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terça-feira, maio 22, 2012

No final do passeio pelo Douro Superior, a seguir à visita ao Museu do Côa, Ana desnuda-se perante um Tomás que, na véspera, praticamente já se tinha desvendado perante Ana e a história chega ao fim - The End


Música, por favor

Música com sons da natureza



Tomás olhou para Ana, 'Deve estar a achar que isto está a parecer uma novela mexicana'. Ana sorriu. 'Que ideia... Não, Tomás, estou a ouvir com atenção e com curiosidade.' 

'Não gosto de falar nisto, nunca falei. Mas mil vezes tive, dentro de mim, a conversa que estou aqui a ter. Mil vezes relatei, em silêncio, a conversa que um dia teria com alguém a quem explicaria o que se passou. Mas, apesar de mil vezes ensaiado, agora que estou a falar a sério, tudo me parece pouco credível, tudo me parece exagerado ou destituído de lógica. 

Mas foram anos de cansaço, Ana, anos de trabalhar quase sem dormir, anos de querer sempre mais, mais clientes, mais horas, mais quadros, mais livros, mais carros, anos de muita pressão, ter relações no período fértil, exames médicos, frustrações, análises, mais exames, e as frustrações, as minhas, as dela, as depressões dela, as dores de cabeça dela, as indisposições e eu já não sabia se as indisposições eram físicas, se eram imaginadas, se eram fruto da depressão, tantos anos assim, tantos, eu sei que é difícil de perceber mas foram anos e anos, eu estava tão exausto, nem sabia quanto'.  E passou as mãos pelo cabelo.

'Mas, dito assim, parece uma tragédia vulgar, não gosto de me ouvir a dizer isto. Uma perda é uma coisa má mas uma perda envolta em culpa é uma coisa péssima. É uma garra no nosso peito, é uma angústia que não nos deixa respirar, nem viver. Nem falar, Ana'. E olhou-a como se fosse incapaz de dizer mais uma palavra que fosse.

Ana levantou-se e foi sentar-se ao lado dele, 'Não conte, Tomás, não quero ouvir. Mas conte como foi parar à vila.'

Tomás deu-lhe a mão, 'Larguei tudo, tudo. Andei por aí, por onde calhava, andei até gastar o dinheiro todo, anos a andar por aí, em acções humanitárias, por aí. Até que, quando se acabou o dinheiro, comecei a trabalhar, também onde calhava. Uma vez estava numa serração, apareceu o dono da carpintaria da vila para escolher umas madeiras. Gostou da forma como eu pegava ou cortava na madeira, precisava de um ajudante, fui com ele. E foi ali, a trabalhar a madeira e a aprender com ele que reencontrei o amor que antes tinha pelo corpo humano. Os veios da madeira, descobri-los, o corpo da madeira, a forma de transformar aspereza em suavidade, a forma certa de cortar sem ferir, a forma certa de tratar sem traumatizar. Fui ficando. Ali também ninguém me conhecia e ali poderia, finalmente, estar em paz sem ter que andar de um lado para o outro. Depois, há uns dois ou três anos ele parou, reformou-se e vendeu-me a carpintaria. Foi só isso, nada demais, afinal.'

Ana, fez-lhe uma festa no cabelo e ficaram um bocado em silêncio. Depois ela disse, 'É tarde, ficamos por aqui. Vamos jantar e falar de coisas divertidas. Bom, bom, seria se encontrássemos um sítio para dançar.'

Tomás levantou-se, 'Dançar!? Tudo menos isso. Por muito que lhe queira agradar, isso é que não, peça outra coisa mas isso não. E, além disso, agora é a sua vez de falar'.

Ana hesitou, 'Tomás, peça outra coisa... mas isso não, hoje não... tenho que ver se invento uma história credível para lhe contar porque a minha história verdadeira é escabrosa demais'. Ele olhou-a, espantado. Ana riu-se, 'Não, escabrosa também não será, mas é maçadora, tenho que ver se invento alguns pormenores picantes'.

Jantaram no hotel e depois, antes de irem dormir, ficaram um bocado a combinar o percurso do dia seguinte.


Freixo do Numão - a beleza  pura da simplicidade


De manhã foram até Numão, localidade encantadora onde passearam como turistas, vendo o castelinho, a vista do castelo, as casas. Uma mulher, ouvindo as vozes, veio espreitar à porta, depois recolheu-se. Passado um bocado, discretamente veio até à rua, devia querer ver bem aquele casal para depois poder reportar o evento. Ana deu o braço a Tomás e sorriu para ele, enternecida, até para a senhora poder acrescentar esse dado relevante.



Contentor do lixo em Numão


Tomás apontou a Ana o contentor do lixo. Ana fartou-se de rir e fotografou. 'Não colocar cinzas quentes', que coisa mais engraçada para se escrever num contentor do lixo. São as particularidades da vida na terra.

Dali partiram para Foz Côa.



O Douro Superior avistado pela última vez em Foz Côa - uma imagem que não se apaga da memória
Os montes que se vão tornando azuis à medida que se escondem atrás de outros montes e um rio
que reflecte o céu e que desliza ante os nossos olhos assombrados


Ana não conhecia o museu, ia céptica. Mas o cepticismo logo se esbateu. A vista era, como sempre, magnífica, com todo o esplendor que caracteriza toda esta zona.

E o edifício do museu é espectacular.



Entrada do Museu do Côa
O céu que se vai estreitando à medida que entramos na terra, isto é, no belo edifício


A entrada deixa logo antever que vamos entrar num espaço onde a luz entra por frinchas. E depois toda a organização do museu nos 'leva' aos espaços em que foram observadas as gravuras rupestres.



Interior de uma sala do museu do Côa


Avançamos por espaços pouco iluminados mas o suficiente para vermos o que nos é mostrado, os traços que alguém, muito antes de nós, nestes mesmos locais, vendo estas mesmas paisagens, e vivendo numa natureza fulgurantemente bela, foi desenhando nas rochas.


Outro aspecto de outra sala do belíssimo (e moderno!) Museu do Côa


O que vemos são réplicas, ou figuras iluminadas, ou peças descobertas, ou recriações de ambientes e há uma música suave que nos acompanha, sons da natureza, bichos, passos de gente nos rochedos ou de animais, pássaros, o vento na folhagem.


Ana andou feliz, descansada, o ambiente de museus deixa-a sempre assim, descontraída e bem disposta. Tudo ali a encantou.

Quando saíram, Ana deu a mão a Tomás, puxou por ele. 'Venha, vamos encontrar um recanto confortável, sossegado'. Abriu o saco que trazia ao ombro e mostrou-lhe pão, bolos, fruta, sumos. Tomás admirou-se: 'Mas de onde veio isto?'. Com ar gaiato, Ana confessou, '...Não diga nada... Trouxe do hotel, do pequeno almoço, bad, bad girl... vamos, vamos fazer um picnic'.



Se a música lá de cima ainda não acabou, por favor, parem-na, que a música agora é outra.

Damien Rice - I can´t take mey eyes off you
(Banda sonora do filme Clser)




Pormenor da paisagem do Douro Superior, Douro Vinhateiro, Reino Maravilhoso


Foi Tomás que descobriu o sítio ideal. Sentaram-se e, como se estivessem no ventre da terra, no meio do nada, ali estiveram comendo, rindo. Depois Ana, resoluta, avançou, 'Então, vá, vamos lá: agora eu!'

Tomás deu o mote: 'O que é que uma mulher como você tem a ver com aquele sujeito intragável que a foi visitar no outro dia... com flores?!'.

