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quinta-feira, julho 15, 2021

Um clube de leitura moderado por aquela de quem já disseram ser uma open leg e que, com um bocado de sorte, não tem um broken heart

 




Estava a sonhar um sonho bom quando, de manhã, o telefone tocou. Estava a sonhar que uma amiga, que, no sonho, era igual à Linda Vater, estava a combinar comigo irmos a um clube de leitura. Dizia-me que era numa casa elegante, onde se conhecem sempre pessoas interessantes. Eu queria saber onde era e ela estava a explicar-me que era na Avenida da Liberdade, uma casa remodelada, com muita pinta. 'E eles não vão'?, queria eu saber sobre os nossos maridos. E ela dizia que, se o meu gostasse de clubes de leitura, que fosse, que o dela não apreciava, não ia. E eu estava na dúvida se um clube de leitura não seria uma valente seca também para mim. Mas, ao mesmo tempo, estava curiosa.

Então tocou o telefone, interrompeu o sonho, acordou-me.


Fiquei o dia todo a pensar nisto. Tenho pensado: e se eu convidasse amigos para virem aqui a casa falarem sobre livros? Não agora mas quando acabar esta cegada da pandemia. Cada amigo poderia trazer outro amigo, um de cada vez para não haver enchentes. Não seria engraçado?
Tenho duas amigas que frequentam essas coisas dos encontros de leitura. Não sei se lêem em voz alta ou se discutem livros. Convidaram-me várias vezes. Agora que escrevo, tenho ideia que combinam ler um livro e vão para lá mostrar serviço. Nunca fui e nem consegui dizer-lhes a verdadeira razão. Digo aqui: acho que a maior parte das pessoas que falam sobre livros só dizem vulgaridades. Um bom livro não tem muito que se diga sobre ele, pelo menos não assim, em público, sem pudor.
Mas, ao mesmo tempo, se eu convidasse amigos que não têm a mania de se armar ao pingarelho, talvez a gente se juntasse aqui e talvez algum, em meia dúzia de palavras, dissesse o que jamais eu esquecesse  umas palavras tão insólitas que me ficassem gravadas na memória. Talvez até ficasse com vontade de ir ler ou reler o livro.


Ou, então, juntávamo-nos uns seis ou sete para falar, por exemplo, do Murphy do Beckett. E o tempo passava e ninguém dizia palavra que fosse sobre o livro. E, de repente, um desatava a rir e todos desatavam a rir, uma gargalhada pegada. E estaríamos a rir das maluquices do Murphy.

A seguir, eu servia sumo de abacaxi com lima, pedras de gelo e umas folhas de manjericão. E não se falava mais no assunto.

Bem.


O dia foi cheio, a começar cedo. Tinha a agenda aliviada. Numa de me poupar, agendo muito menos reuniões. Recebi mais um dos relatórios médicos. Estava nervosa quando abri. Já vou com medo. Parece que tenho medo de descobrir que me aconteceu mais alguma. Mas parece que não é mau de todo. Confirma-se a sequela no coração, pois claro, e li umas frases que me assustaram. Fui ao google e vi que aquilo aparece em quem teve enfartes ou que está sujeito a stress. Pensei logo que tenho que evitar a todo o custo sujeitar-me a reuniões em contínuo. Mas é raro o dia em que não me pedem uma ou duas ou três reuniões.

Claro que poderia dizer que não dá, que tenho outros compromissos. Mas não consigo. 

Tive um colega, um bom amigo, inteligente e divertido, que uma vez me disse que eu tinha um grande problema. E acrescentou que não podia dizer qual era porque ia soar deselegante. Eu insisti e ele disse que teria que usar o inglês para não soar tão vulgar: 'Você é uma open-leg'. Desatei a rir. Quando alguém me pedia ajuda ou me pedia que resolvesse problemas alheios eu não conseguia dizer que não. Ora, como é sabido, os homens são muito tribais. Se o pedido vinha dos supostos adversários, o meu amigo achava que eu devia marcar posição, mandá-los à fava. E eu, pelo contrário, arranjava sempre maneira de acorrer.

