Devo dizer que na outra noite dormi muito mal. Acordei a meio da noite e só voltei a adormecer quando amanhecia. E logo a seguir tocou-me o telemóvel. A inclemência começou cedo. E o dia foi em contínuo, sempre a bombar. Só comecei a fazer o jantar depois das nove da noite. Acabámos de jantar por volta das dez e meia.
Como é bom de ver, mal aqui me apanhei sentada, logo me deu o sono. Estava com o computador nas pernas, tentando informar-me sobre os sucedidos do dia. Ouvi o meu marido a avisar-me que o computador ainda ia parar ao chão. Mas não consegui mexer-me. Segundos depois, um barulho. Tinha mesmo ido parar ao chão. Apanhei-o, pousei-o na mesinha aqui ao meu lado e adormeci a sério.
Acordei agora, e passa da meia-noite, enquanto na SIC N o Nuno Rogeiro e o José Milhazes comentam os irreparáveis e imperdoáveis crimes de guerra na Ucrânia. Tudo demasiado tenebroso. O que ali se passa é acima de criminoso.
Mas, a esta hora, sinto necessidade de desligar. Melhor: de deixar o oxigénio e a música entrarem na minha mente. Tenho sorte: sinto necessidade disso e posso satisfazê-la. Não vivo numa cave, num abrigo, sob escombros. Vivo com conforto e posso fazer o que me apetece. Não passam mísseis sobre mim, não tocam as sirenes, não ouço estrondos.
Apetece-me música. Mas, em situações assim, gosto de fazer ondas. Música, sim, mas em versão hot. Ao passar os olhos pelos jornais, vi um artigo sobre as vestimentas de algumas pianistas clássicas. E fiquei com vontade de ir buscar essas mulheres que ousam e que transportam a sua exuberante carnalidade para as interpretações.
Khatia Buniatishvili, nascida em 1988, é talvez uma das mais conhecidas neste capítulo. Curvilínea e de carnadura generosa, é intensa, sorridente, extremamente sensual. Os seus vestidos são toda uma festa.
Yuja Wang, 35 anos, compete de perto com Khatia. É irreverente, jovial, desfila como uma gata e, por vezes, ao fazê-lo, tão curtas são as saias que a aparição das cuecas (se é que as usa) é daqueles milagres que todos esperam.
Alice Sara Ott, 33 anos, é de um outro género. Nela não é o decote ou a escassez dos vestidos que ajudam a deixar as audiências ao rubro. Nela são sobretudo as expressões. Há nela qualquer coisa de Teresa de Ávila. Parece estar em estado de êxtase e se não foi Nosso Senhor que passou por ali só pode ser que esteja à beira do orgasmo.
Claro que têm mais qualquer coisa em comum: o talento. E a alegria e o prazer de sentir a música a percorrer cada centímetro da sua pele.
Sobre Yuja, uma brincadeira
Mas, para que não se pense que não há em mim gota de recato, permitam, então, que partilhe a Élégie de Massenet. Aqui Alice Sara Ott está contida e não é a única a captar a atenção. As suas companheiras Camille Thomas e Fatma Said dividem com ela o palco e muito bem.
Por vezes um pessoa lê coisas que preferia nunca ter lido. Percebe-se uma estranha forma de crueldade mas, pior ainda, uma crueldade gratuita. É como quando alguém ofende outra pessoa por razão nenhuma, destruindo a dignidade de outra pessoa por nada, só porque sim. Fico triste, sem perceber o que leva a isso. E afasto-me.
O dia hoje tem sido assim. Notícias más, medos.
Alguma coisa má anda à solta pelo mundo, pelo meu país, matando, assustando, espalhando crueldade.
Estou no meu casulo silencioso e tranquilo. A vida lá fora anda assim, cruel, mas aqui sinto-me protegida. O dia esteve branco. Não. Não branco, cinzento. Um casulo húmido, quase atrofiante. Lá fora tudo molhado, triste.
A cameleira está coberta de flores mas grande parte está caída. Não sei se é normal ser assim mesmo ou se é da chuva. Talvez as flores não aguentem o peso da névoa. Apanho as camélias molhadas, umas ainda conservando a cor, outras já amarelecidas. Com as flores caídas cubro a terra de alguns vasos. Ficam bonitos, com qualquer coisa de Frida Kahlo. Amanhã a ver se me lembro de fotografar.