Ana riu, maliciosa, 'É intragável, é. Mas tem o seu lado tragável...'.

Como ele não se risse, ela continuou: 'Vá, agora a sério. Fomos colegas. Depois cada um seguiu o seu trajecto profissional mas a nossa amizade continuou. Sempre houve um ambiente de picardia entre nós e dali até haver uma chispazita era um ar. Uma adrenalina, uma atracção, nem sei bem dizer. Mas ele ultimamente está um convencido, um arrogante, um verdadeiro palerma, é verdade. A empresa onde ele estava, como sabe, foi comprada por chineses, eu na brincadeira até o trato por chinês. Sou amiga da mulher dele, não tem nada a ver. E gosto dele, apesar das parvoíces e vaidades. Em privado é divertido, é outro. Andou a querer divorciar-se, queria ficar comigo, uns dramas. Era escusado que eu nunca iria viver com ele mas, de qualquer maneira, a mulher também não aceitou o divórcio amigável e ele, com a exposição mediática que tem, nunca poderia ir para um litigioso. Continuámos amigos como antes, embora desde há algum tempo pouco nos encontremos'.

Ana estava com calor, tirou o casaco e apeteceu-lhe sentir a terra, tirou os sapatos. Continuou de olhos postos em Tomás: 'Mas, enfim, são coisas da vida. Mas o homem da minha vida não é ele. É outro, sempre foi. É o pai dos meus filhos.' Tomás abriu os olhos, com espanto. 'Sim, tenho filhos, Tomás.'

Tomás olhava-a, calado. Ana continuou: 'Que calor que se está a pôr. Não leve a mal, Tomás, mas vou tirar também a tshirt'. Despiu e ficou de calças e soutien. Tomás engoliu em seco, tentando não ser indiscreto, não ver os seios de Ana que eram bem visíveis com o soutien decotado.

Ana continuou sem conseguir tirar os olhos de Tomás: 'Mas o homem da minha vida, o ano passado recebeu um convite que achou que era irrecusável, ir arrancar com uma unidade no Brasil. Queria, naturalmente que eu fosse com ele. Claro que eu não ia, tenho cá a família, o trabalho, tudo. Depois meteu na cabeça que eu não queria ir por causa do 'chinês'. Nós, que antes sempre nos tínhamos dado tão bem, começámos a viver numa discussão permanente. Cenas de ciúmes permanentes, uma estupidez, queria que eu confessasse, cenas parvas, coisas pelas quais eu, nunca na minha vida!, quis passar, odeio ciúmes, odeio. Uma vez no meio da maior crise, farta das inquisições e ciumeiras, disse-lhe para se ir embora e para me deixar em paz, que eu, por muito que gostasse dele, não iria viver para longe dos meus filhos, nem dos meus pais e que fosse chatear outra e essas coisas que se dizem no calor das discussões. A verdade é que saíu porta fora e aceitou, finalmente, o convite. Depois arrependeu-se mas já era tarde demais. Furiosa, disse-lhe que escusava de me telefonar, que eu nunca mais queria pôr-lhe os olhos em cima. E, no dia em que ele embarcou, eu fiz o mesmo, saí de casa, avisei os meus filhos e os meus pais e fui parar à vila. Todos os dias lhes telefono e todos os fins de semana são sagrados mas a ele não, não lhe perdoo, e ele liga aos filhos, pede-lhes para eles me convencerem, uma chatice.'

Tomás olhava para o chão, inibido. Percebeu que Ana estava a despir as calças mas não levantou os olhos. 'Que bem que se está assim, Tomás, a sentir o sol na pele'. Tomás não disse nada.

Ana colocou-se bem na sua frente, assim, e continuou, olhando-o: 'Quis afastar-me, estava furiosa, furiosa comigo por ter esticado a corda até partir, furiosa com ele porque se foi embora, furiosa, triste, aborrecida. Uma vida inteira para acabar assim, estupidamente. Nem sei quem é que teve razão ou se alguém teve, nem isso me interessa. Tratei de tudo no trabalho para deixar de ter funções executivas, passei a tratar de tudo por mail ou por telefone ou em reuniões ao fim de semana. Era para ser um mês, dois meses, três meses. Mas comecei a arranjar a casa, comecei a interessar-me pela terra, por tudo e... pode alguém ser quem não é? Quando dei por mim já estava a dinamizar negócios, a motivar pessoas, enfim, aquilo que sempre fiz. E isto apesar de ter ido para lá para mudar de vida. De tal maneira que quando o dono da oficina me perguntou o meu nome, me saíu um nome que não o meu...'

Tomás olhou-a então de frente, como se sentisse enganado: 'Não?! Não se chama Ana? Então como é que se chama?"

Ela despiu então a última peça de roupa e assim, de frente para Tomás, deixando que ele a visse em toda a sua nudez, olhando-o nos olhos, respondeu: 'Eva'. 


***

Para o caso de alguém querer ler esta história do princípio até ao fim, poderá procurar a etiqueta 'Ana muda de vida' aí ao lado, mais lá para baixo.

E, para o caso, de haver algum resistente que, depois desta longuíssima história, ainda lhe apetecer ler mais qualquer coisa, convido-vos a visitarem-me lá na minha outra casa, o Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as minhas palavras voam, mas hoje voam mesmo, em volta de um poema de Tatiana Faia. A música só poderia ser Va, pensieri, sull'ali dorate e, claro, é Verdi.

***

Cansada de tanto escrever, desejo-vos uma bela terça feira. 

E, se me permitem um conselho de ordem prática, não seria de jogarem o euromilhões? Parece que há um jackpot  jeitoso que talvez venha a calhar para uns devaneios. 

Seja como for, divirtam-se à grande, está bem? 

sexta-feira, abril 13, 2012

O sim de Eva, a mulher que ama a poesia, e a sua maravilhosa festa de casamento. E daqui envio ao casal os meus sinceros votos de que sejam felizes para sempre!


Um pré-aviso. Hoje tive um dia fatigante, ao todo umas cinco horas de carro, reuniões. Cheguei tarde, estou com sono.

Enquanto aqui estive a responder aos comentários e a escrever no Ginjal fui ouvindo as notícias na televisão, a Quadratura no Círculo, etc, e fui-me dando conta dos acontecimentos do dia e, não estivesse cansada como estou, hoje era dia de me 'ir a eles' com estrépito e vigor. Mas faltam-me as energias. Passa da meia noite e acho que não consigo ir até tão tarde como me é habitual. Por isso, vou deixar de lado a política e a economia, a crise, o tom preocupado de Christine Lagarde, a crise (grave...!) em Espanha, e vou ver se consigo continuar, nem que seja por um bocadinho, o dia do casamento de Eva e Miguel.


Música, por favor

Rodrigo Leão - Ave Mundi, na voz de Ângela Silva


Eva ia entrando, pois, pelo braço do filho e era como se caminhasse sobre nuvens. 

Dourada, luminosa, cabelo solto, elegante, perfumada, Eva deslizava e espalhava charme, um charme tão mais cativante quanto todos a sentiam frágil, emocionada, quase etérea.

Nem ouvia a música, nem via distintamente coisa nenhuma, nem conseguia pensar, nem seria capaz de pronunciar uma palavra que fosse. Olhava Miguel, olhava a filha, sentia o braço ligeiramente trémulo do filho e ia feliz, imensamente feliz. Depois olhou em volta e viu os pais e, aí, Eva não se conteve, as lágrimas rolaram-lhe pelo rosto. Muito juntinhos, os pais choravam também e sorriam, e Eva sentiu-se contente consigo própria por estar a dar esta alegria aos pais, queridos, queridos pais.

