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quarta-feira, fevereiro 24, 2021

Entre um enorme desafio e o raio de um sonho demasiado real

 

Depois de uma tareia de várias reuniões de seguida e depois de ser amargamente contrariada pelo meu marido que não quer arriscar tirar um big vaso do terraço pois acha que é impossível pô-lo a descer a escada, chego aqui e não consigo pensar senão em duas coisas:

1 - Como vigiar de perto uma criatura que está a revelar-se uma encrenca e que fez arrastar uma reunião por mais do que uma hora, sobrepondo-se às seguintes e estragando todo o programa de festas

2 - Como conseguir tirar dali o vaso. Um desafio e tanto.

Sobre o tópico número um hesito entre o desprezo e a vingança.  Mas pior mesmo é o tópico número dois. Já pensei arranjar umas tábuas e pôr o vaso a deslizar devagarinho escada abaixo. O meu marido diz que, grande e pesado como é, o que vou conseguir é que se parta. E recusa-se a tentar.

A questão é que a planta, no verão, secou. Parecia morta. Entretanto, começou a renascer. Umas little folhinhas verdes despontando. Mas primeiro que se cubra de verde vai demorar. Mas o aspecto geral não é maravilhoso, quem olhe com desatenção julgará ser um arbusto quase seco. Já tenho, ali no terraço, outras flores e preferia ter ali vasos de outro género. Já fui à horta, andei pelos cantos a ver se desencantava umas tábuas mas nada. Não sei como resolver isto. É o chamado desafio do caraças.

Acontece que, ainda por cima,  esta noite dormi pouco. 

Acordei lá para as cinco e tal da manhã com um pesadelo e, de tal forma foi que, mesmo acordada parecia que estava a viver a situação. Por mais que pensasse que era sonho, não realidade, não parava de pensar nisso. E, ainda agora, ao pensar nisto, parece que estou a reviver uma situação efectivamente sucedida.

Foi assim: um amigo meu tinha vindo cá visitar-nos. Como combinado, tinha trazido a mulher mas também dois outros amigos nossos. Tinha-me dito, em segredo, à chegada: desculpe lá mas já não sabia o que fazer com estes dois. Um é um grande amigo que ficou viúvo há um ano, uma morte prematura que me abalou muito. O outro é também um amigo que vive sozinho, divorciado. E então o que tinha acontecido é que tudo bem, almoço, conversa, tudo na boa, tranquilo. Depois tinha vindo a hora do lanche e tudo tranquilo. Mas, então, o meu amigo divorciado, que é vidrado em livros, tinha resolvido ir ver as estantes. E, com vagar, andava a vê-los um por um. O outro tinha pegado numa cadeira e estava instalado debaixo de uma árvore a beber uísque, olhando o jardim na maior contemplação. A mulher do meu amigo continuava a conversar comigo na maior animação. Tudo isto é real pois qualquer deles é justamente assim.

Só que o meu marido não é dado a horas seguidas em suspenso à espera que a conversa de um acabe, que os copos de outro também. Tenho muita ideia de outros tempos em que um dos que lá costumava ir a casa com a mulher e que bebia uns atrás de outros, depois ia apanhar fresco para a janela, depois dava-lhe para a risota, depois para o sentimento e contava coisas que o tinham magoado e chorava, chorava, depois ia para a janela fumar, depois regressava à conversa. A mulher, às tantas, encostava-se para trás e deixava-se dormir. O meu marido, podre de impaciência, deitava-se no sofá, como se estivesse sozinho, e punha-se a ver televisão. E eu ficava, sozinha, a fazer sala. Saíam de lá de madrugada. O meu marido, que entretanto, já tinha adormecido, acordava furioso comigo pois achava que se eu não desse troco aquilo não durava até àquelas horas. Mas ia fazer o quê? Punha-me também a ver televisão, feita malcriada? Não sou capaz.

E, então, no meu sonho, ele já estava assim, tal e qual, que não se aguentava. E eu furiosa com ele, como medo que os outros percebessem o estado de espírito dele. E ele: 'Mas ele vai vai ver os livros, um por um, até ao último?!' e 'Mas ele vai ficar ali debaixo da árvore até que horas?'. O meu outro amigo dizia-me, em segredo: 'Está a ver porque é que eu já não os aguentava? Percebe porque tive que trazê-los?'. 

E o curioso é que isto é mesmo tal e qual.