A tangerineira está carregada de pontinhos luminosos mas hoje o chão também estava todo colorido. Apanhei algumas, comi algumas ali mesmo, tão doces.
A vida corre devagar. Ou não. Se calhar corre depressa demais. Não percebo como se esvaem estes dias. Nem estas semanas. Trabalho muito. De manhã penso que vou fazer isto e aquilo e depois há mil coisas que se intrometem e quando dou por ela é hora de almoço e logo, logo, recomeçam telefonemas e logo, logo, é hora de reunião. Não chego a ter tempo para tratar de assuntos pessoais. E tenho dificuldade em perceber o que se passa. Mal tenho tempo de espreitar a rua. O dia embaciado, tudo molhado e triste.
Morrem muitas pessoas, muitas estão em cadeiras, com oxigénio, mal instaladas, sem atenção, sozinhas, assustadas. Uma enfermeira dizia que sim, que já estão a seleccionar quem vão tentar salvar. No prazo de poucas semanas chegámos aqui.
De noite, doentes estavam a ser transferidos de um hospital para outros, parece que não conseguiam assegurar o oxigénio, talvez por avaria nas tubagens. Digo talvez porque, na verdade, não sei a causa. Não nos podemos fiar na comunicação social que empola, dramatiza. Não sabem informar, sabem, sobretudo, teatralizar, deformar. Inclino-me para razões técnicas nas instalações, mas é mera intuição.
Tenho falado neste receio que sinto. As equipas invisíveis que asseguram o funcionamento do país estão a ser afectadas. Muita gente infectada, muita gente em quarentena por terem estado perto de infectados. Quem assegura o bom funcionamento das instalações criticas (infraestruturas de todo o tipo, desde electricidade, água, gás, vapor, comunicações, caminhos de ferro, estradas, edifícios, equipamentos como, por exemplo, os de telecomunicações, redes de frio e oxigénio, avacs, electromedicina, etc, etc, etc) são pessoas iguais a todas as outras com a particularidade de que não podem estar em teletrabalho. Deslocam-se em transportes públicos, almoçam em cantinas, trabalham em equipas. Trabalham por turnos. Se um fica infectado, fica toda a equipa. Se uma equipa fica inoperacional alguma coisa grave pode acontecer algures.
E eu preocupo-me com tudo isto. O meu marido não quer ver mais notícias, não me quer ouvir falar nisto com quem me telefona. Então, para que não proteste, quando recebo uma chamada, vou falar para o lugar mais longe dele que posso.
Claro que também não quero estar afogada em notícias tristes mas não consigo deixar de querer saber o que se passa. Sobretudo, quero ver se percebo na tendência dos números algum amolecimento que me permita alguma esperança.
Nesta coisa do tempo correr depressa demais, só espero é que cheguemos rapidamente a Abril. Gostava de viver o 25 de Abril na rua.
Vi, creio que na 2, uma reportagem em Lisboa. Creio que seriam ingleses que andavam por Lisboa. Estávamos os dois, em silêncio, muito atentos. O meu marido, depois, disse: 'Há quanto tempo não passeamos por ali?'. e eu disse que era verdade, há tanto tempo. E ele disse: 'E sabemos lá quando vamos voltar a andar'. E eu não disse nada. Mas acredito que em Abril talvez possamos voltar a passear por aquelas ruas, no Chiado, descer a rua do Alecrim, ver o rio, ou no Príncipe Real, ir à Travessa, depois ir comer uma pizza ou um risotto ao Avillez, cirandar, fotografar as montras da Hermès.
Talvez não completamente em Abril, talvez seja optimismo a mais, talvez mais lá para Maio, isso sim, quase de certeza. A ver se vem o bom tempo, a ver se a vacinação vai a bom ritmo para o final de Abril chegar e com ele o Maio, maduro Maio, e depois o tempo da praia, do mar.
