Mostrar mensagens com a etiqueta June Tabor. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta June Tabor. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, julho 25, 2022

Livros, músicas, poemas, pinturas, amores... pode haver uma preferência acima de todas as outras?

 


Estou numa fase da minha vida em que leio pouco. O tempo anda-me tão curto que não me reserva espaço para a leitura. Hoje de tarde, mal acabei de almoçar deu-me uma pancada de sono. Deitei-me no sofá e adormeci. Quando acordei, peguei num livro e fui para o jardim. Mas apeteceu-me estar na conversa em vez de estar isolada com o livro.

Contudo, o mundo dos livros continua a ser um mundo que me atrai. O mundo das palavras. Ler o que os outros escrevem. Encontrar a diferença nas palavras dos outros. Não é apenas a história, é também a maneira de cerzir as palavras. Não procuro coisas espectaculares, não procuro palavras desconhecidas, descrições surpreendentes. Não sei explicar bem o que procuro. Talvez a sinceridade, talvez a espontaneidade, a franqueza visceral. Talvez o acto do desnudamento com elegância, talvez a atenção aos pormenores, talvez o olhar inteligente sobre as coisas, sobre os outros. Talvez a forma primitiva e única de olhar para dentro de si próprio e para dentro dos outros e das coisas.

Rejeito em absoluto a banalidade. Não percebo o que leva alguém a escrever banalidades e muito menos percebo quem as consome.

E, no entanto, quantas vezes aqui escrevo eu banalidades...? Tantas, tantas...

Quando aqui escrevo, raramente sei sobre o que vou escrever. Escrevo o que, no momento de começar a escrever me ocorre. Pode ter a ver com o que acabei de ler ou de ouvir ou posso não ter nada para dizer e, por isso, escrevo sobre o que se passou nesse dia ou sobre alguma coisa que me ocorre. Outras vezes tenho vontade de escrever sobre algumas coisas mas prefiro não, deixo-as para mais tarde ou para outro contexto. Espanta-me que tenha sempre tantas visualizações, em média mais de duas mil e quinhentas por dia. Recebo mails de pessoas que se sentem próximas e querem conversar comigo mas, logicamente, desconheço a maioria dos que me leem. Acredito que, por vezes, os desaponto. Talvez, por vezes, pensem que, afinal, não me conhecem. Outras, se calhar, acreditam que me conhecem bem de mais.

E, no entanto, estou convencida que ninguém me conhece completamente. Há coisas que nunca verbalizo e que, estou em crer, fazem tanto parte da minha vida quanto as que exponho. Nem sei se saberia escrever sobre aspectos tão pessoais. E, no entanto, gosto de ler o que as pessoas são por dentro, como pensam, como é o seu passado, como interpretam a vida. Gosto de estar por dentro da sua intimidade. Posso não me sentir cúmplice mas, mesmo com algum distanciamento, gosto de ler as descrições das vivências, das dúvidas, dos desequilíbrios, das vulnerabilidades, das alegrias. Claro que se, por detrás (ou por dentro) das palavras, estiver alguém que tem um percurso cheio de momentos interessantes que possam ser partilhados, ou em estado puro ou reprocessados, tanto melhor.

Como já referi algumas vezes, alimento a secreta esperança de ainda vir a ter tempo, espaço e vontade de escrever mais a sério. Gosto muito de escrever. Mas gostava de ter tempo para reler, para burilar a escrita, para encontrar as ligações musicais que tornam a escrita mais próxima das emoções, ou para descer mais fundo na procura da verdade intrínseca. Gostava de ser capaz de escrever bem, pausadamente, pensadamente, não apenas à pressa, descuidadamente, superficialmente. Gostava de ser capaz de bordar com palavras e que o avesso ficasse tão perfeito quanto o direito. Gostava de conseguir encontrar o gume sobre o qual a escrita se equilibraria.

Talvez um dia. Talvez. 

Quando penso nos livros que mais me marcaram hesito. Um livro é lido diferentemente por quem o lê e nós próprios vamos mudando ao longo da nossa existência. O livro e a sua circunstância. 

Quando li A Selva fiquei fascinada. Teria talvez dezoito anos e o meu namorado da altura ofereceu-mo. Mas já antes tinha ficado fascinada com Liza, a pecadora. Aí teria uns quinze e trouxe-o da biblioteca do liceu. Ou com As sete partidas do mundo. Teria uns catorze e trouxe-o de uma amiga e vizinha cujo marido era médico e, na altura, estava em África. Ou, depois disso, com A Bastarda. Ou com A virgem e o cigano. Ou com Por quem os sinos dobram. Ou com O Arco do Triunfo. Ou com A montanha mágica. Ou com A insustentável leveza do ser. Ou com o Amor nos tempos de Cólera. Ou com o Ensaio sobre a Cegueira. Ou com Carne de cão. Ou com o Stoner. Ou com As oito montanhas

Com tantos fiquei fascinada, tantos, tantos. 

Se os relesse agora sentiria o mesmo? Ou o que na altura me pareceu novo, único, agora saber-me-ia a déjà-vu? Não sei, não arrisco a desilusão, prefiro mantê-los intocáveis na minha memória. Não os releio. 

E sou incapaz de dizer qual prefiro. Não coloco livros num pódio. Tal como com todos os amores. Aquilo que amamos e respeitamos não é sujeito a comparações.

Mas há quem tenha feito uma lista dos livros preferidos em todo o mundo. Não sei se resulta de uma pesquisa rigorosa mas, ainda assim, estive a espreitar.

Deixo o link, caso queiram verificar: Os Livros Favoritos do Mundo — lista completa em português


Supostamente em Portugal é o Memorial do Convento. 

Também não sei se o livro preferido de um país é sinónimo de o melhor livro publicado nesse país ou se o melhor livro escrito na língua desse país. Seja o que for. Nestas coisas, as estatísticas são o que são: uma abstração.

Ao lembrar-me de livros, reparo agora que falei apenas de livros em prosa. E, no entanto, sou também muito sensível a livros de poesia. Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Teresa Horta, Herberto Hélder, António Ramos Rosa, Pedro Támen. E tantos, tantos outros. E só estou a falar nos portugueses de Portugal.

E, no entanto, ao pensar em colocar aqui um poema lido é, uma vez mais, num poema que não é português e que nem sei dizer porque gosto tanto dele. Mas gosto. Já aqui o partilhei muitas vezes e frequentemente ando com ele a bailar-me na mente. Não sei porquê. Tal como ao escolher uma música para aqui se identificar comigo de uma forma muito próxima escolho uma vez mais a mesma que já aqui tantas vezes esteve. Ou ao escolher um pintor escolho aquele cuja obra é o mais despretensiosa possível, a simplicidade mais extrema, e que, apesar disso (ou talvez por isso), me toca quase comoventemente. 