Daí em diante, se estávamos em reuniões em que havia contenda, se eu tentava resolver os problemas de toda a gente, discretamente ele mostrava-me, meio às escondidas, o indicador e o médio afastados ao mesmo tempo que abanava a cabeça em sinal de reprovação, como que a fazer o sinal de vitória mas ao mesmo tempo sob censura. Mas não era sinal de vitória coisa nenhuma. Significava apenas que ele achava que eu estava, uma vez mais, a 'abrir as pernas' -- e tinha que me esforçar para não me desatar a rir.

É mais um dos meus problemas congénitos. Nada a fazer.


A meio da manhã veio um telefonema diferente. Estava a ouvir com alguma desatenção pois pensava que que a intenção era pedir-me conselho sobre quem deveria participar num evento que, enquanto ouvia, me estava a parecer interessante. Afinal a conversa deu uma volta e o intuito era convidar-me para ser eu a oradora especialista no tema. Achei graça, disse que sim. Que não era preciso preparar-me, só ser eu, disse-me ele. Fiquei admirada. Claro que não vou preparar-me. Nem saberia como. Espero sair-me bem.  Espero não dizer banalidades. Mais tarde haverei de contar.

A tarde esteve especialmente amena. Depois do trabalho vim cá para fora. A minha filha e os meninos estavam cá. Estão de férias. Depois da praia vieram cá ter. Estava-se muito bem. Uma tranquilidade imensa, uma luz dourada, os pássaros cantando na maior alegria. Fico sem fazer nada, apenas olhando, ouvindo, conversando, respirando. O meu marido chegou, entretanto, e nem dei por ele. Depois veio para o jardim fazer uma coisa e pediu ajuda a um dos meninos.

Esse menino depois pediu-me uma massagem. Sentei-me numa cadeira e ele numa cadeira à minha frente, abraçado às costas da sua cadeira. Depois até foi buscar uma almofada, para ficar mais confortável. Estava em tronco nu. Tamborilo os dedos nas suas costas, na cabeça. Fica zen, tempos sem fim. Até pensámos que tinha adormecido. Mas não, está apenas tranquilo, feliz da vida.


Quando estavam quase a ir-se embora, esse menino, em cima da árvore grande, chamou-nos a atenção para um ovinho caído no chão. 

Quando íamos ver de perto, ele avisou-nos que não fossemos por ali. Olhei e as folhas que estavam caídas no chão pareciam-me lustrosas. Ele voltou a avisar que não pisássemos as folhas. 'Fiz chichi aqui'. Não estavam lustrosas, estavam eram molhadas. 

Às vezes, à noite, ocorre-me que devem fazer pouco chichi pois raramente os vejo virem à casa de banho. Afinal é isto: vão atrás de uma árvore e lá vai disto. Boys being boys.

Cheguei muito tarde à sala. Hoje não vimos Netflix. Ainda assim, fui espreitar as coreanas. Não sei. Não engraço com séries ou filmes cuja língua não percebo. Parece-me tudo muito distante da minha matriz cultural. Não sei... não quero dizer que não só por ter dado uma espreitadela. Mas vou já dizendo que não me senti atraída. E eu sou de coup de foudre. Se a coisa não se dá, nem vale a pena ter esperança. Mas, enfim, as pessoas mudam e eu, apesar de ser mais bicho do que pessoa, na volta também mudo. E, de resto, consta que estou mais velha e, por isso, pode ser que me deixe de coisas.

E acho que é isto.