O pior é o que ainda falta para lá chegar. Mas, para já, pelo menos aquele frio que me enregelava até aos ossos parece ter ido para longe. Não gosto de tempo tão frio. E os dias já estão maiorzinhos e isso é bom. Custa-me muito pensar nas vidas que irão ainda perder-se até que a nuvem negra se afaste, custa-me o sofrimento de tanta gente. Mas, mesmo sem querer, começo a dar por mim a querer olhar para os dias de verão esperando que me tragam os abraços e os beijos dos meus filhos, dos meus netos, a companhia descontraída da minha mãe, que possam trazer-me amigos para virem conhecer a minha casa, que possam trazer de volta a vida sem medo, os grupos ruidosos em volta de uma mesa grande, cheia, das cantorias e alegrias. Sinto tanta falta disso.
Para me distrair, refugio-me no surrealismo, na arte que não pretende mimetizar a realidade, na arte de criar inexistências. O vídeo abaixo fala de uma pessoa, Shona Heath, que tem a cabeça cheia de maravilhosas harmonias inventadas. Criativa e livre, é com Tim Walker que muito gosta de trabalhar. Les beaux esprits... Tantas vezes aqui o tenho tido, o fazedor de encantamentos. Ainda pensei ter fotografias dele aqui hoje. Mas não, preferi a natureza. Tenho saudades de andar entre o meu pequeno bosque in heaven. Por isso apeteceu-me aqui ter das melhores fotografias de natureza do 2020 International Photography Awards que pesquei do Panda Aborrecido.
Mas vejam estas coisas do além. Somos transportados para um outro mundo, um mundo onde não há pandemias nem medos nem crueldades. Há cor, há formas elegantes, imaginadas.
Dizia eu, ontem à noite, depois de ter elaborado um raciocínio em torno das cuecas da menina Louise e antes de apagar, que ia ver se me ocorria alguma coisa esperta para dizer ou, se não fosse bafejada pela sorte, se algum flamingo salvava a coisa.
Acontece que a coisa se resolveu de outra maneira. Fui violentada pelo Morfeu que se aboletou aqui em cima de mim e que não apenas não pediu previamente o meu consentimento como veio ao engano já que não trouxe um único sonho de presente.
Portanto, ontem à noite os flamingos ficaram a fazer equilíbrio nos pernões para nada. Mas, lá está, guardado está o bocado para quem o há-de comer e ei-los aqui, agora, para nos virem brindar com a sua rosada existência.
As fotografias estão assim a modos que etéreas porque foram feitas de longe, quando estava a fazer bird watching no domingo à tarde num lugar lindo demais para explicar.
Foi a minha filha que me falou e que nos convenceu a ir lá passear. Juntámo-nos lá. De longe fiquei espantada com a altura dos meninos. Estou com eles todas as semanas mas, sei lá, talvez seja seja por vê-los ao longe, ao pé da mãe. Tão grandes. Não tardará muito que não estejam da altura dela. E ela é alta. Ou seja, antes disso, vou eu, quando estiver ao pé deles, parecer uma insignificante vovózinha lilliput.
Mas, então, dizia eu, fomos dar a um lugar que parece fora deste mundo. Se eu andasse com veia poética poderia aqui descrever aquela paisagem encantada. Mas não. Ando prosa, prosa, prosa. Mas prosa de primeiro ciclo. Só consigo dizer coisas terrenas, básicas, assim como as vedes.
Onde é que eu ia? Ah, sim. Que os fotografei de longe. Zoom ao máximo e uma aragem desmiolada. Ou seja, algumas desfocadas e outras reduzidas a pormenores no infinito.
Salvaram-se umas quantas -- e vai lá, vai -- que, com vossa licença, aqui partilho convosco.
E isto para dizer uma coisa que se tem vindo a firmar dentro de mim como irrefutável e horrorosa: a gente passa pela vida sem saber nada. Julga que sim mas está bem, abelha. Por exemplo: até há algum tempo pensava que conhecia razoavelmente a terra onde nasci.
Pois bem. Basta ir a um lugar destes para perceber que conheço é uma ova. Nem sonhava. Ia andando e parecia que estava a entrar num outro comprimento de onda. Salinas, sim, já tinha visto não muito longe, zonas de sapal, também mais ou menos. Mas uma coisa destas. Que surpresa. Horizontes largos, ar limpo, uma luz clara, uma forma de natureza inesperada.