É assim. São coisas que não se explicam. 




---------------------------------------

Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Amor. Paz.

terça-feira, março 29, 2022

Os que sobrevivem

 



Um conhecido hoje dizia-me que tem discutido com a mulher e com as filhas sobre se devem receber alguma família ucraniana em casa. Por ele receberiam mas a mulher, que também trabalha, diz que lhe faria impressão, durante o dia, deixar a casa nas mãos de estranhos. As filhas indignam-se, perguntam de que é que a mãe tem medo. O meu conhecido diz que, de certa forma, compreende mas que, ao mesmo tempo, acha que são preocupações sem razão de ser pois são pessoas que deixaram a vida para trás e que apenas precisam de um amparo enquanto não conseguem ter a sua independência financeira. Depois, com lágrimas nos olhos, falou-me de uma imagem que não lhe sai da cabeça, a de uma criança a chorar enquanto se despedia do pai. Nessa altura, desviei o olhar. Os homens não gostam que a gente lhes perceba a emoção.

O tema do acolhimento de famílias é um tema que também me perturba. Qual a melhor maneira de integrar estas pessoas que fogem da guerra?

Uns amigos de Lisboa tiveram durante anos um casal de ucranianos a viver numa sua herdade no Alentejo. Tinham vindo da Ucrânia num outro êxodo. Tinham a herdade por sua conta e gostavam muito de lá estar. Quando os donos e amigos lá iam, ficavam todos contentes por terem companhia, era como se estivessem a receber convidados. Eram pessoas simpatiquíssimas. Tinham uma filha na Ucrânia e, na última vez em que lá estive, tencionavam lá ir visitá-la. Não sei o que é feito deles, tenho ideia que regressaram há algum tempo. Se assim foi, devem estar outra vez a viver um pesadelo. Não sei que profissão tinham na Ucrânia nem sei como chegaram ao contacto com esses meus amigos mas imagino que sentissem aquela sua estadia ali como uma bênção. Tinham alojamento, largueza de acção, um ordenado e, sobretudo, paz.

Quando a minha sogra teve um avc estando o meu sogro já doente, tivemos que arranjar, quase de um dia para o outro, uma pessoa para os acompanhar em casa a tempo inteiro. Lembro-me que um dia, do hospital, me ligaram a dizer que mandássemos uma ambulância buscá-la. Eu estava no norte, o meu marido estava não sei onde e os meus cunhados estavam também na sua vida. Ela não andava, estava completamente dependente, e não tínhamos a casa minimamente adaptada à sua nova condição. Nunca imaginámos que lhe dessem alta estando ela ainda assim. Fiquei preocupada, sem fazer ideia do que fazer. Um colega ouviu os meus telefonemas e, percebendo a minha aflição, sugeriu que contactasse o Serviço Jesuíta aos Refugiados. Assim fiz. Expliquei a situação. Pouco depois, ligaram-me a perguntar se estaríamos disponíveis para acolher uma médica moldava que o pouco que sabia de português tinha sido aprendido numa breve passagem por Angola. Contactada a família, obviamente aceitámos. Pareceu-me que melhor não poderia ser. Ajudou-nos em situações complicadas, nomeadamente despistando, de forma certeira, alguns sintomas que requeriam atenção urgente. Queria aprender português e gostava de ali estar. Infelizmente, naquela altura, os meus sogros ainda não estavam bem conscientes do seu estado de saúde e preferiam alguém mais vocacionado para o tratamento da casa do que da sua saúde. O facto dela pouco saber de português também lhes fazia confusão. A minha sogra queixava-se que ela não sabia pôr a mesa como devia ser ou que não arrumava a roupa a seu gosto. Tentei de tudo para que percebesse que isso era de somenos. Importante era ela saber vigiar a saúde deles, saber ajudar na sua recuperação, acompanhar a fisioterapia, etc. Terem uma médica a viver com eles era mesmo uma sorte. Mas a minha sogra não valorizava isso e queixava-se que ela queria era aprender a falar português, não ligando nenhuma para aprender a tratar da casa como devia ser. Eu reconhecia que era bom também para a médica pois tinha um tecto e um ordenado mas que os maiores beneficiados eram eles os dois, que estavam doentes. Mas não tive sorte. Ao fim de algum tempo tinham-na mandado embora, coisa de que ela também não se deve ter importado muito pois já devia estar saturada de quererem uma empregada doméstica quando estava mais do que na cara de que precisavam mesmo era de apoio clínico.

E penso que deve ser muito isto que por vezes acontece no acolhimento de pessoas de outra nacionalidade com fraco domínio da língua, em especial quando as expectativas mútuas não convergem. Ter alguém em casa com quem não se tem empatia deve ser horrível.

Esta segunda-feira, na empresa, em diversas situações, recomendei que se tentasse recrutar refugiados ucranianos: se calhar conseguir-se-á encontrar pessoas com as habilitações adequadas e, se falarem minimamente inglês, já estará bem. Numa das vezes, notei uma certa desconfiança, quase como se houvesse o risco de que os ucranianos viessem 'roubar' o trabalho aos portugueses. Receio infundado. Neste momento, pelo menos em funções técnicas, não existe desemprego em Portugal, existe é escassez. Por isso, nem que fosse apenas por isso e não por razões humanitárias, já era bom haver a possibilidade de se poder recorrer a mão de obra que hoje nos falta. Mas, ao darmos trabalho a novos cidadãos com os quais não tivemos que investir na sua formação e que vão ser novos contribuintes, estaremos a ter um ganho líquido para o país. 

Portanto, a integração de refugiados, em especial se estiverem aptos a trabalhar, é sempre uma coisa boa. E crianças...? Que bom para o país. Claro que ainda melhor será se por cá acabarem por ficar: que boa injecção demográfica isso seria... Isto, claro, para não falar na prática da generosidade e na multiculturalidade que são gratificantes sob qualquer ponto de vista.

E isto vale para refugiados e/ou imigrantes de qualquer nacionalidade ou raça. Que se sintam bem, que queiram cá ficar, que integrem a nossa realidade, que nos ajudem a desenvolver o país.