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Pinturas de Paul Gauguin que obviamente não têm nada a ver com o texto 
e, claro está, muito menos com Comfortably Numb com David Gilmour e Benedict Cumberbatch 

E o título do post é o que é
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Dancemos


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Desejo-vos uma boa quinta-feira 

sexta-feira, agosto 26, 2016

Paris, mon amour



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Digo que não gosto de Paris no verão mas estou aqui e só me dá para me lembrar dos seus lugares. Não dos lugares turísticos mas dos jardins, ruas e pracinhas, das esplanadas, das pessoas diferentes com que nos cruzamos, da vista da belíssima cidade a partir de alguns telhados, dos passeios pelos boulevards, das bancas de livros e estampas na beira do rio, das livrarias.

E agora estou a lembrar-me de uma coisa que não sei se já aqui contei. Éramos dois casais e andávamos quase sempre juntos mas um dia fomos cada casal para seu lado, acho que eles iam visitar algum amigo num arredor qualquer. Encontrámo-nos à noite e ele vinha com um blusão de pele novo, giríssimo. Nós admirados, não eram o género de pessoas que fossem às compras de roupa, muito menos ele. Mas estavam pouco convencidos. Então o que tinha sido? Não me lembro já bem de todos os pormenores, tenho ideia que, no comboio, tinha entrado um fulano com um malão. Então o fulano, que tenho ideia que era italiano, tinha dito que tinha estado a expor artigos de pele numa passagem de modelos ou exposição, não me lembro bem, e que tinham sobrado umas peças e que não lhe dava jeito ter que expedir aquilo por avião e que se conseguisse vender tudo, melhor. E que, então, tinha proposto vender um blusão por tuta e meia, não me lembro se uns 20 ou 25 euros. E que eles acharam aquilo muito suspeito e que o fulano ainda tinha feito um desconto. E, a modos que contrariados e desconfiados, ficaram com o blusão.

Ora o blusão era um espanto, bom mesmo, uma boa pele, um bom forro, um bom design. Chegaram ao hotel, reviraram o blusão, apalparam, sacudiram, pensando que tinha droga escondida, qualquer treta. Nada. Nem sabiam se o ele o havia de vestir, pois mais do que certo era material roubado e ainda eram apanhados

Mas então ele lá se afoitou e lá o vestiu. Um espectáculo de blusão. Ainda me zanguei por ele não ter trazido também para nós. Eu, que acho que desencanto pechinchas por onde passo, nunca consegui coisa assim.

Mas, pronto, isto foi uma derivação.

Estou aqui na sala, a escrever deitada no sofá, e a olhar para a estante baixa, funda e comprida, onde tenho livros e tralha e, por cima, a televisão e mil molduras.

Uma vez, o mais pequeno abriu a estante e começou de lá a tirar as figurinhas do presépio, os anjinhos, as caixinhas de porcelana, a caixinha com a bússula, a caixinha de música e outras coisas do género. E então, apressadamente, o mais crescido puxou-o por um braço e disse: 'Não mexas no museu da Tá!' e eu achei um piadão porque vi que eles olham essas minhas pequenas preciosidades como objectos de museu. Mas uma das peças trouxe-a eu de lá, há muitos anos, eram os meus filhos muito pequenos, ainda me lembro do meu marido andar com o meu filho às cavalitas: é um bule muito bonito, estou a olhar para ele, tem umas cores suavíssimas, e tem forma de elefante (se não estivesse cheia de preguiça, ia fotografá-lo para o mostrar). Nessa vez trouxe também uns copinhos pequeninos de vidro pintado à mão, com flores douradas e cor-de-rosa velho. Tinha muito medo que se partisse aquilo no avião, tive mil cuidados, e o meu marido sem querer saber, achava absurdo que eu trouxesse aquilo, se se partisse acho que ele até acharia que era bem feito para eu não ter ideias daquelas. Mas chegou tudo intacto. E não sei como, com mudança de casa pelo meio, com tanta miudagem sempre cá em casa, ainda resiste tudo. Nunca os usei, sempre os mantive a bom recato, porque são umas peças mesmo bonitas. Olho para elas e lembro-me de Paris.