E então, no meio de sorrisos, ao som daquele cântico que que sempre a deixa a pairar, fazendo-a sentir-se insconcientemente abençoada, Eva olhou Miguel nos olhos, sorriu e viu Miguel a sorrir, feliz, deixou-se olhar com ternura e amor pelo homem da sua vida, trocaram olhares cúmplices e apaixonados e, sem qualquer sacrifício, Eva disse o tão esperado sim

Todos bateram palmas, todos estavam comovidas e todos, especialmente os filhos, disseram cadenciadamente: 'Beija, beija, beija' e então Miguel enlaçou Eva, abraçou-a com toda a ternura do mundo e Eva abraçou Miguel com toda a paixão do mundo e beijaram-se, ao princípio era um beijinho envergonhado mas, depois, Miguel puxou-a com vigor e beijaram-se com todo o amor do mundo. Até que a filha os refreou: 'Então...? Já chega...' e o filho, com pudor: 'Também não é preciso tanto...' e Eva e Miguel suspenderam o beijo para, apenas, se olharem enternecidos.

Depois todos os vieram beijar, cumprimentar, grandes palmadas nas costas de Miguel, então, finalmente, lá conseguiste dar a volta à miúda...!, e Miguel sorrindo, um homem feliz, não largando a mão de Eva e os amigos a gozarem, é melhor não a largares mesmo, não vá ela arrepender-se e fugir..., e Eva e Miguel agarradinhos, cúmplices, felizes. 

E depois a festa começou.

A filha pediu para Eva se sentar num determinado sítio e todos fizeram um círculo em volta. Sempre atenta, ainda lhe ajeitou o vestido, queria a mãe bonita nas fotografias. Eva não aprecia grandemente surpresas, sente que não fica com o controlo da situação mas, enfim, um dia não são dias e, percebendo que tinham preparado alguma, não quis ser desmancha prazeres.



Sentou-se, pois. E então ouviu Miguel começar a dizer na sua bela voz que, aos poucos foi enrouquecendo de emoção:

                Amo o teu túmido candor de astro
                a tua pura integridade delicada
                a tua permanente adolescência de segredo
                a tua fragilidade acesa sempre altiva


                Por ti eu sou a leve segurança
                de um peito que pulsa  e canta a sua chama
                que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
                ou à chuva das tuas pétalas de prata


                Se guardo algum tesouro não o prendo
                porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
                que dure e flua nas tuas veias lentas
                e seja um perfume ou um beijo  um suspiro solar
      
                Ofereço-te esta frágil flor  esta pedra de chuva
                para que sintas a verde frescura
                de um pomar de brancas cortesias
                porque é por ti que vivo   é por ti que nasço
                porque amo o ouro vivo do teu rosto


As lágrimas deslizavam no belo rosto de Eva quando Miguel acabou e lhe veio oferecer uma flor. Eva queria agradecer mas não conseguiu, a voz presa, apenas lhe fez uma festa na mão. Miguel sentou-se então ao lado da sua mulher enquanto todos atiraram sobre o casal uma chuva de pétalas. A Eva tudo isto parecia irreal. Miguel passou-lhe o braço sobre os ombros, beijou-a.

A seguir Eva ouviu a voz emocionada da filha, da querida filha, certamente a obreira desta celebração e sorriu-lhe, agradecida, comovida:

                 Algo que não sei
                 uma felicidade tão leve tão frágil e tão nua
                 o desejo de nomear
                 uma pele fresca de lua   uma mulher de chuva
                 o perfume azul de um corpo adivinhado
                 ou um oásis de silêncio  a brancura de um lírio
                 que nascesse do seio do espaço

Depois a voz trémula do filho e Eva enterneceu-se sabendo o sacrifício que devia ter sido para ele predispor-se a isto, tão avesso que é a estas coisas, e Miguel, emocionado também, abraçou Eva com força:

                 A palavra-silêncio do seu corpo
                 entra no íntimo de nós
                 onde recolhe o sonho de viver
                 que só pode revelar-se numa infinita
                 contemplação
                 que não pode deter-se em nenhum sentido
                 porque é o incessante, o interminável sim do amor



E um a um, cada um dos presentes, foi dizendo um poema e era uma toada mágica, palavras divinas, a celebração autêntica da palavra, do afecto, da partilha, do amor. Dispostos em círculo, dizendo poesia para Eva e Miguel no centro, uma música maravilhosa em fundo, era todo um ambiente de tangível felicidade que ali se vivia.


Quando acabaram, Miguel puxou Eva pela mão e levou-a para o centro da sala, 'Anda miúda, vamos dançar'.


Música, por favor


Rodrigo Leão - La Fête com Ana Vieira na voz, Celina da Piedade no acordeão e Viviena Tupikova no violino


E dançaram abraçados, enlevados, apaixonados e felizes e depois todos se lhes juntaram e todos dançaram na maior alegria até que começaram a chegar os amuse-bouche, as bebidas e, finalmente, o jantar foi servido, vichyssoise, perdizes assadas em azeite e salsa, regadas com Madeira e acompanhadas de batatinhas assadas e espargos verdes, e outros petiscos que deliciaram todos os animados convivas; e todos comeram e beberam e, no final, já cantavam, dançavam, declamavam poesia, beijavam-se e foi uma festa que nenhum dos presentes conseguirá alguma vez esquecer-se.

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Os poemas são na verdade excertos de poemas de António Ramos Rosa e podem ser lidos na sua Antologia Poética, selecção, prefácio e bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes.

Por poesia: Se ainda tiverem disposição para isso, terei todo o gosto em receber-vos no meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa onde hoje as minhas palavras voam em torno do mar vermelho de de Ana Marques Gastão e de uma fotografia com umas cores fantásticas (e desculpem-me a imodéstia).

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É sexta feira, grande dia! 

Tenham, meus Amigos, um dia cheio de amores, de danças, de beijos. 
E, se não tiverem com quem, vão à procura, ou, se não se quiserem maçar, imaginem, sonhem com isso, o que também não é nada mau. 
Sorriam e sejam felizes.


(NB: Já passa das 2 da manhã - se houver letras trocadas, gralhas e outras trapalhadas, já sabem, é do sono, desculpem)

quinta-feira, abril 12, 2012

Depois de uma noite perfeita, eis que chega, para Eva, o grande dia


Música, por favor

Uma vez mais aqui, Oleta Adams - Get here


Por volta da três e tal da manhã, Miguel ainda dizia poemas num sussurro, quase ao ouvido de uma Eva quase anestesiada (para não dizer inebriada, que poderia parecer excessivo),

                                                                   eu gostava de poder dizer
                                                                   que entrei no teu corpo como um pássaro
                                                                   espreitando de invisíveis ruínas
                                                                   e que o som da tua voz bastava
                                                                   para me salvar

Eva respondia, num sopro muito leve, um segredo quase silencioso:

                                                                   a língua sobre a pele     o arrepio
                                                                   os teus dedos nas escadas do meu corpo

                                                                    as lâminas do amor    o fogo    a espuma
                                                                    a transbordar de ti na tua fuga


E depois, interrompendo-se: 'Olha, e por tua fuga....'.

Miguel interrompeu-a a ela e, apoiado sobre um cotovelo, deitado de lado enquanto passava a mão pela pele macia da anca de Eva, também deitada de lado, perguntou simplesmente: ‘Antes da minha fuga, diz-me lá então, femme fatale, em que é que ficamos?’.



