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sábado, setembro 14, 2013

Natália era ávida de voos assim. Pelos seus mistérios levantava-se a meio das noites, a meio dos interditos, e subia, como oficiante deslumbrada, a todos os chamamentos. ....... [Onde Fernando Dacosta, no seu livro "O Botequim da Liberdade", recorda o tango na Apolo dançado por Natália Correia e amigos]



Nesse ano Natália dança o tango.







Na Sociedade Alunos de Apolo, das mais antigas colectividades de Lisboa (para onde nos aliciou), todos se entregam aos acordes da música argentina, ritmados por passes que, em alguns, atingem virtuosismos comovidos.

Ela ondula entre eles, com eles, castelã magnífica rodando, volteando devagar em ritual criado por si (para si), que faz dádiva aos que a seguem para lá dos focos de luz.




Uma mulher ainda jovem entra na pista e, concentrada, dança com um bebé ao colo, ternamente apertado nos braços, sorrindo ao sorriso da criança, que a olha de chupeta e pezinho a balouçar, a balouçar.




Maravilhada, Natália reclina-se e dá um beijo na testa do petiz, a mulher (a mãe) pára, e os pares detêm-se e, de súbito, todos a aplaudem, e dão-se as mãos, e deslizam em grupo, e soltam olhares de contentamento, como se deixasse, finalmente, de haver solidão na Terra.

Todos se falam, se compartilham - por farnéis, bebidas, chistes, afectos, todos reverenciam Natália, a deusa, a mátria, a feiticeira, a companheira ali emergida de luminosidades lunares.




Ao fundo, a pequena orquestra - pianola, acordeão, guitarra, saxofone - torna a Apolo uma nave a deslizar, a levitar.

Natália era ávida de voos assim. pelos seus mistérios levantava-se a meio das noites, a meio dos interditos, e subia, como oficiante deslumbrada, a todos os seus chamamentos.




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  • O texto, 'Tango na Apolo, é um excerto do livro "O Botequim da Liberdade" de Fernando Dacosta sobre a forma 'como Natália Correia marcou, a partir de um pequeno bar de Lisboa, o século XX português'.

  • As fotografias acima são de Jan Saudek (de quem já aqui mostrei ontem fotografias) excepto a da mulher amamentando que é da própria Sarah Saudek
  • O primeiro tango é Mariposa da autoria de Ernesto Lecuona interpretado pelo Grupo Corpo

  • O último tango é a versão instrumental de Hernando's Hideaway colocada sobre a interpretação de Shakira do Tango do Pecado

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O Botequim

A última grande tertúlia de Lisboa - que marcou cultural e politicamente várias décadas portuguesas - teve lugar no Botequim, bar do Largo da Graça criado e projectado por Natália Correia.



Natália Correia e a sua cigarrilha,
uma imagem de marca




Nele fizeram-se, desfizeram-se revoluções, governos, obras de arte, movimentos cívicos; por ele passaram presidentes da República, governantes, embaixadores, militares, juízes, revolucionários, heróis, escritores, poetas, artistas, cientistas, assassinos, loucos, amantes em madrugadas de vertigem, de desmesura.

A magia do Botequim tornava-se, nas noites de festa, feérica. Como um iate de luxo, navegava-se delirantemente em demanda de continentes venturosos, de ilhas de amores a encontrar. O futuro foi ali, como em nenhuma outra parte do País, festivamente antecipado. Nunca houve, nem por certo haverá, nada igual entre nós


[Excerto do texto da contracapa do referido livro sobre o Botequim e sobre  Natália Correia que nasceu fez esta sexta feira 90 anos]


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Resta-me, por hoje, desejar-vos um belo fim de semana.

sexta-feira, setembro 13, 2013

Bárbara. Ri-te. Só para mim. (La fin de journée est si belle)


Bem. Depois de ter esclarecido os Leitores que me enviaram amostras da sua escrita para eu fazer a sua análise grafológica e depois de me ter passado, mas passado mesmo, com este Governo macabro que parece que só sabe fazer sacanices, e com o facto de terem que ser as pessoas decentes do PSD (e do CDS) a fazer oposição, enquanto o Tozé anda por aí a fazer nem sei o quê, tenho que tentar distrair-me. Odeio ir para a cama irritada.

Por isso, se querem saber do que acima falei, é a seguir, no fim disto que agora estou a escrever.

Mas, isso é depois. Aqui, agora, a conversa é outra. Mudança de tercio.