E nessa vez, em Montmartre, os miúdos posaram para serem retratados a carvão. Mesmo bonitos. Quando lá voltámos, já mais crescidinhos, no mesmo sítio, posaram para uma caricatura. As mesmas feições, engraçados. Mas cansavam-se, muito museu, muita caminhada. No entanto, divertiam-se. 

Também acho que já contei. Uma vez fomos jantar para a zona Des Halles, íamos à procura de um certo restaurante. Mas os miúdos estavam estafados e o meu marido impaciente, quando chega a uma rua com restaurantes, por vontade dele entra no primeiro - e, então, vimos um com uma decoração muito bonita, em tons de violeta e preto, com uns castiçais entre o design e o romântico, com umas flores altas muito bonitas. Pronto, ficamos é já aqui.


Pedimos - sempre aquela festa, os miúdos a quererem experimentar tudo - e nem reparámos em nada. Até que, instalados, os amouse-bouche já a sossegar a impaciência, começámos a ver o que se passava à nossa volta. Só homens, alguns muito in love, de mão dada ou aos beijos na boca, outros a darem palmadas no rabo dos empregados, um a beijar na boca um empregado. Nós ali os quatro completamente deslocados. Os miúdos parvos com aquilo, nunca tinham visto por cá nada assim. Depois chegou um todo maquilhado, grandes pestanas, umas calças completamente justas e todo provocante e os outros todos a meterem-se com ele. Os miúdos faziam sinais um para o outro. O meu marido furioso connosco, a não querer que olhássemos ou ríssemos, a dizer que ainda arranjavamos chatice. 

Quando cheguei ao hotel, ao ver os folhetos turísticos, vi que aquele restaurante era um dos mais carismáticos do roteiro gay. Estava explicado.

E a bailarina enorme, completamente gorda, toda Toulouse-Lautrec? De tutu, tules cor de rosa, em pontas, a circular dançando nos Champs Elysées? Ainda hoje a minha filha fala nela.

E quando fomos os dois, romanticamente, em Wagon-Lit? Que viagem tão linda. Gostei tanto.

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E não vos maço mais com estas recordações, ainda por cima em modo repetex. Isto é falta de férias. Tenho é que lá ir um dia destes.

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E, para quem não conheça, um vídeo divulgado esta quinta-feira, muito bonito, com Paris num pas de deux com Victoria Dauberville, uma bailarina dos Dot Move.

Transcrevo parte da apresentação:

C’est l’histoire d’une danseuse seule face à son destin, en proie au doute mais déterminée à réaliser son rêve coûte que coûte : danser à l’Opéra de Paris. 

Pour illustrer ce conte moderne, DOT MOVE a relevé le pari de rendre Paris complètement désert pour en faire un terrain de jeu idéal d'une danseuse classique.

Le film est illustré par « Rêve d'Opéra », extrait du conte musical les « Souliers Rouges » écrit par Fabrice Aboulker et Marc Lavoine

RÊVE D'OPÉRA




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Lá em cima era Jacques Brel interpretando Les prénoms de Paris

As imagens mostram pinturas no museu de que mais gosto e que visito de cada vez que estou em Paris: o Musée d'Orsay.

Os autores são, respectivamente: Jean-Auguste Dominique Ingres, Paul Gauguin, Claude Monet, Auguste Renoir, Toulouse-Lautrec, Gustave Courbet e, finalmente, os jovens gregos são de Jean-Léon Gérôme, 
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quinta-feira, janeiro 07, 2016

A vida multiplicada e brilhante, em que é pleno e perfeito cada instante. Agora e na hora da minha morte.





Cansa-me o que é mais do mesmo. Pelo contrário, atrai-me a diferença. Seduz-me a imprevisibilidade. A multiplicidade, a mim, encanta-me. Perceber que pouco percebo, descansa-me o espírito. Andar como uma criança por entre um mundo de desconhecimento atrai-me. Se eu fosse de me exprimir através de lugares comuns (e acho que não sou) até poderia acrescentar que a diversidade é a minha praia, em especial, se for inesperada.