E o meu marido, furibundo, dizia-me: 'Vou para o carro e fico lá à espera'. E eu furiosa com ele: 'Porta-te como deve ser. Estás em casa, com que pretexto te vais enfiar no carro? Estás parvo!'. E ele a ficar cada vez mais impaciente, pronto a armar barraca. 

E aí acordei, atormentada. 

Há bocado, ao telefone com a minha filha, ela bocejava cheia de sono, que não tinha dormido bem. E eu também cheia de sono, contei-lhe o sonho. E ela disse: 'Tal e qual. Podia ter mesmo acontecido isso, estou mesmo a ver o pai assim...'. 

Quando cheguei à sala contei-lhe o que a filha tinha dito. Reagiu: 'Qualquer coisa vos serve de pretexto para dizerem mal de mim'.

Mas a verdade é que volta e meia parece que vem o incómodo que senti com a reacção dele, capaz de me envergonhar à frente dos meus amigos. Claro que eu também estava apreensiva a pensar que se calhar tinha que ir descongelar qualquer coisa para lhes dar de jantar pois não lhes via jeito de quererem desandar. Mas pior era ver o meu marido a ponto de se tornar inconveniente. Gosto de ser hospitaleira.

Uma das vezes em que foram uns poucos casais almoçar in heaven quase aconteceu uma coisa assim: foram para o almoço e saíram nem sei já a que lindas horas da noite. Lembro-me em especial de um episódio disparatado. Um deles já estava mais do que bebido e, então, começou a contar ao meu marido que se divertiam todos muito com as zangas homéricas que eu tinha com um outro que não estava ali. Contou peripécias, imitava-me a mim e imitava o outro, ria, ria. E, às tantas, rindo a bom rir, disse: 'Um tal ódio de parte a parte que estou sempre à espera de os ver aos beijos na boca'. O meu marido deve ter engolido em seco. Zanguei-me: 'Olhe lá! Que conversa mais parva é essa?' E ele a rir a bom rir, a mulher a dar-lhe palmadas no braço, que tivesse tento. Nesse dia contou também como, pouco tempo antes, tinha acabado preso numa esquadra de uma vila alentejana e lá tinha passado a noite até que um amigo lá foi tirá-lo, trazendo-o para Lisboa pois, obviamente, a carta tinha sido apreendida.  Contou as peripécias com todos os pormenores e nem queríamos acreditar. O que nos rimos com isso, incrédulos. A mulher dizia: 'Só vergonhas. Já o avisei: mais outra e ninguém o vai buscar. Nem sequer visitar'. Ele ria.

Mas o meu marido, nessas circunstâncias, já não se aguenta sentado, começa a andar fora e dentro, impaciente, com vontade de ver a malta toda pelas costas.

O pior de tudo foi quando irmãos e primos e respectivos filhos, uma vez, tendo também ido para almoço, acabaram ficando. Não foi a única vez, claro, mas uma vez ficaram o fim de semana todo, eram tantos que tiveram que acampar pelo chão, por onde havia um palmo livre. E nós dois entrávamos de férias na segunda feira. E então alguns deles, sentindo-se à vontade, acabaram ficando a semana toda. Aí até eu já estava doida. Iam à lota de uma cidade não exactamente ao lado e regressavam com caixas de sardinhas e outros peixes, faziam churrascos, íamos ao supermercado e trazíamos sacadas de entrecosto e bifes e desaparecia tudo. Sacos e sacos de carvão e desaparecia tudo. Grades de cerveja e desaparecia todo. E nós dois só pensávamos que tínhamos que ter um plano B para o caso de lá quererem ficar mais uma semana. Mas não. Felizmente na segunda-feira da segunda semana resolveram levantar arraiais e zarparam.

E as impaciências que eu via ao meu marido e as fúrias que tentava controlar mas que receava que, a qualquer instante, explodissem traumatizaram-me tanto que esta noite tive este sonho tão vívido como se estivesse a reviver outra vez aquelas situações.

Mas já chega de sonho, já me basta não ter sido capaz de voltar a adormecer. A ver o dia a ficar dia e eu às voltas na cama. E, mais grave, chateada com o meu marido. O facto de tudo não ter passado de um pesadelo é mero pormenor.

E depois, com reuniões todo o santo dia, não tenho assunto. 

Aconteceu o quê? Andam todos a querer que o Costa desconfine para a seguir irem crucificá-lo porque desconfinou? Não há pachorra. Ou a valente da ministra ainda consegue aguentar-se de olhos abertos e ainda consegue paciência para aturar tanta gente besta? Coitada. Admiro-a. Mil estátuas que lhe ergam e mil ordens e medalhas com que a agraciem será pouco. 