»»»«««


A maioria das pessoas que conheço, quando tem hipótese de escolha, prefere sentir-se em terra firme, instalar-se na chamada zona de conforto.

Exemplifico: se estamos a passear, a maioria prefere deslocar-se por percursos que conhece e que sabe onde começam e acabam; se estamos num restaurante, a maior parte pede pratos que conhece ou que, pelo menos, antecipa o que é; se estamos numa livraria, a maior parte das pessoas que conheço prefere procurar livros de autores que conhece ou livros de que ouviu falar; se falamos de pintura, a grande maioria identifica-se mais com pinturas em que se percebe ou reconhece o tema.

Para o bem e para o mal, sou o contrário. Se estou a passear, o que me atrai é meter-me por sítios que desconheço, num restaurante, quanto mais imperceptível ou bizarra a combinação culinária, mais vontade tenho de experimentar, numa livraria percorro as estantes à procura daquilo de que nunca ouvi falar e, na pintura, já muitas vezes aqui o disse, quanto mais abstracto ou improvável mais me atrai.

E cada vez mais. Nunca fui conservadora, tradicional mas, à medida que avanço no tempo, mais radical estou: estou cada vez mais farta estou do banal, do déjà vu. Claro que é um radical à minha maneira mas, enfim, radical ainda assim.

Pego nos livros e quase tudo me parece historiazinhas de nada, conversa da treta, vacuidades, habilidadezinhas retóricas, transcrições de coloquialidades sem qualquer interesse, dissertações pseudo-filosóficas, mas uma filosofia a la Margarida Rebelo Pinto, coisa quase de cabeleireira ou de gente a armar em intelectual, chachadas, nem sei. Folheio, folheio e cada vez menos coisas me atraem. Até que, de vez em quando, dou com coisa inesperadas, umas quase malucas, ou, então, apontamentos, notas biográficas ou auto-biográficas mas escritas de forma natural, sem ser a armar, ou textos limpos ou observações escorreitas, ou poemas vindos de lado nenhum, ou entrevistas em que o entrevistado se deixa ir na conversa e fala, mas fala com inteligência ou saudável irreverência. Coisas assim. Podem achar-me estranha ou o que quiserem mas estou a ser sincera quando digo que o que agrada à maioria das pessoas a mim me cansa, me é quase insuportável.

Deve ser por isso que não consigo ver as novelazinhas que os canais generalistas dão, parece-me tudo igual, já não consigo ver aqueles papagaios armados em comentadores a dizerem disparates com ar de quem inventou a pólvora, tudo uma treta que enjoa. O meu marido está na mesma, agora, tirando um ou outro programa com gente mais inteligente (e no post a seguir a este referi dois), prefere ficar-se pelos programas de culinária, de viagens ou coisas assim (e isto se não houver futebol, senão é por lá que se deixa ficar). Eu também gosto de ver o Masterchef e os Portugueses no Mundo.

Mas, voltando aos livros: não sei se estão a ver aquilo por que passo quando, num jantar ou almoço, com cerca de vinte pessoas à volta de uma grande mesa, a conversa vai para o que andam a ler e todos leram coisas que os outros também já leram e que recomendam, todos no mesmo comprimento de onda, e que eu não li, não tenho em casa, nem nunca na vida vou ler? É cá uma situação… Não posso dizer que é literatura de cordel, que conhecer a vida do personagem é coisa que não me desperta qualquer interesse, que acho que aquilo é uma pepineira sem ponta por onde se lhe pegue (e sei disso porque, não apenas me basta ver a capa, conhecer o autor, como geralmente para não ficar com algum peso na consciência, dou uma vista de olhos pelos livros quando vou às livrarias) pois seria ofensivo para eles que estão a gabar a coisa. Mas, não podendo dizer isso, também não quero passar por brutamontes ou pela inculta da companhia. É que, por outro lado, se me arrisco a falar de alguma coisa que ande a ler, a regra é que seja coisa da qual nunca nenhum deles ouviu falar, passo por ter gostos marginais, olham para mim como se não soubesse o que é bom e andasse às apalpadelas à toa, sem acertar.

Ingrato isto de se ser assim.

Vem isto a propósito de quê…?

Nem sei. Comecei a escrever com alguma em mente e, com a conversa, a coisa varreu-se-me. Não faz mal. 

Vou mas é exemplificar com algumas coisas ao acaso, de que gosto, pouco conhecidas (acho eu) e ficamos por aqui.