Pássaros, flamingos (que não são bem pássaros mas enfim; pelo menos acho que não fazem piu-piu), barcos de verdade onde não se espera.
E o espaço do Moinho de Maré muito bem reabilitado, uma sala de estar que não dá para acreditar, só mesmo vendo, uma esplanada muito acolhedora, uma varanda pequenina e com uma vista ampla. Tudo muito recomendável.
E esculturas de flamingos no passadiço. Uma graça, uma ideia agradável.
Não sei se tudo aquilo tem dedo da presidenta mas não me admiraria que tivesse pois parece ser mulher de acção e bom gosto.
Chega-se à Mourisca e, ao aproximarmo-nos do moinho, vamos vendo aquelas elegantes esculturas da autoria de Pedro Marques e percebemos logo que estamos a chegar à terra deles.
Fiquei a pensar: se calhar, numa casinha aqui talvez eu conseguisse ser escritora. Uma casinha pequenina -- e não era para brincar aos pobrezinhos, era mesmo só para ser fácil de limpar -- com vista para os flamingos, com um pinheiro manso no quintal, com chão de tijoleira e uma mesa azul encostada à janela. E vasinhos com flores na parte de fora do beiral das janelas. Podia fazer caminhadas por entre as pequenas lagoinhas, podia fazer fotografias, quando a maré estivesse cheia podia pôr-me num barquinho a remos e, quem sabe, ir à pesca. Se apanhasse peixinho podia assá-lo num fogareiro. Depois, podia ir beber um café ao moinho. E à tarde poderia ficar sentada numa cadeira de balouço a ouvir os pássaros.
Não sei é quando é que escrevia. Se calhar, tinha que ser a partir das onze da noite. E na volta tudo se haveria de resumir a um post fajuta no blog. Uma sina, um desconsolo.
Bem, escritas à parte, aquele lugar é abençoado. Muitos deuses esvoaçam por ali.
Acho que vou ter que lá voltar para melhor os poder ver e fotografar a voar. Uma mancha alada e rosada.
Também gostava de os ver a marchar. Les flamants roses. Um pequeno exército de vaidosos insolentes que só têm de desculpa o serem tão deliciosamente efeminados. Uns pássaros não vos digo nem vos conto: bichas, bichas, bichas. Parecem ser divertidos e alegres como as bichas malucas costumam ser.
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Lá em cima coloquei o Manon (uma coreografia Kenneth MacMillans dançado pela Tamara Rojo e pelo Carlos Acosta do TheRoyal Ballet) porque foi o que me ocorreu quando me apeteceu ter aqui um bailado interpretado por humanos.
No post abaixo já me deitei a divagar sobre a matemática e a vida. Deu-me para isso nem sei porquê, talvez porque a minha cabeça esteja formatada para pensar seguindo ensinamentos que a matemática me proporcionou e, pensando no que vejo à minha volta ou dentro de mim, me ocorram frequentemente paralelismos que me ajudam a encarar as coisas com outra limpeza.
Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.
Sei muito pouco de algumas coisas e nada de quase tudo. Não há dia que passe que não pense que tenho que me conformar com a ideia de que jamais conseguirei abarcar o conhecimento ou a compreensão de uma pequena parte do que o mundo contém ou do ser que habita dentro de mim. Dito assim pode soar a falsa modéstia ou a esoterismo mas isso será impressão pois não sou nem uma coisa nem outra. Talvez seja uma banalidade, isso sim, porque qualquer pessoa de bom senso sabe bem quanto é insignificante o pouco que sabe.
Gosto muito de escrever. Revejo ideias, estruturo melhor o que sinto, descubro coisas e pessoas, abro caminhos dentro de mim.
Talvez por isso tenha adquirido este hábito de, à noite, aqui me pôr a divagar, a escrever-vos, a conversar convosco. Hoje quero contar-vos uma parte do meu dia.
De manhã caminhei, andei pela beira do rio, fotografei. Estes primeiros calores do ano trazem flores às árvores, gaivotas e veleiros às águas do rio, um azul muito azul ao céu, trazem-me também um prenúncio de vida nova e a expectativa de tempos felizes.