Que o sol se descubra, em brilho e festim, no meio de um céu cinzento, para logo desaparecer, fazendo crer que não aconteceu, é para mim um milagre que me empolga. Que uma palavra silenciosa se desprenda de um coração para vir pousar junto ao meu, parece-me coisa dos deuses. Que uma música me transporte pelos céus como se eu fosse dentro de nuvens feitas de algodão em rama, parece-me magia. Que uma flor surja, rosada e límpida, por entre um chão de folhas mortas, parece-me um presente que nada fiz para merecer. Andar pelo campo, só eu, em passos de lã, e ouvir os pássaros, cantando de árvore para árvore, místicos, seres de um outro mundo, parece-me bênção, quase predestinação.


Não sei se um dia conseguirei ordenar todas as peças por forma a fazerem sentido. Espero que não. Se isso acontecesse seria como andar na formatura, sabendo os passos a dar, todos iguais, obedecendo a uma voz de comando, sem uma gota de surpresa a perfumar os meus sentidos.

Prefiro continuar assim, feita de muitas peças coloridas colocadas à toa, como uma casa de lego feita por uma criança, e saber que amanhã a casa pode estar diferente, as peças amarelas misturadas com as verdes e com as encarnadas, as janelas no lugar das portas, a chaminé a parecer uma torre que aterrou no telhado, e que no outro dia a casa vai parecer um lago com árvores dentro e pássaros no jardim e que afinal não são pássaros, são cavalos azuis. Assim é que me sinto bem.


Ouço música enquanto escrevo. Escolho ao acaso. Agora tinha escolhido uma, uma fantasia árabe, ficou a tocar, depois passou para outra que reconheci. Maravilhada fui espreitar: quem a pôs aqui a tocar para mim? Não sei mas acredito que uma mão que me quer tocar, a pôs a tocar para mim. Já a coloquei agora aqui, lá em cima, para que a ouçam também. Já mil vezes aqui a coloquei, em diversas interpretações, mas mil outras vezes ela me aparece, tentadora, um espelho em frente de um espelho, a alma translúcida de alguém que talvez seja eu reflectida num espelho que descobre alguém que não sou eu mas que está presente em mim como eu.
E se nada disto tem explicação, nem o que escrevo, nem o que penso ou faço, então está certo, é mesmo assim, sem explicação. 
Fui buscar imagens para intercalar no texto sem saber o que procurava. Escolhi ao acaso, não sei se fazem sentido junto a estas palavras desordenadas. Sinto que sim, parece que trazem alguma ordem a este caos que me seduz e que me acolhe. Mas também não sei explicar porquê, nem tento.


Olho à minha volta nesta minha mesa redonda onde escrevo e onde se aninham os livros que gosto de ter por perto: um livro sobre bibliotecas, livros de poesia, aqui mesmo ao meu lado 'Amar a vida inteira' de Casimiro de Brito e 'Últimos poemas de amor' de Paul Éluard, livros sobre pintura e entrevistas a pintores, também a um arquitecto, e 'Cartas de Amor' de Pablo Neruda,  e um livro vibrante sobre Havana com as suas cores quentes e alegres e gente sorridente, e também um daqueles livros loucos, que me delicia, do Beckett. E 'Seis propostas para o próximo milénio' de Italo Calvino. E outros. Uma miscelânea que parece que me procura ou que se forma, por si só, à minha volta.