Por isso, depois de ter escolhido pinturas de Pierre Bonnard para aqui alumiarem estas minhas palavras fajutas ao som do sonzinho bom da Norah Jones, com vossa licença vou agora ver casas bonitas, ouvir gente que não fala de vacinas nem de gente que cai escadas abaixo nem de desgraças nem de tretas ou desgostos.

Por exemplo, 

73 Questions with Gisele Bündchen (ft. Tom Brady) | Vogue


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E tenham um dia feliz

quinta-feira, setembro 17, 2020

Cativar ou não cativar -- eis a questão





O meu marido disse: esta casa começa a estar desarrumada. Eu também já tinha dado por isso. E tinha-o sentido com gosto. Quando vieram os móveis e se arrumaram nos sítios certos, quando a minha filha escolheu peças e as dispôs onde lhe pareceram mais em harmonia com o espaço, foi como se a casa tivesse nascido ali, para nós. Era uma casa de revista, nada fora do sítio, ainda não era um ser vivo.

Agora que já aqui estamos há cerca de um mês, já aqui tenho livros ao meu lado, no sofá, já há almofadas descaídas, já há um computador fora do sítio. Hoje, apressada, entre reuniões, a meio da manhã, a minha filha chegou com os meninos. A partir desta quinta-feira deixa de ter esta mobilidade pelo que veio aproveitar o dia. Eles, de imediato vieram para esta salinha pela qual parecem ter especial predilecção. A bela e espessa coberta branca de algodão que cobre o sofá já aqui tem uma mancha nas costas, marca de um pé que, antes de aqui aterrar, andou descalço na terra. Vi-os aqui sentados, um em cima, outro num canto. De tarde chegou o meu filho e aí, as cinco crianças todas felizes, foi a animação e a graça de sempre. Têm espaço e largueza verde e, ao mesmo tempo, recatada para jogarem às escondidas. Tirei-lhes umas fotografias, o bebé à frente, dizendo: 'bora, malta'. 

Mas, depois de se irem todos, ao reentrar em casa, reparei em copos por aqui e por ali, cadeiras desarrumadas, as almofadas da sala todas desalinhadas. Tive vontade de rir. Esta é cada vez mais a minha casa. 

Não me lembro se cheguei a falar-vos de uma coisa. Havia um pormenor que me trazia apoquentada: não sabia onde arrumar os meus colares. Na outra casa, tinha 'ocupado' o ex-quarto da minha filha e, sem regras ou limites de qualquer outra espécie, fui espraiando por lá todas as minhas coquetteries. Aqui a casa tem outra tipologia, outra topologia. Mas já resolvi também mais esse pepino. Já estão organizados: as pérolas, os brancos, os claros, os turquesas, os verdes. Os dourados, os neutros. Coloquei-os num recanto que há por detrás da porta da salinha de língua portuguesa, em cujo armário embutido (na parede livre) também já tinha arrumado écharpes, carteiras, adereços diversos -- enfim, os meus ex-bens de primeira necessidade. De vez em quando vou espreitar os meus livros, tão organizados, com espaço para se reproduzirem. Os meus colares, tão bem tratados. Hoje, um dos meninos, nessa salinha, olhou em volta e vi como estava admirado. Queria saber porque estavam uns ali e os outros noutro sítio. Expliquei. Ele ouviu com atenção. E eu gostei de vê-lo a prestar atenção a estas minhas coisas. Depois viu uma fita métrica, das metálicas. Pegou logo nela e foi fazer medições, disse que gostava mesmo de medir coisas. O irmão esteve a filmá-lo, depois editou o filme, fez montagens, inseriu efeitos especiais. Muito bom. Quando o elogiei, disse que ainda ia pensar se em vez de cientista investigador não vai ser realizador. Disse-lhe que talvez possa ser as duas coisas. Pensei que é preciso ter cuidado com o que se diz a um miúdo que acabou de fazer doze anos. Muitas vezes penso no que serão em adultos. Ainda não dá para perceber. Tomara que sejam pessoas motivadas, que venham a realizar-se, que sejam felizes. E que se mantenham unidos, amigos, apoio uns dos outros pela vida toda.