Mas se um dia regressarem ao seu país, se quiserem ir ajudar na sua reconstrução, se quiserem ir em busca das suas raízes, cá estaremos para os receber sempre que quiserem voltar para virem matar saudades.
_______________________________________

O que não podemos, penso eu, é deixar de sentir compaixão e solidariedade pelos que perdem entes queridos, que perdem a casa e a sua vida. Sobrevivem às perdas mas o que devem sofrer... E, ao mesmo tempo, a esperança que devem sentir em melhores dias, em felizes reencontros. São uns heróis.

'My mother was still alive while she was on fire': Teen describes horrific attack

15-year-old Andriy recounts to CNN's John Berman the moment his family was forced from their home at gunpoint in Chernihiv, Ukraine, and the attack that claimed his mother's life


Ukraine war creates largest refugee crisis since WW2 - BBC News

Four weeks since Russia invaded Ukraine and the lives of millions have been turned upside down.

"Children were killed and teenage girls were raped, we had to leave, they were shooting at the cars as we tried to escape," Ukrainian mother Yulia Kirienko said.

Almost a quarter of Ukraine's population has fled their homes, with around 60% going to Poland.


Ukraine War: Town of Izyum hit by heavy shelling

________________________________________________________________

Fotografias de John Dykstra na companhia de June Tabor interpretando Music of World War I

_________________________________________________

Desejo-vos uma boa terça-feira
Saúde. Boa sorte. Esperança. Paz.

segunda-feira, dezembro 20, 2021

Desta vez sou eu que respondo ao Questionário Colbert

 


Sanduiche preferida?

Às vezes, ao almoço, comia uma sandes. Agora já não, ando a ver se como menos pão. Adoro pão mas quero ver se não engordo mais do que a conta. Mas, a escolher uma que comesse de bom grado, talvez feita em pão de sementes com alface, uma fina rodela de tomate, ovo cozido, salmão fumado. Também gosto de sandes com ovo mexido e, como verde, canónigos.

Coisa minha que deitaria fora?

Um chinelo roído (pela fera felpuda, claro). Ainda não deitei pois o outro está bom. Chateia-me deitar fora coisas que estão boas. 

Animal mais temido?

Cobra. No campo há algumas. Quando vou a andar e ouço daqueles barulhinhos tão típicos no campo, por vezes penso que ficaria assustada se uma viesse na minha direcção. Vi uma vez uma cobra a perseguir um rato e a comê-lo. E o pior é que o ratinho estava tão apavorado que se deixou comer. Penso que comigo aconteceria o mesmo. A cobra poderia engolir-me que eu, tal o pavor, nem me mexeria. Acho que uma cobra sibilante e sinuosa me daria um medo paralisante.

Maçãs ou laranjas?

Laranjas. Gosto muito de laranjas. Na época delas, e agora é quase sempre época delas, como uma laranja todos os dias (ao pequeno almoço). De todas, as laranjas da laranjeira mais antiga da minha mãe são as melhores. De longe, as melhores. Doces, sumarentas, frescas e bonitas.

Já alguma vez pedi um autógrafo?

Sim. Numa livraria no Chiado, vi o Fernando Namora. Gostava muito dos seus livros. Já os tinha lido todos. Então, fui à estante buscar um livro dele e pedi-lhe um autógrafo. E, feita estúpida, ofereci o livro ao meu namorado da altura. Foi-se, pois.

O que acontece quando morremos?

Descansamos. Deixamos de ser vistos como éramos. Apareceremos por aí de outras maneiras: uma árvore, um tapete de musgo junto ao tronco dessa árvore, um gato, uma nuvem, uma suave aragem, uma boa recordação. 

Filme de acção preferido?

Braveheart. Não sou grande apreciadora de filmes de acção. Este foi aquele de que primeiro me lembrei. Tenho ideia de que era um filme poderoso. Tenho ideia do Mel Gibson ter um poderoso grito de liberdade. Freedom!

Cheiro preferido?

O que sinto quando caminho in heaven. Uma mistura de pinheiro, de cedro, de eucalipto, de alecrim, de rosmaninho, de silencio e de paz. 

Pior cheiro?

Borracha queimada. Lixo. Batatas podres.

Exercício: vale a pena?

Claro que sim. Mas que pareça espontâneo. Caminhar, todo o ano. Nadar, no verão. Varrer, todo o ano. Rir, sempre.

Liso ou cintilante?

Não sei se percebo a pergunta mas, em abstracto, simples, liso, sóbrio.

App mais usada no meu telemóvel?

Google maps. O GPS do meu carro é estúpido. Prefiro o google maps. Mesmo para andar a pé, uso quando estou num sítio novo. O pior é quando me manda ir para noroeste ou coisa assim pois nunca sei para que lado fica isso. Nunca consigo situar-me. 

 Se só pudesse ouvir uma música até ao fim da vida, qual seria?

Lili Marlene. Gosto de tudo mas, sobretudo, do simbolismo. E, sobremaneira, na interpretação de June Tabor.

Em que número é que quem faz a pergunta está a pensar?

225.

Como descrever o resto da vida em cinco palavras?

Presumo que a pergunta se refira a como gostaríamos que fosse o resto da nossa vida. A ser isso, em cinco palavras: feliz, independente, interessante, venturosa, plena.
 ________________________________________________________________________

Sugiro-vos, Caros Leitores, que, na falta de melhor alternativa, também respondam. 

Meryl Streep e Sting juntam-se-nos à conversa com Stephen Colbert.




______________________________________________________________________

Pinturas de Walter Launt Palmer 
ao som, aqui pela milionésima vez, de June Tabor a interpretar, justamente, Lili Marlene

_____________________________________________

Desejo-vos, meus Caros Leitores uma boa semana a começar já por estar segunda-feira
Boa sorte. Alegria. Saúde. Ânimo.

sexta-feira, junho 25, 2021

A verdade é que sobre tudo isto não há muito a dizer

 



Pouco a dizer. Manhã muito atarefada. Tarde atípica, fora de casa, com algumas decepções pelo meio e alguma improdutividade indesejada. Chegámos a casa lá para as dez e meia da noite. 

Banho. Para jantar o que apanhámos pelo caminho. 

Depois pus-me a ver televisão, nomeadamente o House. Sempre aquela máquina de desconcerto, sarcasmo e inteligência. 

Agora, abri o computador à espera de uma informação que, afinal, não está cá. E não tenho novidades para partilhar ou notícias para comentar. Para além da grande Lisboa continuar a marcar passo, Lisboa propriamente dita retrocedeu. 

