Bem. Depois de ter esclarecido os Leitores que me enviaram amostras da sua escrita para eu fazer a sua análise grafológica e depois de me ter passado, mas passado mesmo, com este Governo macabro que parece que só sabe fazer sacanices, e com o facto de terem que ser as pessoas decentes do PSD (e do CDS) a fazer oposição, enquanto o Tozé anda por aí a fazer nem sei o quê, tenho que tentar distrair-me. Odeio ir para a cama irritada.
Por isso, se querem saber do que acima falei, é a seguir, no fim disto que agora estou a escrever.
Mas, isso é depois. Aqui, agora, a conversa é outra. Mudança de tercio.
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A maioria das pessoas que conheço, quando tem hipótese de escolha, prefere sentir-se em terra firme, instalar-se na chamada zona de conforto.
Exemplifico: se estamos a passear, a maioria prefere deslocar-se por percursos que conhece e que sabe onde começam e acabam; se estamos num restaurante, a maior parte pede pratos que conhece ou que, pelo menos, antecipa o que é; se estamos numa livraria, a maior parte das pessoas que conheço prefere procurar livros de autores que conhece ou livros de que ouviu falar; se falamos de pintura, a grande maioria identifica-se mais com pinturas em que se percebe ou reconhece o tema.
Para o bem e para o mal, sou o contrário. Se estou a passear, o que me atrai é meter-me por sítios que desconheço, num restaurante, quanto mais imperceptível ou bizarra a combinação culinária, mais vontade tenho de experimentar, numa livraria percorro as estantes à procura daquilo de que nunca ouvi falar e, na pintura, já muitas vezes aqui o disse, quanto mais abstracto ou improvável mais me atrai.
E cada vez mais. Nunca fui conservadora, tradicional mas, à medida que avanço no tempo, mais radical estou: estou cada vez mais farta estou do banal, do déjà vu. Claro que é um radical à minha maneira mas, enfim, radical ainda assim.
Pego nos livros e quase tudo me parece historiazinhas de nada, conversa da treta, vacuidades, habilidadezinhas retóricas, transcrições de coloquialidades sem qualquer interesse, dissertações pseudo-filosóficas, mas uma filosofia a la Margarida Rebelo Pinto, coisa quase de cabeleireira ou de gente a armar em intelectual, chachadas, nem sei. Folheio, folheio e cada vez menos coisas me atraem. Até que, de vez em quando, dou com coisa inesperadas, umas quase malucas, ou, então, apontamentos, notas biográficas ou auto-biográficas mas escritas de forma natural, sem ser a armar, ou textos limpos ou observações escorreitas, ou poemas vindos de lado nenhum, ou entrevistas em que o entrevistado se deixa ir na conversa e fala, mas fala com inteligência ou saudável irreverência. Coisas assim. Podem achar-me estranha ou o que quiserem mas estou a ser sincera quando digo que o que agrada à maioria das pessoas a mim me cansa, me é quase insuportável.
Deve ser por isso que não consigo ver as novelazinhas que os canais generalistas dão, parece-me tudo igual, já não consigo ver aqueles papagaios armados em comentadores a dizerem disparates com ar de quem inventou a pólvora, tudo uma treta que enjoa. O meu marido está na mesma, agora, tirando um ou outro programa com gente mais inteligente (e no post a seguir a este referi dois), prefere ficar-se pelos programas de culinária, de viagens ou coisas assim (e isto se não houver futebol, senão é por lá que se deixa ficar). Eu também gosto de ver o Masterchef e os Portugueses no Mundo.
Mas, voltando aos livros: não sei se estão a ver aquilo por que passo quando, num jantar ou almoço, com cerca de vinte pessoas à volta de uma grande mesa, a conversa vai para o que andam a ler e todos leram coisas que os outros também já leram e que recomendam, todos no mesmo comprimento de onda, e que eu não li, não tenho em casa, nem nunca na vida vou ler? É cá uma situação… Não posso dizer que é literatura de cordel, que conhecer a vida do personagem é coisa que não me desperta qualquer interesse, que acho que aquilo é uma pepineira sem ponta por onde se lhe pegue (e sei disso porque, não apenas me basta ver a capa, conhecer o autor, como geralmente para não ficar com algum peso na consciência, dou uma vista de olhos pelos livros quando vou às livrarias) pois seria ofensivo para eles que estão a gabar a coisa. Mas, não podendo dizer isso, também não quero passar por brutamontes ou pela inculta da companhia. É que, por outro lado, se me arrisco a falar de alguma coisa que ande a ler, a regra é que seja coisa da qual nunca nenhum deles ouviu falar, passo por ter gostos marginais, olham para mim como se não soubesse o que é bom e andasse às apalpadelas à toa, sem acertar.