Depois almocei numa esplanada banhada pelo sol. Claro que, na mesa, estávamos protegidos pela sombra mas a proximidade do sol trouxe uma luz festiva e um sabor a verão à comida.
A seguir, e é disso que vos quero falar, fui experimentar uma coisa que há muito andava a despertar a minha curiosidade: meditar. Não sabia de que se tratava, não fazia ideia de como se conseguia, imaginava que seria um esvaziamento mental impossível de atingir. Surgiu esta possibilidade e tive companhia pelo que, toda feliz da vida, lá fui.
A professora (se é que se chama professora a quem orienta estas sessões) começou por explicar de que se tratava, que nos deveríamos focar no que fosse bom para nós, colocar de lado o que nos afligisse ou preocupasse, que deveríamos fazer como se uma esponja levasse para longe o que não nos fizesse sentir bem.
Depois disse que nos deitássemos, que nos puséssemos confortáveis, que nos tapássemos com uma mantinha. E colocou uma música tranquila. E que relaxássemos os pés. E depois as pernas. E depois as mãos, e a seguir os braços. Só falava de vez em quando. E que respirássemos fundo pausadamente. E que nos concentrássemos na respiração. E a música tocando. Depois que pensássemos num lugar onde gostássemos muito de estar, um campo de flores ou outro local agradável para nós.
E eu, surpreendentemente, logo que me deitei, relaxei completamente o meu corpo e quase instantaneamente deixei de pensar no que quer que fosse, abstraída de tudo, uma tranquilidade total no meu corpo. E, quando ela falou num campo de flores, lembrei-me de um campo da minha infância, havia ervas muito altas com espigas e nós passávamos a mão ao longo do caule e ficávamos com a mão cheia de espigas que atirávamos à roupa uns dos outros e depois contávamos as espigas que tinham ficado presas e cada espiga era um namorado e o que eu gostava de ficar cheia deles... Por esta altura, por entre as espigas apareciam papoilas e eu gostava de as apanhar, de soprar as pétalas, de abrir o saquinho das sementes. Era feliz de uma forma absoluta. E foi quase assim que me senti, leve, leve, andando pelo meio do campo verde e florido, brincando com os meus amigos. Depois a professora disse que sentíssemos a aragem e eu lembrei-me de como ficava bonito o campo ondulando ao vento e de como eu gostava de sentir a aragem suave no meu cabelo que era longo e que brilhava ao sol.
E a música tocando. De vez em quando, ao ouvir a voz da professora, eu sentia que estava como que a acordar. Penso que adormeci embora talvez não mais que por uns micro períodos de sono. Quando ela disse que nos sentíssemos de novo naquela sala, voltei de novo a mim. Leve, leve.
Depois pediu que cada um de nós tirasse uma carta das virtudes e a lesse, que seria a carta que nos iria influenciar durante a semana. a minha dizia 'pacífico' e dizia que eu atraio pensamentos positivos e que, com a minha serenidade, trazia serenidade aos que me rodeiam. Claro que esta parte das cartas pode ser vista como uma treta mas a verdade é que, se a gente lê uma coisa agradável, se sente bem e isso não faz mal nenhum.
Depois levantámo-nos e ficámos a beber chá e a conversar na salinha de entrada. Essa parte para mim teria sido escusada. A verdade é que estava tão zen que as palavras estavam num outro hemisfério, não me apetecia falar. Acho que, mesmo que tentasse, não o conseguiria. Mas algumas participantes desataram para ali numa catarse colectiva, cada uma a queixar-se nem sei bem de quê. Claro que ouvi mas, a bem dizer, sem prestar grande atenção. Eu é como se vivesse num outro comprimento de onda e isto é sempre, não preciso de meditar para isso, não me dá para me pôr a dizer que os outros são feios, porcos maus, que no trabalho não nos prestam atenção, no trânsito são todos uns animais, na sociedade uma competição vazia de sentido. Eu isso passo, sinceramente. Não acho que os outros sejam do piorio porque os outros somos nós todos. Limito-me a queixar-me das elites que aceitamos ter, das fracas figuras que elegemos ou das prebendas que aceitamos que sejam concedidas a criaturas que são uns zeros e que tanto contribuem para a indigência política, social, económica e cultural que prolifera no país. Quanto ao resto e aos outros, são meus iguais. Aliás, cansa-me ouvir estar a falar mal de tudo e de todos, acho que isso corrói a alma da gente..