Não sei se isto é por tanta gente já se portar como se não houvesse covid ou se por o teletrabalho ter abrandado e muita gente estar de volta aos escritórios, ou seja, a espaços fechados. Espaços não ventilados são ratoeiras. E, se muita gente volta a espaços fechados, mais gente anda de transportes e mais gente vai a restaurantes (espaços também mais ou menos fechados com pessoas sem máscara). Não sei. O que sei é que esta não estava no programa. Sempre imaginei que com tanta gente já a ter estado infectada e tanta gente vacinada, com a vida a poder ser feita ao ar livro ou de janelas abertas, esta droga tivesse esmorecido. Afinal não.

Continuamos sem estatísticas sobre como e onde as pessoas estão a ser infectadas e acho que, sem essa informação, não se conseguem ter medidas dirigidas e eficazes.

Também ouvi, no carro, alguma polémica em torno do entusiasmo futebolístico do Ferro Rodrigues e da suposta divergência entre o Marcelo e o Costa sobre a gravidade da situação. Nada disso me interessa muito. Poeira. Mais chato é que este vírus seja diabólico, se transmute, troque as voltas a toda a gente, deixe sequelas, dê cabo da vida a muita gente. Isso, sim, é trágico e incontrolável. Quem abriu a caixa de pandora talvez não tenha percebido o que ia acontecer. E até acredito que a não tenha aberto de propósito. Coisas assim acontecem. Deus gosta de brincar aos dados, não é? 

Chato também que, fruto desta tragédia, toda a gente seja forçada a aceitar coisas que, em situações normais, não aceitaria. Só prova que somos vulneráveis e que valemos zero. 

No outro dia, está a fazer três semanas, pude viver na primeira pessoa a prova provada de que a nossa vontade vale zero, o nosso suposto controlo sobre as situações que nos envolvem e sobre o nosso corpo vale zero. Não temos voz activa para coisa alguma quando as circunstâncias nos tiram o tapete. 

Bem podem mil filósofos desde a antiguidade até aos dias de hoje ou uma legião de gregos antigos ter inventado a pólvora e todas as tragédias do mundo muito antes de alguém ter sonhado na nossa existência que nada disso contribui para a nossa segurança ou felicidade.

Quando chega a hora, só nos acontece uma coisa -- olhar para dentro de nós e para o que nos rodeia e pensarmos: mas que raio nos está a acontecer?

Li que as últimas palavras da Princesa Diana, pouco antes de morrer, quando estava no carro, aparentemente sem ferimentos de maior mas, efectivamente, prestes a entrar em paragem cardíaca, terão sido Oh my God, what's happened? Também ela, perante o acidente e perante quem, perto dela, já se tinha ido, mostrou a estupefacção de quem não percebe o que lhe está a acontecer.

Mas, enfim, nada de novo. Tudo é um acaso. E a única coisa ajuizada é festejar a vida enquanto ela parece estar à nossa disposição. Tudo o resto, maldizer os outros ou a vida, acusar este ou aquele, arranjar tricas sobre futilidades ou desperdiçar um minuto que seja da nossa vida é uma estupidez sem explicação.


___________________________________________________________

Nos últimos tempos, um post que escrevi em janeiro de 2015 tem recebido diariamente um número inusitado de visitas. Trata-se de um post que escrevi com a alegria possível quando o meu pai teve alta depois de umas semanas complicadas. Depois disso, voltou a estar hospitalizado mais algumas vezes. Sofreu bastante, sobretudo por assistir ao declínio do seu corpo, da sua independência, do seu orgulho. Já fez um ano que se foi. E faria hoje anos. Todos os anos festejávamos o seu aniversário mesmo quando, acamado, já não participava nos festejos nem tinha grande consciência de que lá estávamos a festejar que estivesse vivo. 

Faz-me um bocado impressão constatar como o tempo passa de uma forma tão inexorável. O seu bisneto mais novo não chegou a ter consciência da sua existência. E qualquer dia os outros acabarão por se esquecer daquele bivô ausente, entubado, que não os via e mal falava. A vida da gente esvai-se de nós e, com o tempo, esvai-se da memória dos que nos conheceram. E é assim mesmo, nada a fazer. 

E isto só é mais uma razão para aproveitarmos enquanto podemos. Tirando isso, batatas.

______________________________________________________

As fotografias cheias de surrealidades são da autoria de Ellen Sheidlin
E June Tabor faz-nos companhia com Love Will Tear Us Apart

___________________________________________________

Dias felizes.
Saúde

segunda-feira, fevereiro 22, 2021

Uma espécie de crónica de mais um fds confinado

 


Mais um fim-de-semana do qual nada há a registar. No sábado, chuva de manhã à noite. Ainda assim, quis ir andar pois não consigo ficar fechada em casa todo o dia mas regressei com as calças, as meias e os ténis ensopados. Na parte de cima não houve problema pois tinha uma capa impermeável que cumpriu a sua missão. 

Este domingo, caiu um pesado e prolongado aguaceiro de manhã. Temi que estivesse, de novo, o caldo entornado. Mas não. Levantou. Fomos andar mal as nuvens escuras se dissiparam, subsistindo apenas as cinzentas e as brancas. Fizemos uma boa caminhada, a bom passo, o ar frio e húmido mas com vestígios de sol a iluminar o caminho.

Mas é uma pasmaceira que não se aguenta. Uma pasmaceira. Que não se a-gu-en-ta.

Li mas até a ler estou vagarosa. Depois, saí para o jardim para andar a fotografar. Deixei-me estar a ouvir o bater das asas dos pássaros através das folhas, tentando descobri-los. De cada vez que descortino algum e me apronto para registar o milagre, logo o milagre se dissipa. Depois andei a ver as flores através da luz, andei a espreitar maneiras novas de as ver e, à medida que o tempo passava, as cores iam mudando. E os cheiros também. Por vezes, se o sol descobria com maior fulgor e lhes dava de feição, eu andava em sua volta tentando descobrir qual o ângulo em que o raio de luz mais as embelezava. Como uma abelha ou um pássaro, assim eu, vigiando a beleza das flores ou das folhas que despontam.

Depois reentrei, fui fazer uma infusão. Uma mistura de nove ervas a que misturei casca de lima. Ficou poderosa.

De volta à sala, vi o site do ikea, do leroy, do gato preto. Depois de ter falado com a minha filha, vi também o da zara home. E vi sites de decoração. Tomara pôr-me a caminho e entregar-me ao prazer de medir, pensar, imaginar trocas de sítios, mudança de cobertas ou almofadas.

E fui vendo as fotografias e os vídeos que foram chegando. E falei também com a minha mãe e com o meu filho. E, a meio da tarde, quando estava a dar-me o sono, ligou-me um amigo e estive a conversar com ele; e ainda me ri. Diz que mal isto abra, vai para o aeroporto, apanha o primeiro avião e quando aterrar logo vê onde é que foi parar. Diz que tanto se lhe dá desde que possa raspar-se de casa.

