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segunda-feira, fevereiro 13, 2017

Um fim de semana simples, recheado de pequenos prazeres




Dias bons, quase tranquilos. Campo, família, descanso, concerto à noite, passeio, algumas obrigações, alguns tpc a contragosto ainda por fazer e, imagine-se, até o Expresso. Saber que tinha que ir no carro sem livro para ler deu-me vontade de transgredir. Na estação de serviço lá aconteceu. Pequei. 

Foi mais pelo Lobo Antunes. Mas, como seria expectável, nada de novo. Anda há mil anos a dar entrevistas e a dizer a mesma coisa. As vezes que eu já li que um esquizofrénico, lá no hospital, foi ter com ele e lhe disse que o mundo começou a ser feito por trás. E narcisista que só ele. Para além disso, continua numa de ciumeira do Saramago que já não faz qualquer sentido. Engraçado e novidade foi saber que há um outro, tão maluco como ele, um americano, que está a estudá-lo e que, para tal, passa os dias a olhar para ele. Não falam. Depois vão almoçar juntos. E lê as folhinhas maradas que ele escreve. Um filme. Também novidade (pelo menos para mim), mas esta desagradável, ele ter tido mais dois cancros nos pulmões nos últimos três anos. Ainda por cima, continua a fumar.


Depois, o campo. Húmido, quase a sentir-se o vapor a sair da terra. Musgos, folhagens, cogumelos. O alecrim florido, delicado, tão bonito. Algumas árvores a começarem a querer despontar. A natureza, fêmea fértil. Sempre uma pena não poder estar aqui, acolhida, junto às árvores e aos bichos. Estou tão pouco tempo aqui. Tanto tempo perdido no trânsito e noutras coisas em que nem vale a pena falar e tão pouco num lugar onde me sinto sempre tão bem. 

De resto, bom, bom mesmo foi ter estado a ler ao pé do calorzinho bom da salamandra. Tão bom aquele calor tão orgânico, aquela luz quente e perfumada da madeira. Chá quente, lúcia-lima. Podia ter pegado num dos livros de lá mas estava mesmo para ler a revista do Expresso. Estava curiosa de rever a opinião de algumas vacas sagradas. E também a opinião a propósito de uma vaca sagrada. Refiro-me ao Paul Auster. Livro novo, 870 páginas. '4321'.
Por vezes -- já para não dizer muitas vezes -- sinto-me desalinhada dos bem pensantes. Confirmo, nessas alturas que não tenho vocação para intelectual e, nessas alturas, interrogo-me sobre que componente da inteligência me faltará. Inteligência lógica e racional, acho que tenho qb, inteligência emocional, também acredito que chega. Mas falho, certamente, em alguma que é determinante. Reportando-me ao artigo 'Veja aQI se é mesmo inteligente' de Isabel Leiria, e vendo a quantidade de inteligências identificadas, estou capaz de apostar que falho na existencial.

Toda a gente gosta de Paul Auster. De cada vez que sai um livro, é uma festa. A Luciana Leiderfarb diz maravilhas (o link é para uma entrevista, não para a referida recensão). E, no entanto, eu não apenas não vou comprar o livro como não vou sentir falta. E isto de certeza absoluta. Se nunca achei grande graça aos outros e raros foram os que consegui acabar dos mais pequenos, imagine-se se ia massacrar-me com um pesadelo daqueles nas mãos. Acho uma escrita banal, parece que não acrescenta nada, parece que não tem sentido estético na escrita. Não sei. Há ali uma falta de elegância ou falta de originalidade. Não sei dizer, não sou crítica literária. Antes eu ainda me dava para tentar ler os produtos das vacas sagradas. Agora já não. Tudo o que me cheire a seca, fica de lado.


Em contrapartida, uma boa notícia: livro de Raduan Nassar. Não é novo na raiz: é novo cá. Menina a caminho. Gosto da escrita dele. Há ali o prazer das palavras, a inteligência de quem sabe confeccionar uma história com pouco condimento. Gosto.


No jornal principal ainda não peguei, não tive tempo nem curiosidade. No da economia muito menos. A ver se folheio não vá saltar de lá alguma coisa que valha a pena. 

Às vezes penso que se eu fizesse um jornal não era nada disto. nada, nada, nada. Mas se calhar penso assim porque sou de outro tempo e tenho falhas na inteligência. 
Ao almoço, no restaurante, o meu marido viu-me a espreitar o telemóvel. Não me censurou apenas por pudor. Interrogou-me. Expliquei-lhe que a diferença nisto é que eu sou uma millennial e ele um baby boomer. Não tenho culpa mas é o que é. Mas, vá lá, riu-se e acho que, agora que sabe a explicação, vai passar a perceber melhor os meus hábitos. 
Adiante. Também bom, à noite, antes de ir para o concerto, passar pela gelataria na avenida de Roma e comer um belo gelado de chocolate fondant. Que bom estes pequenos prazeres. Um gelado numa noite fria e molhada é do melhor que há.

Depois o concerto da União das Tribos (ver post já abaixo). Uma energia fantástica, uma força contagiante. No fim todos a cantarem de pé, banda e público. Muito bom. Os senadores (Tim, António Manuel Ribeiro, etc) apadrinharam, no palco, esta nova banda que arranca com uma empatia com o público que só pode ser um excelente augúrio.


Este domingo fomos às compras com dois dos meninos. O mais pequenino claro que ficou em casa com os pais, come e dorme e, de vez em quando, olha o que o rodeia com algum espanto. Anda de colo em colo como um bonequinho fofo.