Ingrato isto de se ser assim.
Vem isto a propósito de quê…?
Nem sei. Comecei a escrever com alguma em mente e, com a conversa, a coisa varreu-se-me. Não faz mal.
Vou mas é exemplificar com algumas coisas ao acaso, de que gosto, pouco conhecidas (acho eu) e ficamos por aqui.
E, nessa mesma tarde, descobri o maior encanto de Bárbara: o seu riso.
(...)
Olhou-me e riu-se. Ela bem sabia o que ia dentro de mim. Percebeu que o seu riso era uma fascinação e isso fazia-a rir cada vez mais e cada vez melhor. Era uma flor tonta, de pétalas ruivas, esplendorosa de mocidade, transbordante de seiva, toda coberta de gotinhas de orvalho, a flor envaidecida que sente próxima a respiração de quem a aspira. Como as flores, contorcia o caule e excitava o pobre insecto que eu então era.
Enchi-lhe a taça desastradamente mas por querer. Apetecia-me despejar garrafas sobre a minha pobre cabeça, sentir na cara o fervilhar da espuma e apetecia-me ter uma língua enorme que me lambesse a cara toda.
Bárbara, entre risos, debruçou-se e estendeu os lábios para a taça com o fim de aproveitar a espuma que sorveu num beijo. Depois ficou-se a olhar-me a rir-se, com a taça na boca, meia bebida e sem ânimo para beber o resto. Despegou-a dos lábios, poisou-a sobre a mesa e eu segui-lhe o movimento da mão. Na borda do vidro, vi um semicírculo húmido que marcava o contorno da boca de Bárbara no sítio onde a tivera colocada. Senti as narinas tremerem e as pálpebras negarem-se a estar levantadas. Peguei na taça dela, ergui-a, rodei-a voltando para mim a marca dos lábios de Bárbara e adaptei a minha boca ao sinal que ela deixara.
Bárbara vira e seguira todos os movimentos que fiz. Bebi golo a golo, freneticamente devagar, com os olhos postos nos dela. Bárbara, que sempre se rira, pusera-se mortalmente séria, com os lábios entreabertos, naquela seriedade aflitiva de quem se entrega. Devia ter sentido o mesmo que eu: um tremor febril e um esvaimento total. Possuímo-nos com os olhos.
(...)
Não há palavras que descrevam o riso de Bárbara. Maior tortura do que esta de não a ter junto de mim é a de ser impotente para reconstituir aquele riso perdido. Gasto horas, no silêncio, a chamar por Bárbara. A pedir-lhe que se ria. Vejo-lhe os cabelos a flutuarem como labaredas, vejo-lhe os olhos inocentes, a graça sem artifício, simples e atraente, vejo as quase imperceptíveis sardas que lhe descobri na pele, vejo-lhe os dentes brancos e certos, a linha infantil dos ombros, a gola do vestido verde, tudo, mas não lhe vejo o riso. Bárbara. Ri-te. Só para mim.
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Excerto do maravilhoso 'Bárbara Ruiva' de Rómulo de Carvalho, com ilustrações de Helena Abreu e Prefácio de Manuel Gusmão da Editora Página a Página].
As fotografias que escolhi para polvilhar o texto, igualmente maravilhosas, são do fotógrafo Jan Saudek que nasceu em 1935 em Praga.
Claro está que a adjectivação revela o meu gosto pelas coisas inesperadas e belas]
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E agora música: Alison Goldfrapp com Drew de Tales of us
(Aconselho que não apenas a ouçam mas que vejam o vídeo.
Maravilhoso também, diria eu se não temesse repetir-me)
Permito-me recordar que, para temas desagradáveis sobre o infame Governo de Passos Coelho que até quase leva à loucura a ex-líder do PSD, Manuela Ferreira Leite, é descerem um pouco mais. Mas não sei se será boa ideia. Só se depois voltarem outra vez aqui para tirarem o mau sabor da boca.
Para um esclarecimento sobre grafologia, é ainda mais abaixo.
E nada mais por hoje.