Que mais posso contar? Acho que nada.

Só se for que voltei a fazer bacalhau com todos para além da dose, a contar que há-de sobrar para fazer dali uma outra refeição, provavelmente à Gomes de Sá. E, à tarde, fiz um arroz de frango também logo a contar que desse para outra refeição (aliás, quiçá não uma mas mais duas). Fiz assim:

Num tacho, frigi 2 cebolas em bocados grandes, em azeite. Juntei quatro dentes de alho e uma folha de louro. Quando a cebola estava transparente, juntei quatro tomates bem maduros aos bocados e salsa e coentros em quantidade generosa. Juntei então pernas de frango do campo, um pouco de água e um pouco de sal. Quando ferveu, baixei. Ficou a cozinhar até que vi que a carne estava quase macia. Juntei, então, um alho francês aos bocados e feijão verde. Cozinhou um pouco. Juntei, então, água (que estimei que, com a que já estava no tacho, ficasse o dobro da quantidade de arroz). Juntei um pouco de bacon aos bocadinhos e um pouco de chouriço de carne aos bocadinhos. Juntei o arroz (basmati). Quando absorveu todo o líquido, desliguei e ficou tapado, a apurar. Um cheirinho a comida portuguesa.


Quase não vi televisão. De tarde, o meu marido colocou no National Geographic - Wild e estivemos a ver leopardos e outros grandes felinos. Partidarites e comentarites é pitéu requentado que já não manjamos. Agora, fui ver o que estava a dar e pareceu-me que era a mesma coisa. Então, fui andando até que passei pelo canal zen, canal que desconhecia em absoluto, e há pessoas a fazer movimentos lentos. Fez-me lembrar um chinês que vivia perto de nós, na outra casa, e que ia para o jardim ali perto fazer aquele género de movimentos. Uma agora está a andar à roda. Eu fazia isso quando era pequena para depois desatar a rir de tonta e cair desamparada. Continua a andar à roda, ela. Agora está a fazer movimentos que me parecem de ioga. Se fosse a outra hora, ia para o chão e imitava-a. Assim, não me apetece. Não sou disciplinada, não tenho paciência para estar a fazer exercícios. Mas sei que devia fazê-los para não ir perdendo a elasticidade.


Por vezes, naquela outra vida em que éramos felizes e não o sabíamos, a vida pré-covid, naquelas alturas em que andava cheia de programas e canseiras, de um lado para o outro ou com a casa cheia de gente e a sentir que precisava de descansar, pensava que deveria ser bom ir para um retiro, talvez para um mosteiro, e passar o dia sem fazer nada, só a caminhar, a pensar, a observar, a fazer exercícios de respiração e contemplação. Agora que estou em casa nesta estúpida ociosidade penso que o tanas é que ia enfiar-me num buraco sem nada que fazer. Não nasci para monja. Acho que nem sequer para yoguini.

Bem. Estou a ver a rapariga a fazer e fazer e fazer o mesmo movimento, vezes sem conta, sempre com uma espécie sorriso santificado. Acho que não lhe custa nada a fazer aquilo. Uma espécie de flexões no chão.

Interrompi. Fui tentar. Está bem, está. Fiz duas vezes e parei não fosse ficar para aqui estendida e não ter quem me acudisse. Estou a ver que tenho que tentar, senão qualquer dia, estou feita, se quiser apanhar uma coisa do chão tenho que me agachar com uma daquelas velhas todas descadeiradas.

Agora está outra e parece-me que o que faz é bem mais complicado. Sobretudo, o que vejo é que requer paciência, fazer os movimentos com calma. Não é bem o meu género. Mas tudo se aprende. Acho eu...

Entretanto, uma nova semana já aí está. Um tempo de espera, de quase vazio, um hiato. Só espero que mude a hora, que venha o sol, que a vacinação avance a bom ritmo, que possamos voltar a ser donos e senhores dos nossos movimentos -- mas sem que, com a nossa liberdade, ponhamos em risco a nossa saúde ou a de outros. É que pior que a ociosidade e a impaciência será o peso de consciência se, justamente por impaciência, formos infectados e infetarmos outras pessoas.

Por isso, confinada estou e confinada estarei até que a prudência possa, em total consciência, ser aliviada. Pronto. Paciência.

[Mas se isto dura muito tempo -- mais um ano, por exemplo -- não se admirem se resolver saí daqui directamente para o mosteiro das carmelitas descalças, convertida até à medula].

__________________________________________________________

De manhã, a minha mãe dizia que tinha estendido a roupa pois parecia que ia estar de sol. Afinal que tinham vindo umas rajadas de vento e uma tal carga de água que ela até quase teve medo de ir apanhar a roupa, não fosse ir pelos ares juntamente com a roupa. 

Pois bem, há bocado, que nem de propósito, ao abrir o youtube, apareceu-me o vídeo abaixo que vi, nuns casos, com um sorriso e, noutros, com a apreensão solidária pelo susto que os que ali estão sofreram. 

Nem sei porque o partilho convosco mas é daquelas coisas: não tem que haver explicação lógica para tudo, pois não?