Eva, ensonada, espreguiçando-se como uma gata, nua, madura, roliça: ‘Pois olha, nem sei que te diga… Era uma maçada desmarcar tudo em cima da hora, não é…?’ e bocejava. ‘Também, verdade seja dita, que fizeste a minha vontade durante tantos anos, vivendo amancebado quando querias tudo certinho, de papel passado, que também te posso, agora, dar uma colherzita de chá.’

Miguel sorriu condescendente, ‘Ok, eu sou um menino de província, querendo tudo certinho e tu és uma libertina do caraças que vai assentar… é isso então? Ou seja, mantém-se o casório. Toda esta cena era, portanto, totalmente escusada’, mas o tom de voz, se era cansado, era também de quem apenas constatava um facto, não de quem censurava.

Eva, já quase a dormir: ‘Ou seja, não apreciaste a despedida de solteiro.’

Miguel, já também quase a dormir: ‘Não, não apreciei nada… Vinha para uma despedida de solteiro e em vez de uma miúda nova a sair de dentro de um bolo ou coisa do género, saíu-me a fava, ou seja, a mãe da miúda’.

Eva fez-lhe uma festa nos pelos do peito, já meio grisalhos: ‘Pois foi, não correu nada bem. A mim, que gosto de polícias musculados que fazem striptease, apareceu-me um médico grisalho e que, ainda por cima, não vinha de bata branca nem de estetoscópio ao peito...'  

'Não vinha de estetoscópio ao peito... mas...', ia Miguel gracejar, mas Eva interrompeu-o: 'Estou com sono, deixa-te de parvoíces. Agora vá, vai-te lá embora para casa do filho que eu ainda quero ver se durmo alguma coisa. Se é para ser à antiga portuguesa, que seja mesmo, não podemos dormir juntos na última noite. Vai.’


Era já meio dia quando Eva acordou descontraída, muito bem disposta. Telefonemas e mais telefonemas a perguntarem-lhe se ainda não tinha desistido, se estava nervosa, que ainda estava a tempo de fugir, etc e tal. A indecisão, a neura, a inquietação, tudo tinha desaparecido. As longas asas do arcanjo Miguel operam milagres em Eva.

Um pouco depois, a filha chegou com sacos de roupas, de sapatos, de make up, com o bouquet, num entusiasmo: ia casar a mãe.

A cerimónia seria o mais simples possível, pouquíssimas pessoas - mas tinham combinado que a produção individual seria tipo red carpet. Ao longo da semana experimentaram penteados, viram como se conjugava o penteado com o vestido, com os sapatos, com possíveis jóias. A filha analisava, fotografava de frente, de lado, de trás, sugeria alterações e Eva fazia o mesmo. Divertiam-se como duas miúdas.

Uma das jóias e toilettes testados 


Almoçaram sopa, salada, iogurtes, fruta, para irem leves mas sem fome. Depois ajudaram-se mutuamente com a opção aprovada para a toilette, para o penteado, para a maquilhagem. Eva, wild girl, não gosta de grandes penteados, coisas complicadas, ar muito arranjadinho. A filha também não. E estava linda, a filha, linda, linda. O que ela gostou de pentear a filha que tem uma bela cabeleira, forte, com um belo ondulado natural. Que linda ia a sua menina mais linda.

Eram seis e tal da tarde quando saíram. Por essa hora, já Eva estava um bocado nervosa, estas coisas dão-lhe sempre um friozinho no estômago, um aceleramento nas pulsações.

A filha ia numa alegria desbragada, fazia telefonemas, mandava e recebia sms em contínuo, trocava impressões com o irmão e depois dava testemunho: ‘O pai está num stress, há mais de uma hora que está pronto, não pára sossegado.’ Depois coordenava-se para garantir que ela e a mãe seriam as últimas a chegar.

Quando lá chegaram, trocaram de posições. O filho entraria com ela, a filha iria para o pé do pai, esperar pela mãe. Depois trocariam de novo, uma coreografia que, entre eles, engendraram. 


Se a música lá de cima já acabou, então, por favor, agora esta

Katie Melua e Eva Cassidy - What a wonderful world


Quando ela entrou com o filho, emocionou-se. O filho estava lindo, alto, compenetrado, emocionado, o seu menino querido, e ela só lhe apetecia fazer um miminho ao seu menino lindo, que belo homem estava. Levava-a pelo braço e sorria-lhe, uma lagrimita no canto do olho, o seu menino querido. E Eva quase a desmanchar-se, que Eva é assim.

Depois viu Miguel, lindo também, sorrindo, comovido. Miguel sorria-lhe, olhava-a enlevado, via-se que estava embevecido, que estava apaixonado. E ela sorria-lhe também, à beira das lágrimas, rendida, apaixonada também. 

Depois, a seguir - diz quem lá estava - que nunca viu coisa assim.


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Os poemas são, na verdade, excertos de poemas de Alice Vieira in  'Dois corpos tombando na água'. 


E, por poesia, hoje lá no meu Ginjal e Lisboa, a love affair, escrevo umas palavras que voam sobre um excerto de um dos poemas que mais indelevelmente me marcaram, 'Mulheres correndo na noite' de Herberto Helder. Jessye Norman acompanha com 'D'amour l'ardente flamme' de Berlioz, um luxo. Gostava de vos ter também por lá..

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E, por hoje, é isto. Tenham, meus Caros, uma bela quinta feira. E divirtam-se que não há coisa melhor que estarmos bem, felizes, divertidos.

E, meus Amigos, se me permitem, deixem-se ficar agora aqui mais um pouco, a ouvirem o What a wonderful world até que se entranhe bem na vossa pele, no vosso sangue. É que, apesar de tudo, meus Caros, que belo mundo é este.
  

quarta-feira, abril 11, 2012

Eva e a noite que acabou de forma inesperada (ou talvez não)


Música, por favor

Melody Gardot - Baby, I'm a fool



Eva vagueia, pois, pela casa. Gata selvagem, arquejante, os olhos verdes ardendo no escuro, inquietos. Então, de repente, vai ao roupeiro, escolhe uma capa escura com capuz e sai.


Vai a pé.

Na noite da cidade, uma mulher avança, então, na rua, sozinha, envolta numa capa escura. A rua está deserta e Eva avança, sem medo, como se caminhasse no vazio.

Um pouco depois, mais à frente, uns vultos avançam cambaleantes, depois o silêncio, depois há um outro que sai furtivo de uma casa, depois, de novo, o silêncio, o vazio. Eva nada receia, caminha acima de si própria.

Passa pelo vasto jardim a esta hora deserto, escuro, as grandes árvores negras fazendo fronteira com o céu, e está frio, e está um vento húmido e cheira a maresia mas Eva avança sem nada notar, Eva continua a caminhar longe de si mesma.

Um gato sai dos arbustos, corre, e logo um outro; são negros, de olhos verdes, irmãos de Eva, e Eva não os estranha.

Um carro aproxima-se, abranda, dir-se-ia que segue o rasto de Eva ou talvez apenas tente perceber que vulto é aquele que ali vai, um vulto escuro quase invisível na noite escura. Eva não o ouve ou, se ouve, não se vira, não acelera o passo, continua, indiferente, longínqua, dir-se-ia apenas um fantasma percorrendo os frios caminhos da noite.

Avança, passo certo, mas, quem a veja de frente, poderia até pensar que está imóvel, suspensa. Eva não pensa, a mente vazia, o olhar fixo no escuro.

Chega então junto ao mar. O carro continua a segui-la.

Eva aspira o ar frio, sente agora a maresia no rosto, sente a liberdade dentro de si, abre os braços, dir-se-ia que vai voar, um elegante pássaro negro preparando-se para voar sobre o mar.

