Vou ser lapaliciana: negociar significa dar e receber, ceder e obter. Negociar a dívida não é sinónimo de obter o seu perdão. Negociar a dívida, ainda que de forma incipiente e quase irrelevante, é o que tem vindo a ser feito. Mas não é suficiente.
É preciso encarar de frente a necessidade de renegociar a sério a dívida pública e acho que teríamos todos a ganhar se essa discussão fosse feita com maturidade e de forma desapaixonada. É preciso perceber que encarar este assunto de forma maniqueísta (ou mortaguiana) é um erro crasso. Não somos nós, os coitadinhos, versus os outros, os malvados. É que quem está do outro lado, na ponta final, não é forçosamente um abutre. Podem até ser reformados que, na sua boa fé, contam ter uma boa rentabilidade dos seus fundos de pensões.
Renegociar a dívida de um país não é, pois, coisa para meninas estridentes que -- como dizia, creio, o João Oliveira do PCP -- gostam de espalhar com as patas o que os outros andam a juntar com o bico. É, na verdade, trabalho de sapa, trabalho de fundo, trabalho de análise, trabalho de diplomacia, trabalho de gente adulta.
Com uma Europa descomandada e que facilmente se desengonçará ainda mais do que já está e com um presidente americano que se adivinha um poço de incertezas, com os chineses e os russos já com as hostes a caminho, é bom que quem tem olhinhos de ver perceba que está na hora de pôr os motores a aquecer porque os tempos que aí vêm têm tudo para ser tempos de mudança. António Costa e os seus pesos pesados e Marcelo Rebelo de Sousa terão uma oportunidade única para abrir uma brecha no rançoso status quo europeu e mostrar que há outra forma de estar na democracia. Às vezes basta um bater de asas de borboleta ou um cravo na ponta de uma baioneta.
Os países têm vindo a ser abanados pelos ventos de descontentamento que sopram um pouco por todo o lado. O povo, essa insondável mole humana, tem vindo a mostrar que não quer mais os xaropes que lhe têm vindo a enfiar goela abaixo. Votam à esquerda ou à direita desde que lhe cheire a mudança: pode ser um populista, um palhaço ou um pato. Tudo menos alguém que personifique 'os de sempre'. Pasto fácil para o populismo, este é o terreno que, quem tenha dois dedos de testa e que saiba ver ao longe. tem para pisar e do qual pode tirar vantagem.
Renegociar a dívida*, restituir a dignidade e a racionalidade à economia, voltar a colocar o humanismo no centro da política, apostar no europeismo como motor de coesão e desenvolvimento -- estes são alguns dos passos que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa deveriam começar a equacionar (com discrição, com sabedoria, com determinação). Inteligência e tacto político não lhes falta. Empatia entre eles e capacidade para estabelecer empatia com os outros também não. Talvez esteja, pois, na hora de começarem a trabalhar a sério -- de olhos postos no futuro.
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Brendel interpreta Schubert, Op. 90/3
Fotografias da National Geographic
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* E calma, isto é o que eu penso numa lógica absolutamente racional, desprovida de simpatias partidárias (até porque a questão da dívida tem sido bandeira do BE e do PCP, partidos sobre os quais não se pode dizer que eu morra de amores por eles)
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