Mas, pronto, nem tudo é perfeito e lá nos viemos embora, eu com o corpo e a cabeça numa paz de dar gosto.
Dali fomos para um parque para nos juntarmos ao resto do pessoal. Um tempo maravilhoso, tudo verde, o lago com umas cores belíssimas, as crianças felizes, correndo, brincando, todos tranquilos, bem dispostos.
Há momentos que a gente tem vontade de os fixar dentro de nós para todo o sempre.
Depois fomos todos para casa do meu filho e, no terraço da sua casa que é tão bonita, estivemos a lanchar até o dia quase se ter ido, e os meninos ainda brincaram na relva e estava-se ali tão bem, tão acolhedor aquele espaço e todos tão amigos uns dos outros.
Claro que depois, ao chegar a casa, tive afazeres domésticos, comida a confeccionar, roupa a arrumar, mas tudo o que se faz sem esforço é bom de fazer.
E agora tenho estado aqui a ouvir música e vejo pelas estatísticas que, enquanto escrevo, várias pessoas me estão a ler e eu gosto de vos sentir aí desse lado, é como se estivessem aqui comigo, à minha beira, ouvindo a mesma música, olhando-me e eu olhando-vos a vós, e, acreditem, é como se uma corrente de harmonia chegasse até mim.
Gosto de escrever, gosto de aqui estar convosco, é bom. E tomara que vocês também gostem de estar comigo, que tenham sempre vontade de voltar até junto das minhas palavras.
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Fiz as fotografias neste domingo que me trouxe uma descoberta tão boa que só eu sei.
A música é um excerto da ópera "Thais" de Jules Massenet, interpretado por Elmar Oliveira no violino e Robert Koenig no piano.
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Permitam que relembre que abaixo falo na relação entre a matemática e a vida, uma relação que, para mim é virtuosa e que, talvez para os mais afastados, pareça improvável.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira.
Massenet - Meditation (da Ópera Thais), interpretado por Sarah Chang no violino, aqui com Placido Domingo dirigindo a orquestra
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Quando hoje saí da cidade, estava um calor impossível. Antes, passei pela beira do rio e deliciei-me com a maresia e com a visão dos belíssimos veleiros acostados ao pé de Sta Apolónia. E deliciei-me também a fotografar. Ah, parece que estou a renascer...!
Com o sol dourado da tarde, Lisboa fica linda e os veleiros estavam quase irreais, os mastros pareciam revestidos a renda, a brilhantes. Aqueles grandes cruzeiros ali, ancorados num Tejo cujo ondular parecia coberto de luz rosada, junto a uma cidade de cores suaves, tingida pelo sol suave da tarde, que maravilha, vocês haviam de ver. Tão bonito, tão bonito.
Hoje saí do meu cativeiro: agora que vos escrevo já estou in heaven. Quando cá chegámos, depois de quase três semanas de ausência, a natureza já estava a agir como dona do espaço. O portão já estava cheio de teias de aranha, o caminho à volta da casa coberto de montes de folhas secas e até a porta de casa estava já coberta de teias. É impressionante como, mal a gente se retira, mesmo que temporariamente, a natureza se apodera logo das casas.
Cá dentro, para além de algumas teias, também, em vários sítios, algumas colónias de bichos de conta. Claro que, ao deparar com este cenário, me deu logo vontade de fazer uma coisa que adoro (quem me conheça daqui já sabe que sou mulher de gostos simples): varrer! Mas ainda não dá para isso, acho e, aliás, hoje já tinha abusado um pouco. No entanto, amanhã vou tentar, começo cá dentro e, se me aguentar bem, avanço para a faxina no exterior. Parte do encanto das minhas férias reside nisto: fazer limpezas, lavar tapetes e carpetes, varrer a rua e apanhar folhas secas, regar, aparar ramos e serrar pernadas de árvores, podar o que apanhar à mão, fazer refeições saborosas cujo cheirinho saia pela chaminé e perfume o exterior, descansar à sombra da grande figueira, ler, ouvir os pássaros, olhar as árvores, olhar os montes ao longe. Aliás, sendo mais precisa: parte do encanto da minha vida reside nisto.