Depois desce até à praia, o areal negro, o mar batido e negro, o rugido do mar uma e outra vez, o céu negro e Eva vestida de negro e, no entanto, é uma paz imensa o que Eva sente, que paz, que paz. Eva, um pássaro livre na noite escura. Que paz, que silêncio – e o rugido das ondas é absorvido pelo silêncio da noite silenciosa. E ali fica, contemplando o vazio, o mar escuro que se confunde com a noite escura, que se confunde com o negrume que a invadiu.

Depois, levanta o rosto para o céu e sente, então, que está a chover e, sem surpresa, sente um cheiro familiar, um calor íntimo tão familiar, um corpo que a aconchega e que é tão familiar, e um abraço que a envolve e é tão familiar.

Com um chapéu de chuva aberto, Miguel ali está para a proteger.

Sem palavras, Eva deixa que Miguel a abrace. Depois Miguel pergunta-lhe e Eva percebe que ele está um pouco agastado: ‘Mas, então, que maluquice é esta? Fartei-me de ligar e não atendeste. O que é que se passa, pode saber-se? E vou a chegar a casa, preocupado, e vejo um vulto rua abaixo. Não sabia se eras tu mas logo calculei que fosses. Uma maluquice destas só podias ser tu. Já pensaste no perigo? Não te disse já tantas vezes para não andares por aí, sozinha, de noite?’

Então Eva, lágrimas nos olhos, numa lamúria: ‘Miguel, não me ligaste o dia todo... '. Ele nem quer acreditar: 'O quê? Estás maluca? Mas o que é que combinámos?!'

Eva corrige, hesitante: 'Pois. Não é isso. É que sei lá se gostas mesmo de mim... Sei lá se isto não é só uma brincadeira para ti, sei lá...'

Miguel olha-a espantado: 'Passaste-te...?'

Eva corrige de novo e agora vai directamente ao assunto (embora ela própria, se quisesse ser completamente sincera, não saiba verdadeiramente qual é o assunto): 'Mas não é só por isso. É que se estamos tão bem assim, vamos casar-nos porquê?’

No escuro, Miguel ajeita-lhe o cabelo que voa fora do capuz, ‘E porque não?’.

Eva insiste: ‘Dá-me uma boa razão para o fazermos’.

Miguel abraça-a de novo: ‘Dá-me uma boa razão para não o fazermos’.

Eva já ri: ’Gaita, Miguel. Assim não chegamos a lado nenhum!'

‘Chegamos…chegamos...! Anda, vamos para o carro, é um instantinho, já chegamos‘, e com o braço em volta dos ombros, Miguel leva a sua amada.

Quando chegam a casa, Eva continua: 'Agora a sério: vamos casar-nos para quê? Não percebo. Nunca quis. Porque haveria de querer agora?'

Miguel, tira-lhe a capa: 'Porque agora já és crescida'. E olha-a, com ar de censura: 'Mas que roupa é essa? Toda mal arranjada... Até pareces uma matrona mal jeitosa da tua querida Paula Rego... Fazes o favor de te ir pôr apresentável...?'

Eva sorri: 'Que desagradável... isso são lá coisas que se digam...? E isso é maneira de olhar para uma mulher...?'

Com ar malandreco, Miguel parece lembrar-se de uma coisa importante: 'Eh pá... Que lapso... e não é dos lapsos do outro totó...! Este é dos sérios... Então não é que não fizemos nenhuma despedida de solteiros?!'

Eva: 'Despedida de solteiro? ... Isso consiste exactamente em quê?'

Miguel: 'Comida, bebida e sexo'

Eva, rápida no gatilho: 'Alinho'. E já passando à acção: 'Podes ir preparando os comes e os bebes que eu hoje, com a neura, nem comi nada...? Vou-me, então, pôr apresentável e vou estar à tua espera ali na sala, pode ser...?'

Passado um bocado, quando Miguel chegou à sala com os mantimentos, a porta estava fechada. De lá vinha uma música envolvente.

Música, por favor
Melody Gardot - My one and only Thrill


Lentamente, Miguel abriu a porta. Eva estava nua.

Maliciosa, aquele seu meio sorriso, aquela sua falsa inocência de Marilyn, sussurrou: 'Pronto. Já me pus apresentável: já pus umas gotas de Chanel Nº5. Estou bem assim...?'



«»

Bom, não querendo estragar a festa, pergunto-vos se querem ir ali ao lado, ao Ginjal, dar uma espreitadela. O clima por lá não está tão animado, mas enfim. As palavras hoje voam em volta de Sophia e ao som de Berlioz, da Sinfonia Fantástica.

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E, por hoje, é isto. Tenham, Caríssimos, uma excelente quarta feira. E divirtam-se, está bem?

terça-feira, abril 10, 2012

Eva numa noite de pesada inquietação, de dúvida, de procurada solidão


Música, por favor

Melody Gardot - Our love is easy


E então, muitos anos depois do primeiro dia e muitos anos depois do primeiro pedido, Eva vai finalmente casar-se.

Ambos souberam, desde a primeira vez que se viram, que poderiam as circunstâncias alterar-se mil vezes, poderiam vir a conhecer mil outras pessoas, mas que, amor como aquele, não voltaria a acontecer.

Pouco depois Miguel quis casar-se. Mas Eva é potro selvagem, galinha do mato, ave das escarpas, e nunca quis prender-se.

Mas começaram a viver juntos, tiveram filhos. E sempre Miguel a tentar que ela se rendesse. Os anos foram passando.

Miguel é médico, um bom médico, cirurgião, especializado em transplantes. Não tem horário, trabalha quando é preciso trabalhar, quando surge a possibilidade. Seja ao fim de semana, seja de madrugada, seja quando for. Por isso cedo optaram por dormir em quartos separados. Eva gosta de dormir tranquilamente e Miguel compreende que não deve perturbar-lhe o sono com telefonemas nocturnos ou com chegadas ou partidas a meio da noite. 

Eva foge de jantares de trabalho, reuniões que se prolonguem noite fora mas, se inevitabilidades dessas acontecem, também não quer perturbar o sono de Miguel, geralmente sempre tão mal dormido.

Amigo não empata amigo, costumam dizer. Tendo profissões tão diferentes, admiram-se, apoiam-se, são amigos e confidentes, cúmplices de todas as situações.

Eva é uma sedutora. Gosta de seduzir, gosta de ser seduzida. Miguel sabe-o. Ao princípio chocava-se, tiveram muitos atritos por causa disso. Mas Eva continuou a ser quem é e Miguel acabou por perceber que Eva também gosta de cozinhar e não é por isso que se tornou cozinheira. Aceita agora, com bonomia e compreensão. Mas Miguel também o é. Talvez por isso, aliás, a compreenda tão bem. Além disso, logisticamente falando, Miguel está em franca vantagem - como os médicos costumam dizer: os hospitais têm tantas camas…

Mas, podendo até qualquer petite chose acontecer, estão ambos certos que, de parte a parte, a substância do amor ao outro está reservada.

Desconfianças, aborrecimentos, ciúmes, é erosão que, de há muito, passou à história. Neste momento é sobretudo fruição, companheirismo e sexo.

Por isso, agora, com a pressão dos filhos que tanto gostavam de ir ao casamento dos pais, com a persistência de Miguel que tanto gostava de ser um homem casado, com o gosto que gostava de proporcionar aos seus próprios pais, Eva acabou por ceder.

A filha virá buscá-la, será a madrinha, irão juntas.

Miguel, como manda a tradição, não dormiu em casa nos últimos dias, está em casa do filho, sairão juntos para a cerimónia, o filho será o padrinho.