______________________________________________________________________

Desejo-vos uma nova semana tão boa quanto possível

domingo, julho 19, 2020

Escrever enquanto lá fora os vultos se diluem na calada da noite





Para a semana mais um caranguejinho está em festa e, não tarda, entramos no capítulo dos leoezinhos. Por isso, e também porque havia compras essenciais a fazer, saímos do forno e aventurámo-nos a ir até à cidade para ver se, por lá, encontrávamos presentes para os respectivos próximos três aniversariantes. Mas a cidade a que fomos é uma cidade pequena. Depois das compras prioritárias que nos tinham levado lá, pensei que, por ali, arranjaria aquilo a que estava habituada quando, num outro mundo, frequentava a cidade grande. Mas não, poucas lojas e as conhecidas em dimensão reduzida. Desabituada de andar às compras e tendo ainda a memória das grandes lojas a que já conhecia os cantos, ali olhei em volta e ficou tudo visto. Pouca coisa por onde escolher. Por um bocado pensei: vou-me embora e, quando estiver na cidade grande, vou aos lugares que conheço e onde há de tudo. Mas depois pensei que, se calhar, já não serei capaz de voltar a esses lugares, catedrais de consumo, lugares em que o tempo escorre sem se dar por ele e do qual nada fica. O desperdício, incluindo o de tempo, parece-me absurdo. A fartura parece-me absurda. A vaidade parece-me absurda.
Com o tempo talvez até deixe de usar saltos altos para ir trabalhar. E se os saltos altos faziam parte de mim. Isso e o rímel. Como sou clara, habituei-me a aplicar um pouco de rímel para que as pestanas fiquem mais visíveis. Mas só o ponho para ir trabalhar. Em casa, nada. E ao fim de semana, férias ou em família também nada. Estes meses de teletrabalho aproximaram-me do meu estado nativo, quase selvagem. No outro dia, recebi mensagens a oferecer-me vouchers e descontos se comprasse isto e aquilo, nomeadamente perfumes. Noutras circunstâncias eu aproveitaria. Iria tentar descobrir o perfume mais que perfeito. Toda a vida o procurei. Iria deixar tentar-me pelo nome dos componentes, iria experimentar, iria deixar-me seduzir. Agora não. Pensei que não preciso. Na volta estou a tornar-me como se diz dos outros de que agora tanto se fala: frugal. E, se ser assim me agrada e, de certa forma, me faz sentir até um pouco orgulhosa de mim (como quando deixei de fumar), a verdade é que não consigo deixar de pensar que a frugalidade de alguns poderá tornar-se na miséria de muitos.

Mas, enfim, pensamentos confusos à parte, o que tenho a dizer é que lá vim com o possível e, para dizer a verdade, pareceu-me que mais seria excessivo. Dantes gostava de encher toda a gente de presentes e mais presentes. Gosto de dar. Agora, se calhar para mal de quem os recebe, até isso me parece demais. Ainda não cheguei à fase de me limitar a oferecer uma única coisa, uma só tshirt ou um só livro, por exemplo, mas tenho esperança de lá chegar. 

E tenho também a dizer que este sábado não foi preciso cozinhar: dos dias em que tivemos companhia sobrou comida que deu para almoço, jantar e que, com sorte, ainda dará para outra refeição. Por isso, foi como se fosse dia de férias.

Mas, apesar de me sentir em férias, fiz também outras coisas: fiz três máquinas de roupa. Até uma bela colcha multicor em veludos e brilhos que estava como que esquecida foi lavada. Estou a pensar dar-lhe uma nova vida. Já a vejo com umas almofadas que estão noutro lado a encimá-la e até já me apetece reformular tudo à volta para valorizar a bela colcha. E lavei tapetes à mão e pus almofadas ao sol. Sei lá. Este calor é bom para isto. É quase como se fosse limpeza a seco. Lava-se, estende-se ao sol e, passado um bocado, está tudo mais do que enxuto. Tenho agora um detergente para a roupa que tem um perfume muito bom, a lavado, fresco, floral, nem sei. Quando pego na roupa ainda molhada e a levo ao colo para a ir estender nas cordas entre árvores, não apenas me refresco como me perfumo. E quando se pega na roupa lavada, seca ao sol, vem um tal perfuminho a roupa limpa, a campo, que fico sempre feliz, com vontade de arranjar mais o que lavar. 

E, no resto do tempo, em especial ao fim do dia, pus-me debaixo de água. Nem sei por quanto tempo mas foi muito. Totalmente debaixo de água. Gosto tanto de estar debaixo de água. Não estava fria, estava morna. Água fria, por estes dias, só a que está no frigorífico. De resto, está tudo morno.


Há pouco, lembrei-me que ainda não tinha apanhado a forra da minha almofada. Não a fronha mas, mesmo, a forra. Tem uma forra almofadada. Hoje também foi para a barrela. Mas como apenas a tirei do detergente (ao qual misturei umas gotas de lixívia) ao fim do dia, quando, à noitinha, vim para dentro, ainda não estava bem seca. E esqueci-me. Por isso, foi já perto da meia-noite que me lembrei dela. Ainda por cima estava longe, estendia-a num lugar onde pensei que lhe daria melhor a aragem. Abri a portada e ia, pé ante pé, descalça, quando me ocorreu que poderia andar por ali alguma cobra silenciosa ou algum daqueles bichos misteriosos que, se calhar, pela calada da noite, saem das grutas e vêm rondar a casa. Deu-me medo. Fui chamar reforços. E, devidamente vigiada (e calçada), lá fui. Mas andar de noite no campo, em zonas onde a luz não chega, dá-me um certo medo. Não se sabe o que está ali pois nada se vê. Sei lá se não há um olhar traiçoeiro a vigiar-me na escuridão. Por isso, fui e vim rapidamente.

E agora aqui estou, nisto, a jogar conversa fora. E já é domingo. Esta primavera foi estranha, o verão está a ser atípico. E a verdade é que, apesar de tudo, não posso dizer que esteja a desgostar até porque, no meio disto, me tornei outra e ser outra é coisa de que gosto.


__________________________________________________________

Pode alguém ser quem não é?


__________________________________________________________

As fotografias integram o grupo das vencedoras do Color Photography Award.

__________________________________________________

A si que está aí desse lado desejo um belo dia de domingo

sexta-feira, abril 17, 2020

Coisas de nada em tempo de confinamento





Dia preenchido demais. E muita chuva. Tanta. De noite acordámos com a sua intensidade. Pareceu-me ouvir dizer ao meu marido, eu meia a dormir e ele provavelmente também, que tinham aberto a torneira. Mas era mais do que torneira, era mangueira, mangueira de espantar manifestante. Muita chuva. Foi todo o dia. Só abrandou ao fim do dia. Quando acabei a última videoconferência ainda chovia. Abri a janela do canto, a que é resguardada, e fui fazer os telefonemas que não tinha atendido. Chovia muito. O meu marido passou por ali e, com o dedo rodando na testa, fez sinal de que sou maluca. Com a cabeça perguntei porquê. Disse em voz baixa e tom censor: 'Com o frio e essa chuva é bom estares aí, de janela aberta'. De facto, quando acabei um dos telefonemas, tive um ataque de espirros. Mas tentei abafar para ele não achar que tinha razão. 


A seguir, sem transição, avancei para a cozinha e pus entrecosto a estufar e, mal ferveu, resolvi ir andar.  Já passava um pouco das oito da noite. Vesti um impermeável e fui para o campo. Felizmente estava apenas uma chuva branda. Telefonei à minha mãe, depois ligou a minha filha. Caminhei apressadamente, estava frio, estava a molhar-me.

Regressei a casa. Fui ver se o entrecosto estava quase. Ainda não estava. Voltei à sala e fui responder aos mails, fazer umas aprovações, despachar umas gaitas.