(Sobre esta ida às compras talvez escreva post autónomo. Logo vejo.)

Ainda tenho alguns compromissos e trabalhos para fazer (por exemplo, tenho que, em casa dos meus pais, conferir com a minha mãe as facturas deles no e-factura, e, de volta a casa, tenho que fazer um relatório e ainda uma apresentação) e, ainda, sopa e um estufado, e pôr a roupa a lavar e etc. E está tudo bem e em paz. E, cá para mim, a vida não tem que ter muito mais que isto para uma pessoa se sentir bem. Mas, lá está, capaz de ser aquela tal falta de algumas componentes da inteligência.


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E um filme que me agrada.


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Fotografias feitas in heaven.

A música lá em cima mostra Alisa Weilerstein and Barnatan interpretando Rachmaninov - Sonata for Cello and Piano in G Minor

O vídeo já aqui acima é Temptations de Mohammed Elnabarawy

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segunda-feira, outubro 03, 2016

Lavoura arcaica






Onde tinha eu a cabeça? que feno era esse que fazia a cama, mais macio, mais cheiroso, mais tranquilo, me deitando no dorso profundo dos estábulos e dos currais? que feno era esse que me guardava em repouso, entorpecido pela língua larga de uma vaca extremosa, me ruminando carícias na pele adormecida? que feno era esse que me esvaía em calmos sonhos, sobrevoando a queimadura das urtigas e me embalando com o vento no lençol imenso da floração dos pastos? que sono era esse tão frugal, tão imberbe, só sugando nos mamilos o caldo mais fino dos pomares? que frutos tão conclusos assim moles resistentes quando mordidos e repuxados no sono dos meus dentes? que grãos mais brancos e seráficos, debulhando sorrisos plácidos, se a varejeira do meu sonho verde me saía pelos lábios? que semente mais escondida, mais paciente! que hibernação mais demorada! que sol mais esquecido, que rês mais adolescente, que sono mais abandonado entre mourões, entre mugidos! onde eu tinha a cabeça? não tenho outra pergunta nessas madrugadas inteiras em claro em que abro a janela e tenho ímpetos de acender círios em fileiras sobre as asas úmidas e silenciosas de uma brisa azul que feito um cachecol alado corre sempre na mesma hora a atmosfera; não era o meu sono, como um antigo pomo, todo feito de horas maduras? que resinas se dissolviam na danação do espaço, me fustigando sorrateiras a relva delicada das narinas? que sopro súbito e quente me ergueu os cílios de repente? que salto, que potro inopinado e sem sossego correu com o meu corpo em galope levitado? essas as perguntas que vou perguntando em ordem e sem saber a quem pergunto, escavando a terra sob a luz precoce da minha janela, feito um madrugador enlouquecido que na temperatura mais caída da manhã se desfaz das cobertas do leito uterino e se põe descalço e em jejum a arrumar blocos de pedra numa prateleira: (...)

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Excerto do surpreendente (e envolvente) livro 'Lavoura arcaica' de Raduan Nassar, prémio Camões 2016.


Maria Bethânia interpreta Melodia Sentimental de Dora Vasconcellos / Heitor Villa-Lobos

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E queiram ir descendo, por favor, caso vos apeteça ver navios e o MATT pousado na margem


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segunda-feira, junho 06, 2016

Na cama





Por uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo (...)

(...) e eu ia e vinha com os meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por uns instantes até o banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela já teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me cbria, e logo fechava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia), e com isso fui repassando sozinho na cabeça as coisas todas que fazíamos, de como ela vibrava com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e sórdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de gritar "é este canalha que eu amo", e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pêlos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, as nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração, e de olhos fechados, largando a imaginação nas curvas desses rodeios, me vi também às voltas com certas práticas, fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre, atendia precoce a um dos seus (dos meus) caprichos mais insólitos, atirando em jatos súbitos e violentos o visgo leitoso que lhe aderia à pele do rosto e à pele dos seios, ou fosse aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturação, o fruto se desenvolvendo num crescendo mudo e paciente de rijas contrações, e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegávamos com gritos exasperados aos estertores da mais alta exaltação, (...)


(...) e eu ali, de olhos sempre fechados, ainda pensava em muitas outras coisas enquanto ela não vinha, já que a imaginação é muito mais rápida ou o tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente coisas díspares e insuspeitadas, quando pressenti seus passos de volta no corredor, e foi só o tempo de eu abrir os olhos pra inspecionar a postura correcta dos meus pés despontando fora do lençol, dando conta como sempre de que os cabelos castanhos, que brotavam no peito e nos dedos mais longos, lhes davam graça e gravidade ao mesmo tempo, mas tratei logo de fechar de novo os olhos, sentindo que ela ia entrar no quarto, e já adivinhando seu vulto ardente ali por perto, e sabendo como começariam as coisas, quero dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos.



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Do livro foi feito o filme

Um Copo de Cólera (1999)
- realizado por Aluízio Abranches com Alexandre Borges, Júlia Lemmertz 


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O texto em itálico é um excerto do capítulo 'Na cama' do livro Um copo de cólera da autoria de Raduan Nassar, Prémio Camões 2016.

As fotografias que escolhi para ilustrar o texto são da autoria de Jeff Dunas

Lá em cima Brad Mehldau interpreta Secret Love. As fotografias do vídeo pertencem ao filme O Paciente Inglês

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E aceitem, por favor, o meu convite e desçam até ao post abaixo que fala de cartas e no qual, em concreto, se pode ouvir uma carta muito tocante.

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