Eva está pois a pouco tempo de se tornar uma mulher casada.

E, no entanto, nesta última noite, Eva está inquieta. Desliza silenciosa pela casa vazia. Sem destino, sem tino, sem palavras, eis que esta mulher percorre os caminhos da sua casa e, sem saber porquê, se sente subitamente perdida.

A casa envolta em sombras e Eva avança, sem peso, pelos corredores, pelas salas, uma gata arisca que roça as paredes numa ansiedade desconhecida. E treme, toda ela treme e nem sabe se é frio, se é apenas esta estranha inquietação. 

Procura um livro sobre a obra de Paula Rego, procura uma certa imagem. Encontra-a e ali fica, imóvel, olhando.

Bride - Paula Rego (1994)

Uma expressão vazia no rosto indiferente de uma noiva. Um vestido branco, o brilho da seda, o véu também sedoso, e, no entanto, que vazio tão vazio à sua frente. A noiva olha Eva, interroga-a, uma noiva que já não é nova, como ela, Eva, já não o é. Imagina-se assim, virginal e ridícula, alguém que devia ter sonhos mas que já os não tem.

Abre, ao acaso, o último livro que trouxe para casa, e lê, em voz muito baixa não vá alguma sombra ouvi-la:

                            Muitas vezes me pergunto quando vem.
                            Não sei ao certo como será
                            nem como ou quem
                            anunciará
                            essa noite  essa luz   esse momento.
                            Chegará como chega o vento.


Eva tem vontade de chorar. De súbito uma solidão sem nome, um silêncio imenso que a esmaga. 

Vai até à varanda, debruça-se a ver o escuro lá ao fundo, o mar, a sombra das árvores, o grande espaço aberto, a imensa liberdade.



Já com pouca luz ainda consegue ler numa outra página, e é quase como se contasse um segredo ao ar frio que percorre o seu corpo:

                                    Eles não sabem do grande espaço aberto
                                    onde voam os patos e as narcejas
                                    nem procuram as sílabas perdidas
                                    que há muito outros cantaram e onde brilhavam
                                    as espadas   o sol    e a liberdade



Regressa lentamente ao interior do quarto, senta-se na cama.

Então o telemóvel toca. Não vê quem é, não quer falar com ninguém, não atende. Quer que a solidão mais absoluta a envolva, quer pensar. Mas não consegue.


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Relembro que se quiserem ler a história de Eva desde o início, poderão procurar nas etiquetas aí ao lado, mais para baixo, 'Eva - a mulher dos olhos verdes'.


Os poemas aqui apresentados chamam-se, respectivamente, 'Momento' e 'Liberdade', são de Manuel Alegre e pertencem ao último livro, 'Nada está escrito'.


A gravação da primeira música da Melody Gardot tem fraca qualidade mas foi a única versão que descobri disponível para o blogger e queria mesmo ter aqui esta canção.

Entretanto, é com todo o gosto que vos convido para o meu Ginjal e Lisboa hoje em dia de palavras em torno de um 'aquele que se perdeu' também de Manuel Alegre, hoje ao som de uma magnífica, magnífica Renée Fleming interpretando Berlioz.

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Tirando isso, por hoje só tenho a dizer-vos que vos desejo a todos uma bela terça feira e fiquem bem, já agora na companhia da sedutora Melody Gardot, com o recente The absence.

Melody Gardot - The absence


quarta-feira, abril 04, 2012

Eva anda arredia. Por isso falo-vos da Revista Ler de Abril e da entrevista de Carlos Vaz Marques a Hélia Correia (sobre a felicidade, a bênção da escrita, etc). Katie Melua e June Tabor acompanham, respectivamente, uma e outra


Música, por favor

Katie melua - Nine Million Bicycles


Eva anda arredia. Depois de dois dias de actividade intensa, reuniões sucedendo-se a um ritmo alucinante, gente a sair afogueada da sua sala de trabalho, telefonemas quase consecutivos, (ah o que Eva adora, adora mesmo, trabalhar assim, debaixo de stress, de andar a mil, de ter cinquenta coisas para fazer ao mesmo tempo!), eis que Eva deixa instruções para que cumpram todos os planeamentos enquanto ela não estiver. E, na prática, desapareceu.


Continua a atender telefonemas, telefona também a saber o andamento dos trabalhos mas não tem aparecido. A secretária diz não saber de nada, fala nuns dias de férias mas jura a pés juntos que pouco mais sabe que isto. 

Fala-se à boca pequena que alguma anda a tramar, correm rumores, contam-se segredos, insinuam-se nomes, histórias, aventuras, romances, desgostos, relatam-se grandes tormentas, grandes guerras. Mas a verdade é que ninguém sabe o que se passa.

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Assim sendo, passo adiante e prometo voltar mal saiba de alguma coisa.

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Revista Ler de Abril de 2012, Hélia Correia na capa, no meio de um bosque, estranho vestuário, curiosas luvas mas, no conjunto, uma fantástica harmonia: uma mulher-gato no meio das árvores, das pedras, uma mulher que respira palavras e que tem muito viva a sua consciência de cidadã.

Hélia Correia na Revista Ler: 'Estive quase a ser normal, imagine'

No entanto, logo na 1ª página, junto ao índice, um excerto da entrevista e um susto. Transcrevo a parte que me assustou: 'Todo o tempo em que tive de cama, ....'. 

Tive de cama? Tive do verbo tar? (angústia...)

Aflita, parto em busca do texto original para ver se o erro vem da origem ou se nasceu ali. Sossego então. O texto original reza assim: ' Todo o tempo em que tive de estar de cama,...'

Uff. Mero lapso, portanto. 

Contudo, mais à frente dou com outra (que agora já não descubro para vos dar testemunho - e não vou perder mais tempo à procura, a ver se não me deito de madrugada): 'hajam' (em que o haver era sinónimo de existir e, portanto, sem tempos no plural - ... não é Senhores Professores de Português? Não estou errada, pois não?). 

Espero que sejam apenas dois casos isolados e que se trate de insignificantes lapsos de revisão e não que a Ler esteja a aligeirar na garantia de cumprimento dos exigíveis padrões de qualidade.

Adiante. Ainda mal folheei a revista, ainda rescende àquele cheiro bom da tinta fresquinha.


Música, por favor
June Tabor - Finisterra


Vejamos então as palavras de Hélia Correia de onde foi extraído aquele excerto, e algumas outras:

Carlos Vaz Marques pergunta-lhe: Sente que vivemos tempos de escândalo?

Hélia responde: Sem dúvida. Mas normalmente eu tenho um mundo próprio. Não preciso deste. Tenho um mundo muito meu, muito cheio. São mesmo refúgios físicos, longe de Lisboa. E depois tenho os refúgios mentais. Posso até dizer-lhe uma coisa muito pessoal: quando estive doente as pessoas acharam que eu fui muito corajosa. Não fui nada corajosa. Estava era completamente distraída. Não vivi essa realidade. Todo o tempo em que tive de estar de cama, por exemplo, foi um tempo em que voltei a andar pela Grécia, a andar pela Irlanda, a andar pelos meus sítios, completamente alheia ao que se estava a passar. Está bem que é uma fuga mas não é uma fuga de negação do mundo. É uma fuga para os meus sítios, é uma fuga para onde estou bem. É escandaloso também dizer isto nos dias de hoje: uma pessoa não pode dizer que está bem. Não pode dizer, muito menos, que está muito bem, como eu lhe diria. Que estou muito bem, que sou muito feliz.