A seguir, já estava a fazer-se tarde e o meu marido já a perguntar a que horas íamos jantar, fui juntar as favas. Esperei que levantassem fervura, baixei o lume e regressei à sala.


Estou cansada. Confinada. Ainda por cima hoje foi dia. Daqueles dias em que um tempo e uma tarefa enervante ocupam parte do dia: à hora de almoço fomos ao supermercado na vila mais próxima. Poucas pessoas, poucas, poucas, e todas de máscara. Curiosamente, apesar da distância, as pessoas quase fogem umas das outras. Como estava com pressa e tendo a ser distraída, cruzei-me com uma senhora que quase deu um salto para o lado para se pôr a uns dois metros de mim. De imediato, nem percebi aquela reacção. Depois é que percebi que a senhora estava, e, se calhar, bem, a distanciar-se de mim. No entanto, estávamos ambas de máscara.

Depois, quando chegámos a casa, foi aquele filme. Uns nervos. Ambos cheios de fome e a ter que cumprir aquele cerimonial absurdo. Sinto-me sempre estúpida a fazer aquilo mas acho que me sentiria ainda mais estúpida se aparecesse doente e pensasse que tinha resultado de ter menosprezado o bicho. E, então, foi levar os sacos para o estúdio, retirar tudo o que não fosse fresco e deixar ali  para ficar de quarentena uns dois ou três dias e, depois, os frescos para casa mas tudo vazado para sacos limpos, a fruta e os legumes lavados e postos de molho em água com um bocado de vinagre, o pão bem como peixe e carne para o congelador. A seguir despimo-nos e banho; e a roupa toda para a máquina. Depois escorrer a água avinagrada, passar as coisas por água corrente, secar tudo bem seco, guardado em sacos limpos, os morangos numa taça.

E a olhar para o relógio a ver que a reunião estava quase a começar, e ele só a receber chamadas. Almoçámos restos, separados pois ele não se despachava com os telefonemas e eu já estava atrasada.

Uma vez mais fui para uma videoconferência com o cabelo molhado. Wet hair. É um estilo. Por acaso até gosto de me ver, arranjada, de brinquinhos, e de cabelo molhado. Mas será para outra ocasião, não para ter uma reunião. Mas paciência. O dress code em teletrabalho pode ter algumas adaptações. Quando acabou o primeiro team meeting da tarde já estava varada de fome. Fui meter na boca um quadrado de chocolate negro a 85% de cacau e, ao mesmo tempo, uma flor de hibisco seca, que não sei se é confitada, se caramelizada. Uma flor mesmo. Óptima. Uma linda flor cor-de-rosa misturada na boca com chocolate negro. Vi no supermercado e não resisti. Nem sabia que eram comestíveis. O meu marido estava incomodado: nem sabes se isso é para comer. Não quero saber. Se não fosse, não vendiam. E estou viva. Portanto, quod erat demonstrandum.

Voltei ao trabalho. A seguir à outra reunião estava na mesma. Quando almoço à pressa e vou trabalhar de seguida, o meu cérebro não percebe que almocei e, então, espermeia como se estivesse na hora de refeiçoar (esta do outro maluco, o super-maluco, refeiçoar, ficou-me; acho que foi a única). Então levantei-me a correr e fui à cozinha: foi a vez de me deliciar com uns quantos cajus com arandos secos. Bom. Também trouxe de lá.

Cenas parvas as que estou para aqui a contar. Mas é que os meus dias são assim: daquilo que mais me marca, não falo, não posso. Há aquilo do silêncio, do dever de reserva -- noblesse oblige. Falo do resto mas, na realidade, das frioleiras fico a achar que não passam disso mesmo.


Entretanto, soube do Luis Sepúlveda e senti outro desgosto. No outro dia o meu marido tinha perguntado por ele, se se sabia alguma coisa. Disse-lhe que eu não sabia mas que, se calhar, já estava em casa, já lá ia muito tempo, já deveria estar bem senão sabia-se. Afinal não. Bicho traiçoeiro. tinhoso, sarnento, este merdinhas do covid. Há-de ser destruído com mata-piolhos mas mesmo para isso há que dar tempo, não se pode pôr dose cavalar senão mata não só o corona mas também outras coisas essenciais dentro da pessoa. Isto de matar vírus, pelos vistos, tem que se lhe diga. O homem que gostava de Portugal e que escrevia histórias boas de imaginar já não as escreverá nem contará mais. Mais um escritor que se vai e mais uma vida que o vírus piolhoso levou.


E, tirando isso, muita coisa: o anunciado regresso à nova normalidade com as dúvidas que isso trará, o vírus que, segundo o Trump, é fabricado pelos chineses, os quais, Trump à parte, também não são flor que se cheire, o Bolsonaro que demitiu o ministro da Saúde o que é bem feito para o ministro, que quem apoia o anormal do Bolsonaro merece mesmo é ser destratado, a dor que tenho na mão e não sei porquê, se calhar dei mau jeito com saco pesado demais, não sei, não faço ideia, só sei que me dói que se farta, e não é bem a mão, é mais o pulso, e ainda os amigos ditos improváveis que, à hora a que escrevo, estão na televisão a mostrar que o mundo é grande e nele cabem todos, e a chuva que ouço cair, sempre esta copiosa chuva, o gato que ouvi miar alto aqui perto, quem chamaria ele?, e também as saudades que tenho, muitas, muitas, as muitas dúvidas que me assaltam, as perplexidades com tantas coisas, os livros que não consigo ler, o tempo que passa a correr, o frio que faz e eu que me apetecia tanto estar estendida ao sol. Coisas assim.


-------------------------------------------------------------------

E mais isto, tão bom, tão bonito.

Dire merci

______________________________________________________________________

As fotografias são fotografias do dia do National Geogarphic e a June Tabor está cá porque eu gostava que esta casa também fosse a casa dela.
__________________________________________________________________

Uma boa sexta-feira para si que aí está a aturar-me.

Saúde.

sábado, abril 11, 2020

Quinta-feira santa, dia de quase milagre: o gato cor de mel veio na minha direcção, aproximou-se, senti a sua hesitação e vontade






Estava a andar lá em baixo, longe, sozinha, devagar, por entre as árvores, alheada de tudo, vendo as florzinhas, a luz a dar num caule, a translucidez de uma folha trespassada pelo dourado do fim da tarde, as pétalas derramadas sobre a rocha ainda molhada pela chuva de ontem, baixando-me para fotografar rente ao chão ou para passar a mão e sentir o perfume quando despertei para os sons ocultos.

