Mostrar mensagens com a etiqueta John Berger. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta John Berger. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, setembro 20, 2018

Irresistíveis tentações




No primeiro dia fui logo a uma livraria. Estava sem tempo mas não consegui deixar de ir. Estava sem disponibilidade para passarinhar calmamente, para folhear, espreitar, tomar-lhe o pulso. Ao entrar, olhei o relógio e hesitei: entrar para quê, sem tempo? Mas foi mais forte. Ainda assim trouxe o livro do Manuel Alegre, 'Todos os Poemas são de Amor' e o da Hélia Correia, 'Um Bailarino na Batalha'. E trouxe-os só porque sim, só porque não podia deixá-los lá ficar e porque, de certeza, iria gostar mesmo que nem de tudo ou não muito de tudo. 

No dia seguinte, cruzei-me com a mulher com andar de passarinho em terra. Hélia Correia que, quando escreve, escreve como se desenhasse palavras no céu e que, quando fala, fala com assertividade e luvas de combate, quando anda, vai hesitante, o corpo pouco afirmado. Forço-me a pensar: 'Também já não é uma miúda, já vai para os setenta'. Mas não é isso, é mesmo aquela sensação de que não estará muito habituada a andar com os pés em terra, como se o seu mundo fosse o das brumas imateriais. Pensei: 'Hoje é que devia ter aqui o livro'. Mas fiquei a pensar: 'Se o tivesse, iria maçá-la? Teria o direito de ir interromper o seu caminho? Acho que não. Que futilidade absurda a minha se me achasse com o direito a interromper o seu andar para lhe pedir que escrevesse o seu nome...'

Regressei, pois, à minha vida na cidade, nas torres cristalinas, regressei àquele mundo em que os problemas se sucedem, em que há sempre coisas para decidir, assuntos para encaminhar, agendas para compatibilizar. Não há tempos mortos. Por isso não tenho tempo para pensar na aridez que são esses momentos quando comparados com os passeios no meu bosquezinho atapetado, tão perfumado, tão feliz para os pássaros que lá habitam e para mim.

Felizmente, de vez em quando, uma inesperada conversa sobre um poema ou sobre uma estranha opção na tradução de uma antiga expressão vem atenuar a falta de ar puro. Mas é insuficiente. E, então, fui de novo à livraria. Sempre com pouco tempo mas, desta vez, forçando-me a algum vagar, mesmo que breve vagar, para olhar com olhos de ver.

E vi 'Ru' de Kim Thúy. Não conheço, nunca tinha sequer ouvido falar. Foi a capa. Foi o que li na contracapa. Foi ter lido que Ru -- que em francês quer dizer 'riacho' ou 'torrente' -- significa 'canção de embalar' em vietnamita. E foi, ao espreitar-lhe a alma, ter gostado do que li. E ter gostado da paginação. Sou sensível a coisas assim. Como nos perfumes sou sensível ao nome ou ao desenho do frasco. Trouxe.

E também 'O regresso' de Hisham Matar. Ignorante, chegada do campo, sem conhecer autor, sem saber de novidades, só chegada a desenho de capa. Este tem passarinho abstracto e umas cores simples que logo puxaram por mim. E depois história real, coisa em cru. Gosto de coisas cruas. Trouxe.

E mais. Outro.
Um delírio. Só coisa imprevista, só coisa tentadora. Três semanas fora e tudo isto, assim. Surpresa atrás de surpresa. Não necessário novo de nascimento. Novo de coisa inusual ali no meio de tanta letra vazia. 
Desta vez  'Dicionário do Diabo' de Ambrose Bierce, prefaciado pelo casto abade de Belém, que Deus me perdoe que até gosto do que ele escreve, mas parece que quando lhe cheira a pecado, logo estende a sua platónica bênção. 'O Dicionário do Diabo é um manual de guerrilha contra o conformismo', escreveu Mexia. E a encadernação? E as ilustrações? Preciosas. Pois bem: trouxe.

E quando pensava que já estava saciada e que o melhor era parar de olhar já que, como se sabe, quem muito olha sempre acaba por ver, um outro: 'Confabulações' de John Berger. A capa: muito boa. E que não fosse. John Berger. Só ele vale um delíquio. Abri e aquela vertigem de quando estou à beira de ceder à tentação de me despenhar já se fazia sentir. Tudo o que li me fez amar este livro. Claro: trouxe.