E tenho também aqui verniz carmim, estive a pintar as unhas, e um CD, ofereceram-me pelo natal, muito bom, e uma concha que trouxe de Lagos, adoro Lagos, parece que uma parte de mim tem sempre vontade de para lá ir, e agora acabo de descobrir um saquinho de tâmaras (como veio isto aqui parar? - é certo que gosto imenso de tâmaras mas não me lembro de as trazer para aqui). Ao centro da mesa está uma bandeja que tem uns pequenos pés. Está cheia de coisas: as rodas de um carrinho, um ramo pequeno com bolinhas encarnadas, deve ter-se desprendido de um enfeite de natal, uma caneta cor-de-laranja, uma lupa, um lápis que escreve palavras macias, e mais coisas. Na parte de baixo da bandeja mandei gravar um poema de Sophia:

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante!


Às vezes penso que um dia vou deixar de andar por cá. Se eu estiver consciente quando isso acontecer, penso que estarei serena, como quem já conheceu e desfrutou bem esta vida e está pronto para partir para outra. Quando tive um acidente violento que destruiu o carro, tive, na fracção de segundos em que aconteceu, a consciência de que poderia estar a viver os meus últimos instantes. E não me assustei. Estava num carro sem travões, a descer por uma descida que ia ter a uma rotunda cheia de camiões, era mais que certo que me ia desfazer contra um deles, e não senti medo. Depois, não sei como tive discernimento para isso, para evitar bater nos carros que circulavam, resolvi subir para o centro da rotunda, vi o carro a avançar contra uma enorme peça metálica, pensei que a peça ia entrar pelo vidro e talvez degolar-me. E não me assustei. Teria morrido na maior das tranquilidades. Pensei que nem tinha tempo para pensar nos meus filhos. Já o contei aqui: os airbags abriram-se, encheram o carro de fumo branco, o carro ficou meio no ar, de lado, espatifado, choquei com uma árvore, que ficou destruída, e choquei com aquela enorme peça. A custo, dada a posição do carro, saí dele, admirada por estar viva. As pessoas saíram dos carros, assustadas, diziam para eu fugir porque o carro podia explodir, pensavam que o fumo era o carro a arder. Eu estava calma. Não fiquei ferida. Telefonei, vieram buscar-me, queriam levar-me ao hospital, não quis, sabia que estava bem. Fui trabalhar como se nada se tivesse passado. O seguro declarou perda total para o carro.

Penso nisto, às vezes: na minha tranquilidade perante uma situação da qual, racionalmente, pensei que talvez resultasse a minha morte. Mas não pensei assim: 'a minha morte' ou 'vou morrer'. Pensei apenas: 'se calhar estou a viver os meus últimos instantes de vida'. E pensei isso com uma paz assombrosa. Parece estranho mas foi assim que aconteceu.

Não sou católica, não sou sequer crente, pelo menos segundo os ditames da religião católica. Mas parece que sinto que vivi antes, como se trouxesse em mim memórias de vidas que não vivi. Ou que vivi. E parece que sinto que viverei mesmo depois de ter deixado esta vida. Talvez viva apenas na memória dos que me amaram. Ou viva no corpo de uma gaivota. Mas isso não me interessa.


O que me interessa é esta aventura, é este prazer em juntar palavras, em descobrir cores, em deixar-me embalar por acordes, é deixar-me amar, é amar, é ser meio louca, é dizer coisas que não fazem sentido, é sorrir, é ver o sorriso no olhar de quem me quer bem, é saber que mais logo, se calhar, vou ser o oposto disto, e depois outra vez diferente -- a vida caleidoscópica e irrepetível e eu também incompreensível, quase inexistente na minha colorida, ilógica e indescritível multiplicidade (ou unidade?).

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As pinturas, por ordem descendente são de Balthus, Guilherme Parente, Júlio Resende, Chagall, Matisse, Gauguin.

Spiegel im Spiegel de Arvo Pärt é interpretado por Leonhard Roczek no violoncelo e Herbert Schuch no piano.

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Sobre o debate Paulo de Morais e o Zelig da campanha presidencial, Marcelo de seu nome, é descer até ao post seguinte, por favor.

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