Um pássaro soltando as asas para se ajeitar devagar dentro da árvore, duas rolas afastando as ramagens para voar para longe, um rastejar ao de leve, pequenos sons de algum pequeno animal que se esconde, um insecto que vagueia por entre as flores. Sons íntimos, quase inaudíveis. A caruma molhada está macia, abafa o som dos meus passos vagarosos, sou apenas uma sombra que desliza em estado de puro encantamento. 


Antes tinha estado deitada na espreguiçadeira sob a figueira grande. Quando o sol estava franco, despi-me e fiquei a sentir o sol. Colocava o livro em frente para conseguir ler e para me fazer sombra na cara e, às tantas, pousei o livro aberto para me tapar os olhos e adormeci. Já aqui o disse muitas vezes mas digo-o de novo. Gosto muito de estar deitada, à tarde, a ler, ao sol, e depois sentir o sono a chegar devagar. É como se o estado de inconsciência viesse devagar, pelas mãos condescendentes da minha consciência. 


Quando acordei, estava frio e o sol estava escondido atrás de uma nuvem escura e grande. Tive que me vestir. E ali fiquei a ler, tranquila. Tenho este livro comigo há que tempos e abro e leio ao acaso e a descaso e sempre me agrado com a inteligência e mestria do seu autor. E elegância e sensibilidade. Por vezes leio e sei que já li antes. Mas leio na mesma, não me canso. Há uma tal fertilidade no verbo que é como a natureza, por muito que a contemple, sempre tenho é vontade de ver mais de perto. Por vezes, pego no telemóvel para ver as pinturas de que ele fala. Releio o texto depois de ter visto a imagem, releio com outro olhar, depois vou ver de novo a imagem e vejo-a já com outro saber. Há nesta delonga um duplo prazer, o da arte nas palavras e o da arte nas imagens.

E, então, à medida que ia saboreando devagar cada palavra, fui-me dando conta, de novo, dos sons. Poderia dizer: do silêncio. Mas não, não é silêncio. É o canto dos pássaros. É o que parece ser riso de uma criança, muito ao longe. Apuro o ouvido: é mesmo a voz de uma criança. Deve vir da aldeia lá longe, a uns dois ou três quilómetros, com um vale pelo meio. E o som da sua voz chega até aqui. Depois um sino ainda mais longe. Talvez venha da serra. Depois um cão que ladra não se sabe onde. Envoltos em silêncio, chegam-me, suaves, os sons do campo nestes dias em que a vida, por todo o mundo, se recolheu. A natureza está entregue a si própria, em liberdade, como se estivesse a regressar ao início dos tempos.


Passado algum tempo, como já estivesse a ficar frio, fui a casa agasalhar-me e voltei para a rua. Fui caminhar lá para baixo. 

O tempo vai passando devagar. Já lá vão quatro semanas. Nunca antes aqui tínhamos estado tanto tempo de seguida. Tantas vezes, nesses longínquos tempos antes do covid, desejei não ter que me ir embora naquela hora em que o sol, pondo-se na serra ao longe, derramava uma luz dourada que vinha de lá, lentamente, pelo vale, até aqui. Tantas vezes quis estar aqui, sem pressa, sem ter que abandonar a quietude e as cores e o canto dos pássaros. E agora aqui estou. 


Fui, pois, lá para baixo. Gosto de respirar fundo enquanto caminho. Inspiro profundamente, retenho, expiro devagar. E de novo. E de novo. E de novo. O ar puro e perfumado circulando dentro de mim. Cheira a eucalipto, cheira a pinheiro, cheira a alecrim, cheira a rosmaninho, cheira a caruma molhada, cheira a voo de borboleta, cheira a canto de passarinho, cheira a luz acobreada do sol a pôr-se, coalhando em mil brilhos sobre os cedros e sobre as flores.

E, então, indo eu nesta levitação, sinto-me olhada. Parei.


O gato branquinho e cor de mel raiado estava parado no caminho, um pouco mais à frente. Sem se mexer. Eu também parada. Depois veio, devagar, na minha direcção. Eu arrepiada. Ele a olhar para mim, andando devagar. Eu sem saber o que fazer.

Muito devagar, com medo de o assustar e quebrar o feitiço, levantei a máquina e fotografei. Nessa altura mudou de ideias, voltou atrás, devagar. Ainda fiz bjjjjj-bjjjjj-bjjjjjjj, baixinho, baixinho. Olhou para trás, parou, depois seguiu. Virou à direita, para outro caminho.


Senti que um dia, talvez não falte muito, virá mesmo ao pé de mim. O que farei eu, se isso acontecer? Baixo-me? Espero que se abeire, que se encoste a mim? Faço-lhe umas festa? Nunca fiz uma festa  a um gato. Gato é bicho arisco. Tenho medo. Talvez não medo, talvez respeito. Um dia uma pessoa muito especial disse-me que os gatos são deuses. E eu acreditei. Não se faz uma festa a um deus. Não sei o que farei se o gato cor de mel vier ter comigo. Não sei o que espera ele de mim. O cão é bicho mais humano, sei lidar com cão, cão é bicho igual. Gato não, gato não sei, é bicho distante, bicho superior, desconheço o íntimo de bicho assim, bicho que tem o seu quê de melancólico, não sei como pensa, não sei como sente. 


Depois regressei a casa. O sol estava a pôr-se. Os pássaros cantavam com maior alegria. Talvez seja a forma de se despedirem antes de se recolherem. É a hora mais misteriosa, a hora dos segredos, dos murmúrios, da saudade.


Quando regressei, fui fechar o portão que dá lá para baixo. Em tempos, antes de termos a vedação em parte do terreno, este era o único portão. Era uma maneira de tentarmos evitar que os caçadores se acercassem da casa. É um portão alto, de ferro, desenhado por mim. Agora não tem grande justificação. Mas ainda mantemos o hábito de o fechar.

As luzes da casa já estavam acesas e eu, de fora, fotografei os reflexos na porta de vidro. O meu marido admira-se, nunca percebe o que ando eu a fazer durante tanto tempo lá por baixo, lá por tão longe, diz sempre que eu não devia. Mas devia, devia sim. Os sons do anoitecer atraem-me. Tudo o que desconheço me atrai.


E agora que coloco aqui a fotografia vejo que o céu que se vê está azul claro como se não estivesse a anoitecer. E, no entanto, a penumbra já tinha descido da serra. Um milagre. E é nestes milagres que eu acredito, os que trazem os mistérios envoltos em surpresa e beleza. 

____________________________________

E, por falar em beleza...


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

A todos desejo um sábado muito bom