Enquanto ia pegando neles, objectos preciosos, ia pensando que nunca conseguirei deixar de procurar novos livros. É um luxo supremo, o de nos rodearmos de palavras, de ideias, de mentes livres, da melodia misteriosa que se desprende das páginas, do gosto bom de ter um objecto material, um objecto que tem origem numa árvore. 

E trouxe ainda mais dois. Mas a conversa vai longa e eu estou cansada. A vida não é fácil e o dia que já entrou também não o será. Pode ser que me apareça alguém que me fale de poetas ou posso eu ver espaço para falar de silêncio, de bibliotecas, de luz. Seja como for, se calhar não faz muito sentido eu, em vez de ir descansar, continuar aqui a escrever como se não houvesse amanhã.


.................................................................................................

Nós fomos noite e noite até ser dia
nós fomos noite e a noite fomos nós
fomos a noite e os corpos e esses nós
com que a noite se atava e desfazia

fomos a noite e o que sobrava dela
e o que sobrava dela foram luas
que circulavam à volta de uma estrela
ora nas minhas mãos ora nas tuas.

[de Manuel Alegre]


Houvera noites cheias de estrelas muito baixas, tão baixas que dir-se-iam ao alcance da mão. Depois, a lua regressara e, aos poucos, ia ocupando o céu com a sua luz. Fazia, pois, meio mês que vagueavam. E, como os homens tinham garantido que estavam sem semente para deitar, que a fadiga e a fome os transformavam em eunucos de toda a confiança, dormiam todos na frescura, desenhando, sem o saberem, uma flor, um girassol.


[de Hélia Correia]


Apesar de todas essas noites em que os nossos sonhos escorriam pelo soalho inclinado, a minha mãe continuou a ambicionar um futuro para nós. Arranjou um cúmplice. Ele era jovem e sem dúvida ingénuo, pois ousava exibir alegria e desenvoltura no meio do monótono vazio do nosso quotidiano.


[de Kim Thúy]


Ali estava ela, a terra. Cor de ferrugem e amarela. Da cor da pele acabada de sarar. Talvez eu pudesse finalmente ser libertado. a terra tornou-se mais escura. Rebentos de vegetação verdes cobrindo levemente as colinas. E, de repente, o mar da minha infância.Os exilados romantizam tantas vezes a paisagem do seu país natal! Eu preveni-me contra isso.


[de Hisham Matar]


Política, n. Um meio de subsistência a que recorre a franja mais degradada das nossas classes criminosas. Uma luta por interesses disfarçada de disputa por princípios. A gestão dos negócios públicos para obter vantagens privadas.

Político, n. Uma enguia no lamaçal basilar sobre o qual a super-estrutura da sociedade organizada é erigida. Quando se contorce, confunde a agitação da cauda com o estremecimento do edifício. Comparado com o estadista, tem a desvantagem de estar vivo.


[de Ambrose Bierce]


Na semana passada, quando te estava a ver e a ouvir atuar, Yasmine, tive um impulso de te desenhar. Um impulso absurdo, porque estava demasiado escuro; não conseguia ver o bloco de desenho nos meus joelhos. Houve momentos em que rabisquei sem olhar para baixo ou sem tirar os olhos de ti.


[de John Berger]

................................................................................................

Só um bocadinho de John Berger para eu matar saudades


......................................

As pinturas que fui buscar para aqui ter entre os livros são de Hai Ja Bang e viémos ao som de Händel - Yet can I hear that dulcet lay - com Bejun Mehta

.......................................

quarta-feira, abril 26, 2017

Desenha-me





Desenha-me. Olha para mim e vê o que se esconde debaixo da minha pele. Olha os meus olhos. Vê se há lagos dentro de mim. Se os descobrires, percorre as minhas margens, mergulha nas minhas águas. Olha o vagar com que as minhas pálpebras se movem, as pestanas. Olha-as. São, talvez, ramos que as árvores que se debruçam nas margens entregam para que as encontres, os meus braços chamando por ti. Olha para mim de outra maneira. Cobre-me de verde. Vê se há em mim montanhas imensas, mistérios silenciosos, o aconchego dos leopardos, varandins, mares, lonjuras, horizontes só teus. Espreita bem. Descobre-me.