««»»


Fotografia do fotógrafo checo Jan Saudek


E, nessa mesma tarde, descobri o maior encanto de Bárbara: o seu riso.

(...)

Olhou-me e riu-se. Ela bem sabia o que ia dentro de mim. Percebeu que o seu riso era uma fascinação e isso fazia-a rir cada vez mais e cada vez melhor. Era uma flor tonta, de pétalas ruivas, esplendorosa de mocidade, transbordante de seiva, toda coberta de gotinhas de orvalho, a flor envaidecida que sente próxima a respiração de quem a aspira. Como as flores, contorcia o caule e excitava o pobre insecto que eu então era.




Enchi-lhe a taça desastradamente mas por querer. Apetecia-me despejar garrafas sobre a minha pobre cabeça, sentir na cara o fervilhar da espuma e apetecia-me ter uma língua enorme que me lambesse a cara toda.

Bárbara, entre risos, debruçou-se e estendeu os lábios para a taça com o fim de aproveitar a espuma que sorveu num beijo. Depois ficou-se a olhar-me a rir-se, com a taça na boca, meia bebida e sem ânimo para beber o resto. Despegou-a dos lábios, poisou-a sobre a mesa e eu segui-lhe o movimento da mão. Na borda do vidro, vi um semicírculo húmido que marcava o contorno da boca de Bárbara no sítio onde a tivera colocada. Senti as narinas tremerem e as pálpebras negarem-se a estar levantadas. Peguei na taça dela, ergui-a, rodei-a voltando para mim a marca dos lábios de Bárbara e adaptei a minha boca ao sinal que ela deixara.

Bárbara vira e seguira todos os movimentos que fiz. Bebi golo a golo, freneticamente devagar, com os olhos postos nos dela. Bárbara, que sempre se rira, pusera-se mortalmente séria, com os lábios entreabertos, naquela seriedade aflitiva de quem se entrega. Devia ter sentido o mesmo que eu: um tremor febril e um esvaimento total. Possuímo-nos com os olhos.



(...)


Não há palavras que descrevam o riso de Bárbara. Maior tortura do que esta de não a ter junto de mim é a de ser impotente para reconstituir aquele riso perdido. Gasto horas, no silêncio, a chamar por Bárbara. A pedir-lhe que se ria. Vejo-lhe os cabelos a flutuarem como labaredas, vejo-lhe os olhos inocentes, a graça sem artifício, simples e atraente, vejo as quase imperceptíveis sardas que lhe descobri na pele, vejo-lhe os dentes brancos e certos, a linha infantil dos ombros, a gola do vestido verde, tudo, mas não lhe vejo o riso. Bárbara. Ri-te. Só para mim.



«  --   »

Excerto do maravilhoso 'Bárbara Ruiva' de Rómulo de Carvalho, com ilustrações de Helena Abreu e Prefácio de Manuel Gusmão da Editora Página a Página].


As fotografias que escolhi para polvilhar o texto, igualmente maravilhosas, são do fotógrafo Jan Saudek que nasceu em 1935 em Praga.


Claro está que a adjectivação revela o meu gosto pelas coisas inesperadas e belas]


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E agora música: Alison Goldfrapp com Drew de Tales of us


(Aconselho que não apenas a ouçam mas que vejam o vídeo. 
Maravilhoso também, diria eu se não temesse repetir-me)




«   ...   »
                                           

E, de novo mas, agora, sem tradução, a poesia de Michel Houellebecq



                                                       Un matin de grand clair beau temps
                                                       Tous remplis de pensées charnelles
                                                       Et puis le grand reflux du sang,
                                                       La condamnation essentielle;

                                                       La vie qui s'en va en riant
                                                       Remplir des entités nouvelles,
                                                       La vie n'a pas duré longtemps,
                                                       La fin de journée est si belle.




Pavla Poses for The First and Last Time, 1978

Jan Saudek


»»»»»«««««


Permito-me recordar que, para temas desagradáveis sobre o infame Governo de Passos Coelho que até quase leva à loucura a ex-líder do PSD, Manuela Ferreira Leite, é descerem um pouco mais. Mas não sei se será boa ideia. Só se depois voltarem outra vez aqui para tirarem o mau sabor da boca.

Para um esclarecimento sobre grafologia, é ainda mais abaixo.

E nada mais por hoje.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma sexta feira em grande estilo. 

Be happy que isso é que importa, o resto é conversa!