Pergunta Carlos Vaz Marques: Conseguindo pôr entre parênteses aquilo que considera ser o escândalo do tempo presente diria que é uma pessoa muito feliz?

Sou. Sou muito feliz com as minhas pessoas.

Então vamos fazer de conta que não disse.

Não posso dizê-lo. É ofensivo. É aí que eu digo: 'Parece de uma pessoa tontinha e intelectualmente debilitada'. Só uma pessoa intelectualmente debilitada é que pode dizer: 'Eu sou muito feliz'.

Mais à frente, pergunta Carlos Vaz Marques: O que espera então da escrita?

Nada. Não espero nada. Porque é que eu havia de esperar? Era uma ingratidão enorme. Eu fui - não gosto de dizer 'abençoada' porque soa muito a bênção - contemplada com uma dádiva de beleza, que é poder construir uma coisa com instrumentos que vêm até mim, que são as palavras. E eu sei muito bem o que é o contrário: o não ser capaz. Eu tentei aprender música e não fui capaz. Veio até mim isso e não só o facto de eu escrever mas o facto de a minha vida ter sido sempre enriquecida com literatura e com os escritores, os meus escritores, que estão vivos e é como se estivessem na minha casa hoje, estão no meu mundo. Como é que eu, depois de uma dádiva destas, poderia ainda esperar alguma coisa?

Lá mais a seguir, Carlos Vaz Marques pergunta-lhe: Nunca revê provas?

Raramente. Deste [A terceira miséria], revi. Como eram decassílabos, queria ter a certeza de que estava tudo correcto. Mesmo assim o livro foi feito tão à pressa, tão à pressa, escrito de um jacto, que tem umas omissões que precisam de uma errata. Eu tinha uma grande urgência em publicá-lo.

Porquê?

Telefonei para o editor a dizer: 'Francisco, despacha-te que a Grécia de um dia para o outro acaba.' Foi uma loucura. Por isso tem omissões que me afligem muito.

Que erros são?

No texto é só uma vírgula, que falta na página 35. E no fim, nas 'Dívidas confessadas', há duas omissões e um erro. Falta a referência a A Morte de Empédocles, do Holderlin, e a A Origem da Tragédia, do Nietzsche. Além de aparecer, erradamente, O Viajante das Sombras, quando o título correcto é o Viajante e a Sombra. Isto são coisas que fazem parte da minha vida, mas com a pressa fiz tudo de cor e saíu asneira. Sou muito precipitada e dá nisto.

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Assim é, pois, Hélia Correia, pessoa e escritora que admiro e de quem, anteriormente, já aqui vos falei. 

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A palavra de novo a quem nasceu abençoada, agora com um poema de A Terceira Miséria:

                                      Essa beleza que era também espanto
                                      pelo dom da palavra e pelo seu uso
                                      que erguia e abatia, levantava
                                      e abatia outra vez, deixando sempre
                                      um rasto extraordinário. Sim, a hora,
                                      dois séculos atrás, em que uma ausência
                                      e o seu grande silêncio cintilaram
                                      sobre a mão do poeta, em despedida.

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[Se estiverem para isso, gostaria de vos ver na minha outra casa, o Ginjal e Lisboa. Hoje temos uma árvore e um homem por trás e a poesia de João Miguel Henriques. A música, esta semana, como sabem, é de Mussorgsky e hoje temos uma bela sonata para piano a quatro mãos]

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E tenham, meus Caros, uma quarta feira muito boa. Que cada dia valha a pena, meus Amigos.

sexta-feira, março 30, 2012

Vítor Gaspar e o Orçamento Rectificativo; o Banco de Portugal e o agravamento da recessão; o autismo deste Governo face à evidência dos factos. É hora, meus amigos de Calling all Angels. E, para não falar mais disto, que me enerva, vou falar-vos de Eva, da sua entrevista e da respectiva sessão fotográfica.

Música, por favor
Jane Siberry - Calling all Angels


Os sinos tocam a rebate.

Notícia de quinta feira: a economia cai ainda mais aceleradamente do que o próprio Banco de Portugal tinha previsto. É a recessão a cavar uma cova mais funda. O BdP, a insuspeita entidade governada pelo insuspeito Carlos Costa,  revê em baixa as previsões. Claro. Quando se trabalha tão afanosamente no sentido da destruição do tecido económico e quando se retira tanto dinheiro da economia, o que se esperaria? Claro que  o consumo cai abruptamente e todo o edifício vai ruindo.

E a receita fiscal diminuiu. Apesar do pesado agravamento da carga fiscal, apesar de todos nós recebermos muito menos, a colecta é inferior. Claro. De que é que estavam à espera...?

Com tantas empresas a colapsarem ou a patinarem, é natural que os resultados (leia-se: ‘lucros’) caiam a pique (e o IRC, acompanha a queda, é claro). Com tanta gente desempregada ou a ganhar menos, é natural que o IRS também caia. Com tantas dificuldades, é natural que o consuma caia e, portanto, menos IVA. Era difícil prever isto? Eu acho que não. Eu acho que isto era mais do que óbvio, um óbvio do mais cristalino que há.

Quando a economia é atacada, todos os impostos que dela dependem, caem também. Aumentá-los numa altura de definhamento económico é pura parvoíce. O efeito é sempre contraproducente pois, ao agravar a carga fiscal, depaupera-se ainda mais a economia. Medidas destas aceleram os movimentos recessivos. Medidas destas nestas alturas põem a história a andar para trás, anulam o desenvolvimento atingido, dão cabo da vida de uma geração. São inaceitáveis.


Claro que há quem se fie na virgem e mesmo com a fera enraivecida a correr na sua direcção, se deixe estar quieto à espera que a virgem salte da azinheira para vir em seu socorro. Não haverá muita gente assim mas ainda há alguns.

Ou é isso ou, então, não é por parvoíce, mas sim, acções estudadas para que isto fique tão de pantanas que, quem queira, possa vir comprar tudo a preço da uva mijona. O tecido empresarial todo nas mãos de estrangeiros (e mais: de estados estrangeiros!)

É verdade que a dívida baixa, isso é verdade. E assistimos aos nossos fantásticos governantes a gabarem-se disso. Mas, de facto, é mesmo aquela coisa de deixar de gastar dinheiro a comprar ração para o cavalo – poupa-se é certo. A chatice é que o cavalo, ao fim de algum tempo, morre. Será isso pormenor?

Perante este lindo cenário, as consequências são as óbvias: os juros voltam a subir, o risco do País enfrentar a bancarrota volta a subir. E o BdP prevê que este ano o País vai perder mais cerca de 170.000 postos de trabalho.

Se me perguntarem se eu acho que Passos Coelho, Miguel Relvas e respectiva entourage já perceberam que estão a fazer asneira da grossa, posso confessar-vos que não estou certa disso. Acho, isso sim, que tudo isto é muita areia para a camioneta deles.

O mais que Passos Coelho consegue, seguindo certamente um conselho do gabinete de Imagem (onde lhe devem ter dito para se mostrar solidário com os sacrifícios dos pobrezinhos), é dizer o que disse no Congresso do PSD e passo a citar: ‘Como se costuma a dizer, isto está a sair-nos do lombo’. Gente erudita exprime-se assim.

Quanto a Miguel Relvas, não nos esqueçamos que se licenciou apenas há 4 anos e em Ciências Políticas e Relações Internacionais, coisa em que o dizem influente e exímio, mas, note-se, isso é matéria que se encontra a anos luz de números, de ciência exacta, de gestão económica. O negócio dele é outro. 

