou por lhe fazer a vida negra para, de seguida, convidá-lo a sair da empresa.

Com a alegria de sempre, ao ter percebido o descaminho que aquilo ia levar, deixou de descartar os convites que frequentemente recebia. E, quando o outro o convocou para o convidar a sair da empresa, ele surpreendeu-o, apresentando a carta de demissão.

A notícia caiu como uma bomba em toda a empresa. Toda a gente gostava dele. O administrador iniciou, então, uma sistemática e furiosa campanha para o denegrir. Lembro-me muito bem disso. Como a campanha não lhe estava a correr muito bem, desencadeou uma caça às bruxas. Se sabia que alguém falava com o antes bestial e, depois, besta ou o defendia, era logo objecto de repreensão e velada ameaça.

Até ao dia em que descobriu que a sua secretária estava a organizar um jantar de despedida. Aí a sua campanha redobrou. Sondava-nos tentando saber se alguém se tinha inscrito, se já se sabia quem ia, dizia que quem estivesse a favor do outro estava contra ele. Fui pessoalmente alvo de toda a espécie de pressões. 

Ninguém se descoseu. 

Junto ao rio, num espaço gigante, juntaram-se centenas de pessoas. De todo o lado, vieram os seus colegas e ex-colegas, directos e indirectos. Foi um jantar muito animado e, ao mesmo tempo, muito emotivo. Penso que ainda tínhamos a esperança que o administrador voltasse atrás, que ele voltasse atrás. Havia surpresas e presentes para ele. Quem falava estava comovido. Mas ele, falando para aquele espaço imenso pejado de gente, falou com a sua alegria habitual. Desdramatizou. Era apenas uma nova etapa da sua vida.

E partiu. Ninguém acreditava naquilo. Como poderia a empresa tê-lo deixado ir embora?

Mas nas empresas a injustiça é frequente. Tão frequente que já ninguém se indigna muito.

Na empresa para a qual foi, toda a gente o passou a adorar. Era impossível não. Era daquelas pessoas que desenvolvia natural empatia para com os outros e que rapidamente apresentava resultados. E o seu sorriso, a sua inesgotável energia, a sua frontalidade e a sua inteligência eram irresistíveis.

Até que, pouco depois, veio a terrível notícia: tinha cancro. Foi um murro no nosso estômago. Não era possível. Não queríamos acreditar. Aquela energia, aquele poço de saúde...

Mas parecia que não era dos mais graves, continuava a trabalhar, muita gente lá nem tinha ainda dado por nada. Ia fazer os tratamentos e de lá seguia para o trabalho. 

Descansámos. Haveria de se pôr bom.

Algum tempo depois, chegaram novas notícias: parece que afinal não estava nada bem. Tinha alastrado.

Por essa altura, um dia, ao fim do dia, quase lusco-fusco, cruzámo-nos: ele descia num sentido, eu subia noutro. Ouvi apitar e alguém chamar o meu nome. Era ele. Disse que estava tudo a andar bem, sorriu, perguntou por mim, perguntou pelos meus filhos. Depois as filas andaram. Dissemo-nos adeus, até um dia destes. Apesar da fraca luz do fim do dia, pareceu-me bem encarado. Comentei isso no dia seguinte. Vinha do trabalho, de janela aberta, certamente a ouvir música, sorridente, igual ao que sempre foi. Não lhe notei sinais de dor ou mal estar, de preocupação, de tristeza, de que a sua vida estivesse por um fio. Nada. Pelo contrário, parecia que estava para dar e durar.

Dias depois chegou a notícia que ninguém queria ouvir: tinha morrido. A nossa consternação e pesar foram imensos. Não conseguíamos acreditar.

A capela mortuária estava cheia e o largo passeio também cheio. Colegas das duas empresas, todas as suas namoradas, todos os seus amigos. Ninguém conseguia aceitar ou perceber a injustiça que tinha acontecido. Da capela chegava o choro lancinante do pai. A mulher estava inconsolável. O filho, jovem adulto, era fisicamente igual a ele. Ambos, ele e a mãe, amparavam o senhor que, vergado pela dor, chorava: 'não devia ser permitido um filho ir antes do pai...'.

Isto já foi há algum tempo. 

Mas tento não me esquecer dele. A vida vai passando por nós, muitas pessoas vão ficando para trás, desaparecendo. Mas algumas foram tão especiais que é bom que, quem delas gostou, não as esqueça. Não sei bem porquê porque, na verdade, é tudo tão efémero, tão volátil, que não sei se a gente se lembrar faz alguma diferença -- mas sinto que é assim que deve ser.


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Pinturas de Zhao Mengfu (1254–1322) ao som de Take This Waltz por Leonard Cohen

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Desejo-vos um belo dia de domingo