Desenha-me. A minha boca. Olha bem para ela. Passa os teus dedos devagar nos meus lábios. Sente a pele, sente a macieza vermelha e húmida que se esconde do olhar esperando que os teus dedos ou os teus lábios ou a tua língua a procurem. Olha como os meus lábios se abrem com o riso, como se mordem com a impaciência da espera. Sente o meu sabor.

Desenha-me. Afasta o cabelo da minha testa, olha-me bem. Afasta o cabelo do meu pescoço. Observa a curva da nuca. Vê como o sol se refecte na minha pele. Aproxima-te. Vê a tua sombra em mim. Olha como deixo que te aproximes. Toca a minha pele. Passa a tua mão pelo meu braço, pelas minhas costas, pelos meus seios, pela curva do meu ventre. Baixa-te. Espreita-me. 

Desenha-me. Fala devagar palavras que venham de dentro de ti, inventa palavras para mim. Olha-me nos olhos, toca-me, cobre-me com a música do teu olhar, cobre-me com a doce toada das tuas palavras. Olha como fecho os meus olhos para melhor sentir a tua presença. Chega-te a mim. Cheira-me. Diz que cheiro a erva fresca, a laranjas, à aragem que faz dançar os pinheiros, ao fundo do mar. Cobre-me com o perfume das flores, com o canto dos pássaros, com o calor do teu corpo.

Desenha-me. Diz-me que sabes de mim o que eu não sei, inventa-me, pinta-me de azul ou de mar ou de cor de fogo e depois deixa que a luz da tarde tinja os meus cabelos, deixa que se saiba que arde em mim a chama da saudade, ah como me arde esta saudade, deixa que as palavras voem em volta de mim e da tua mão que me pinta, deixa à vista de todos o pássaro inventado que em mim canta e grita e, como um louco, ri sem parar, deixa à vista o meu coração que não sabe esconder-se ou parar de sonhar. Diz-me. Diz-me devagar o que sabes de mim, diz-me devagar que me queres.

Diz-me. Conta-me como me vês. Desenha-me. Com cores. Apenas com traços. Apenas com palavras.

Ou não.

Deixa. Não digas nada. Não faças nada. Não me desenhes.
(Eu já sei como me vês).

__________________________

É assim

Tilda Swinton diz 'Like This' de 'The Essential Rumi' 


_________________


Hung in Time: John Berger desenha Tilda Swinton



___________________________

As imagens mostram trabalhos respectivamente de John William Waterhouse e Leonardo da Vinci

_____________

E aceitem o meu convite e queiram continuar a descer

___________________

Hugo Soares e João Almeida, a geração rançosa que não consegue tirar o sarro pafioso que se lhes colou à pele.
E a companhia que procuro para limpar o espírito: John Berger, Michael Ondaatje


John Berger, “Ways of Seeing”

No vídeo abaixo, John Berger conversa com Michael Ondaatje e o que eu gosto de ouvir falar assim. Podia passar dias a ouvir falar pessoas como eles. Quanto mais a poluição me cerca, mais eu preciso de me isolar junto de quem usa palavras limpas.

Talvez o mal esteja em mim que não sei fugir para onde não se ouçam os comentadores e os deputados descarados ou os homens e mulheres dos aparelhos partidários velhos e relhos. De vez em quando distraio-me e dou por mim, sem querer, a ver na televisão gente como um tal Hugo Soares do PSD que, qual Kardashian da política, é conhecido por ser conhecido (e tem como currículo o ser do aparelho do PSD e aparecer a dizer coisas que não significam nada ou que, desinspiradamente, tentam reescrever a história) ou o João Almeida do CDS que, por mais barba que deixe crescer, nunca perde o ar de bebé chorão que não tem um uma ideia fresca naquela cabeça.


Cansa-me tanta falta de qualidade. Cansa-me a Cristas que não tem vergonha e tenta desesperadamente falar por parangonas, cansa-me a Leal ao Coelho que é um dos poucos animais sem vida que o PSD ainda arrasta juntamente com um póstumo Passos Coelho, cansa-me toda essa gente que não percebe que não acrescenta nada, que deslustra a política.

Por isso, agora, a ver se me animo, tenho estado entretida a ouvir gente inteligente. É tão bom ouvir ou ler as palavras de gente inteligente. 

Deixem que partilhe convosco.

John Berger conversa com Michael Ondaatje


___

Michael Ondaatje: a música nas palavras



_____________


___