Isto, meus Caros, é muito preocupante. As pessoas estão a ficar sem dinheiro, há gente demais a ficar sem emprego, há empresas demais no limiar da sobrevivência, a economia afunda-se a uma velocidade crescente – e, no Governo, não há capacidade ou vontade de inverter caminho.

E cá estamos, ainda em Março, e já com um Orçamento Rectificativo que não apenas vem repor a nabice de se terem esquecido de orçamentar as despesas originadas pela absorção do fundo de pensões dos bancos, como também de se terem enganado a prever as receitas, e, também, de se terem enganado a prever as despesas. Enganaram-se redondamente. Nabice, nabice pura, incompetência primária. 

Riem-se de quê? Riem um do outro? - só se for isso...

Vítor Gaspar não sabe o que é gerir uma pasta de finanças (dizem que é jeitoso como estudioso nos bancos centrais mas isso não sei; o que sei é o que vejo e o que vejo é que, a fazer o que está a fazer agora, vem dando sucessivas mostras de que se engana vezes demais). Perigoso isto.

Mario Draghi, no BCE, nos últimos meses, fez aquilo que tinha que ser feito: injectou liquidez na economia europeia, emprestando dinheiro barato aos bancos. Fez isto para ver se consegue reanimar minimamente a economia. Contudo, cá, essas medidas não produzem efeito porque o País está ser governado por pessoas que não percebem estas questões elementares, que não conseguem estabelecer qualquer nexo causal, que continuam apostadas no estrangulamento económico.

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Se a prece de Calling all Angels, linda, já acabou, é agora vez de pormos esta a tocar
Maria Bethania - Teresinha, composição de Chico Buarque


Sinceramente, isto deixa-me apreensiva e desgostada e tira-me a vontade de brincar, de ficcionar.

Assim, nem tenho grande ânimo para vos contar o que se passou hoje com Eva. Dir-vos-ei apenas meia dúzia de coisas:

1.   Teve lugar uma entrevista para um jornal de referência sobre a operação da véspera (a aquisição de uma grande empresa). Por ser uma mulher interessante e dada a comportamentos assim 'a modos que' out of the box, desafiaram-na para uma sessão fotográfica um pouco diferente. Concordou. A coisa teve lugar no seu gabinete. Depois de uma noite bem dormida, Eva estava pronta para a guerra. O fotógrafo tinha-lhe dito que gostava de explorar o seu lado sexy até para evidenciar que uma mulher pode ser atraente, preservar esse lado feminino e sedutor e ser capaz de compatibilizar isso com a assertividade na condução nos negócios. Coisas assim despertam a curiosidade de Eva, desafiam-na, divertem-na. Em casa pensou nas roupas que haveria de vestir. Pensou num vestidinho simples, coisa singela - e pérolas. Bastam pérolas para criar todo um ambiente. Depois pensou que precisaria de música para se desinibir e logo lhe veio à ideia a Teresinha, a história da sua vida cantada pela Diva. Assim foi. Esteve com tanto à vontade que o fotógrafo, o jornalista e sua secretária estavam surpreendidos. 



     Numa das fotografias fez questão de estar sentada à secretária de modo a que se vissem alguns dos objectos que lá tem, especialmente uma certa moldura. Insistiu com o jornalista que gostaria que se visse essa fotografia pois, explicou, é um instantâneo de um momento de especial romantismo. O jornalista e o fotógrafo ficaram um pouco atrapalhados mas disseram que sim e nada perguntaram, até porque a fotografia é explícita.

2.    Na entrevista zurziu forte e feio neste governo. E defendeu o empreendedorismo, a boa gestão, uma estratégia de desenvolvimento, de conhecimento, de reforço de competências desde os bancos da escola, de reforço da formação profissional no seio das empresas. Explicou, e exemplificou para que ficasse bem claro, que o problema da competitividade do País não está, nem nunca esteve, na legislação laboral. Explicou que a motivação dos trabalhadores é fundamental, que a boa organização  dentro das empresas é fundamental, que uma liderança forte é fundamental, que trabalhar-se seguindo uma estratégia ambiciosa é fundamental.

3.     Perguntaram-lhe se são verdadeiros os rumores que correm de que está ligada à maçonaria. Eva disse que só respondia a questões que tivessem que ver com as empresas, com o contexto em que as empresas operam e com questões de ordem geral relacionadas com o país em que vive.

4.       Perguntaram-lhe se é verdade que apoia pessoalmente algumas causas humanitárias. Confirmou mas disse que não as publicita, que apenas divulga as causas que as suas empresas apoiam e que apenas o faz como incentivo a que muitas mais façam o mesmo e contou que são várias e contou como os trabalhadores das empresas estão envolvidos e solidários nas acções que levam a cabo. O empreendedorismo social e o voluntariado são causas que apoia com apaixonada convicção. 


No final da entrevista, Eva estava um pouco cansada. Tomara que as fotografias não ficassem disparatas e deslocadas no artigo. Tomara que as mensagens que quis passar não ficassem submersas no meio de observações relativas ao vestido, ao costureiro ou a imbecilidades do género.

Depois de todos terem saído, mudou de roupa e ligou a cada um dos filhos. Estavam bem e o coração de Eva fica instantaneamente doce, Eva sossega depois de falar com eles. 


Depois fez outra chamada. 'Correu bem' respondeu logo pois, do lado de lá, alguém lhe deve ter feito a pergunta. Alguém que queria saber pormenores. Eva contou o que tinha feito relativamente à fotografia na moldura. Riram. Ela imaginava a reacção dos parvalhões que a tinham mandado seguir ao verem a fotografia clandestina ali exibida perante o mundo. Mas Eva estava exausta, mesmo a precisar de descansar. Pediu-lhe então, com voz doce: 'Sabes? Está na minha horinha zen. Podes tratar de mim...?' e sorria carente, a precisar de mino. Do lado de lá alguém devia perguntar qual o tratamento pretendido. Eva ria-se: 'Então, tu sabes... Quando estou assim, uma litania'.


Eva, então, pousou o telefone, deixou-o em alta voz em cima da secretária e, enlevada, enternecida, absorta, ouviu a tão amada voz:


                                  O teu rosto inclinado pelo vento;
                                  a feroz brancura dos teus dentes;
                                  as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
                                  e contudo sombrias, e contudo transparentes;


                                  o triunfo cruel das tuas pernas,
                                  colunas em repouso se anoitece;
                                  o peito raso, claro, feito de água;
                                  a boca sossegada onde apetece


                                  navegar ou cantar, ou simplesmente ser
                                  a cor de um fruto, o peso de uma flor;
                                  as palavras mordendo a solidão,
                                  atravessadas de alegria e de terror;


                                  são a grande razão, a única razão.


Eva, fecha então os olhos, apaziguada, cansada da guerra. A poesia produz nela este efeito. 


Sobretudo a poesia dita por Miguel fá-la sempre sentir uma mulher muito amada e isso, mais que qualquer outra coisa, é o que lhe importa. 'Todas as glórias do mundo não valem uma noite de amor', referiu uma vez Eugénio de Andrade. Eva concorda, é coisa que nunca esquece, é quase o lema da sua vida.


Damien Rice - The Blower's Daughter
da banda sonora de Closer

:::   §   :::

A poesia é Litania de Eugénio de Andrade.

Se quiserem respirar luminosas partículas, convido-vos a clicarem aqui para irem até às minhas palavras que voam em volta de uma fotografia que fiz há bocado e de uma certa Pele de Carmim de Ana Marques Gastão. Mendelssohn hoje é magnífico. É no meu blogue Ginjal, claro.

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E tenham, Caríssimos, uma belíssima sexta feira!