Quando cheguei, não resisti e, devagar, com muito cuidado - porque isto de andar em piso pouco regular agora é do pior - dei um pequeno passeio. Que saudades eu tinha, que saudades.
E encontrei tantas diferenças.
A começar, a linha do horizonte à nossa frente apresenta novidades - ou então, não tínhamos reparado e os moinhos de vento já estavam há mais tempo. Mas fica bonito. A fotografia foi feita com bastante zoom. De facto, o que se vê, pelo menos num fim de tarde como o de hoje, são uns suaves segmentos dourados que giram ao longe.
Depois as figueiras estão carregadas, tantos figos. Ainda estão pequenos e verdes, no meio de uma folhagem de um verde intenso.
Não tarda, estarão grandes, macios, rebentando, deitando leite, vermelhos e doces por dentro. Nessa altura serão uma tentação e eu tenho tanta dificuldade em resistir a tentações doces, assim.
As silvas, que há pouco estavam floridas, umas flores pequenas, delicadas, de penugem rosada, estão agora cheias de amoras. Ainda não estão bem no ponto (confirmei; como disse, há coisas a que não resisto e já as provei).
Agora estão a ganhar cor, algumas já cor de sangue vivo, macias. Mas, aos poucos, ficarão escuras, e só então ficarão doces, doces, deliciosas. Gosto tanto de amoras, selvagens, ínfimos bagos sumarentos.
E depois o alfazema.
Aqui, para me perceberem, deveriam ter convosco uma espiga de alfazema, esfregá-la na palma da mão, fazer com que o odor se soltasse, aspirar suavemente. Que bem que cheira à tardinha, quando o sol faz a planta suar e o perfume no ar é forte, limpo.
Amanhã vou apanhar e fazer raminhos, ato-os e ponho-os em lugares estratégicos. Fica tão bonito e fica tudo tão cheiroso, vêm-me à ideia as gavetas com lençóis de linho, barras bordadas a ponto Richelieu ou com renda, tudo imaculado e a cheirar a lavadinho, a lavanda natural.
Também apanhei alguns orégãos e amanhã a ver se apanho mais. A minha mãe seca-os à sombra, depois põe em frasquinhos que distribui pela família. Não dispenso para temperar a salada de tomate. Cheiram tão bem, sabem tão bem.
Quando andava por ali, feliz, feliz mesmo, reparei na minha sombra no meio da terra pedregosa (agora sequíssima, há tanto tempo sem chover e com este calor marroquino), terra que tanto amo, e fiquei contente por estar ali, impregnada nela, e feliz também por estar pelo meu próprio pé, a andar sem apoios. Fotografei-me para registar o momento e partilho-a aqui convosco.
É uma imagem a la Giacometti, pernilonga, a sombra alongada com que o sol, antes de se pôr atrás dos montes, nos presenteia. Sou eu a fotografar a mulher renascida cujas células vivem inscritas nesta terra, nestas pedras, nesta vegetação campestre, aqui in heaven.
Comecei hoje, portanto, as minhas férias e estou no sítio, em todo o mundo, onde eu sou mais eu.
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Já agora, convido-vos a ver a Kate Moss, bad girl, uma moça que também renasceu, que também se levantou - e andou por um heaven fresquinho até que chegou ao inferno do calor (comigo o percurso foi ao contrário pois, primeiro, passei por um calor dos diabos e só depois é que cheguei aqui, in heaven, dando, então, com uma temperatura muito amena; e, agora, de noite, até está uma aragem fresquinha, mesmo boa). Mas ela, no fim, foi deitar-se outra vez... e eu não! Eu já me aguento bem de pé! Aleluia!
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E é isto, meus Caros Leitores.
E a vocês desejo que se divirtam, que descansem, que se animem: be happy! Enjoy!