Tirando isto, só posso acrescentar que agora só tenho que arranjar energia para ir à outra casa fazer as escolhas definitivas, deitar fora aquilo que já não faz sentido vir para cá, embalar o que ainda tem ou pode vir a ter préstimo, trazer o resto dos armários que irão para a cave, depois arrumar o que, na cave, ainda está em caixas e sacos.

Sobre o dia de hoje, posso ainda contar que a noite passada foi noite de são joão. A meio da noite disparou o alarme. Como a casa é grande, de noite deixamo-la em alarme parcial. E disparou, sirenes por todo o lado. Um susto do caraças. Passado um bocado, de novo. Uma sensação tramada. Andámos à caça, vimos as imagens. E percebemos que vamos ter que fazer alguns ajustes ao sistema de segurança. Já cá vêm, logo de manhã, para tratar disso. Claro que pensei naquilo do cão. Sim, um cão seria uma boa ajuda. Não que um cão só se justifique pelo aspecto instrumental. Claro que não. Há o lado do afecto e aí eu rapidamente me torno tão cão como o cão se torna gente, amigos, iguais. Mas guardar-nos-ia, faria barulho se sentisse risco. Mas, enfim, nada na vida vem sem reverso e ainda não está na altura de darmos esse passo.

Também temos que pensar na trabalheira de mudarmos a nossa morada em tudo o que é coisa. Não sei como encaixaremos isso na nossa vida sempre tão cheia de afazeres. Não é só o tema de irmos buscar o correio pois isso já sei que pode ser desviado: é mesmo a necessidade de regularizar o que deve ser regularizado.

E outra coisa -- e esta eu nem devia contar aqui pois não sei se estou a fazer uma coisa acertada. Comecei a ir deixar os restos de comida lá ao fundo, onde vi a raposa. O meu marido passa-se. Explico que quero tornar-me amiga da raposa. Não se comove, diz que atraio é ratos e cobras. Digo que não, que é longe da casa, que quero é atrair a raposa. Cativá-la. Cativar um animal, tal como cativar uma pessoa, é coisa boa, misteriosa, tão boa que quase mágica. Vou pé ante pé, receando assustar-me, receando não saber como reagir se a vir. Às vezes isso acontece, a gente desejar muito uma coisa e, ao mesmo tempo, ter medo que aconteça.

Mas, enfim, é uma aprendizagem. Estou a aprender esta casa.

E agora vou descansar. Os dias, por mais que eu faça, alongam-se sempre noite adentro, um nonsense que não sei contrariar.


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Pinturas de Pierre Bonnard na companhia de Patrick Watson com Slip into yor skin

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E um dia feliz. Boa sorte. E saúde.

sábado, junho 11, 2011

Pedro Mexia e Pierre Bonnard, finalmente a felicidade

Gostei de ler a última crónica de Pedro Mexia no suplemento Actual do Expresso.

Finalmente um texto feliz, sobre um tema feliz, em que ele reconhece, ao ver a pintura de Pierre Bonnard, que a felicidade (ainda que "uma visão inquieta da felicidade") está nas coisas simples. Diz Pedro Mexia que Bonnard "acredita mais na paixão do visível do que no cepticismo intelectual".


Na intensidade do laranja e do violeta (conjugação cromática que, pessoalmente muito aprecio, como é bom de ver), na profusão de flores, de frutos, Pedro Mexia reconhece na obra de Bonnard que o que importa não é apenas o momento, é também a recordação do momento, a recriação emotiva do momento. E fala das mulheres de Bonnard sem lhes descobrir fatalidades, frustrações: não, fala-nos de mulheres sensuais, íntimas, recatadas, vibrantes, felizes. 


Pedro Mexia, o penitente pessimista, reconhece nesta sua bela crónica que a "felicidade não é apenas euforia", "a felicidade contenta-se com pouco porque esse pouco é muito", "Que acredita naquilo que vê porque vê aquilo em que acredita". Os pequenos ingredientes de que se faz a felicidade.

E, ao ler um texto assim, tão bem escrito como lhe é apanágio, mas em que o tema não é a desilusão, o desencanto, a tristeza plena de melancolia, olho para a sua fotografia e até o sorriso me parece quase feliz.


Acabei de ler essa crónica a sorrir: sabe bem ler textos felizes, sabe bem ler sobre explosões cromáticas, sobre composições perfeitas, sobre harmonia de enquadramentos, sobre a natureza, sobre flores, sobre frutos, sobre mulheres junto a banheiras, sobre homens que olham essas mulheres.

Salvé Pedro Mexia!