Lembro-me de um conhecido me contar que tinha estado num almoço em casa de um empresário que na altura era de referência no país, com alguns dos seus homens de confiança, com um ex-presidente da Câmara, com um ou dois ex-ministros, e que, no meio da animada conversa em que as línguas se iam tornando mais soltas à medida que os bons vinhos iam subindo da bem fornecida adega do anfitrião, se teriam referido ao que na altura era presidente de uma das maiores empresas do país dizendo que 'esse gosta muito de meninos'. Esse meu conhecido ficou intrigado e estupefacto e quis confirmar se tinha percebido bem. Tinha. Entre risadas e piscar de olhos falaram das incursões da pessoa em causa nas noites Parque Eduardo VII. Isto antes do escândalo Casa Pia.
O meu conhecido ficou chocado com a forma 'normalizada' como todos aparentemente sabiam e fechavam os olhos, aparentemente achando até uma certa graça. Para eles, parecia que o grande administrador gostar de meninos estava ao mesmo nível de gostar de usar o cabelo penteado de uma determinada maneira ou só usar sapatos feitos por encomenda numa certa casa italiana ou ter um gosto refinado a nível de obras de arte. Excentricidades, idiossincrasias, particularidades inócuas próprias de quem tem dinheiro e poder.
Ao ouvir isso, fiquei estarrecida. E incrédula. Não encaixava na imagem que tinha dele. 'Mas será verdade?''. Era pessoa conceituada no país, politicamente relevante, profissionalmente reconhecida. Eu não o conhecia pessoalmente mas conhecia quem o conhecia e sempre tinha ouvido falar dele e da mulher, dele e da sua casa de praia onde recebia os amigos, dele e do prestígio como bom profissional. Na altura, para mim isso era incompatível com ir 'aos meninos'. E que meninos eram esses? Se me tivesse falado de ir às prostitutas, eu teria ficado chocada mas percebia. Por exemplo, as mulheres nas esquinas ali nas ruas na zona do Técnico eram bem visíveis. Agora 'meninos'...? No Parque Eduardo VII? Parecia-me uma história estapafúrdia.
Mas, a ser verdade, igualmente chocante era todos saberem e ninguém o denunciar, e todos continuarem a conviver com ele -- como se 'ir aos meninos' não fosse uma perversão, um crime.
E, volto a dizer, isto foi antes, embora pouco antes, de ter rebentado o escândalo da Casa Pia.
Leio o artigo do Guardian, The banality of evil: how Epstein’s powerful friends normalised him - David Smith, e é nisso que penso. Toda aquela gente sabia e todos se mantiveram amigos dele, todos mantiveram o relacionamento estreito. Mesmo depois da primeira condenação, continuaram a ser amigos chegados. Mesmo sabendo que continuava a abusar de meninas. Como se fosse normal. Isto se é que eles próprios, amigos do condenado, não continuaram a fazer o mesmo. E, pela troca de mails, vê-se como a erosão moral se estende à política. Epstein a ajudar os russos a lidar com Trump, Epstein amigo do peito de Bannon, conselheiro de Bannon sobre como melhor dar cabo da Europa. Todos em torno de Epstein. Epstein, Epstein.
Não tenhamos dúvidas: as pessoas com vidas simples, as boas pessoas, provavelmente nem sonham qual a dimensão do mal que pode habitar a cabeça dos que se acham donos do poder, da influência e da impunidade suficientes para tudo fazer. Roubar, extorquir, chantagear, abusar, manipular, ocultar provas, comprar o silêncio, subornar -- tudo actos normais para certas pessoas que se vão tornando coniventes umas das outras.
Vale a pena ler o artigo.
E vale também a pena ver e ouvir a entrevista de Joanna Coles a Mary Trump, a sobrinha renegada pelo homem mais poderoso do mundo. Partilho esse vídeo.
Este mundo em que vivemos brinda-nos com um realidade que supera a mais imaginativa e pervertida das imaginações.
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Why Seeing Epstein and My Uncle Donald Haunts Me | The Daily Beast Podcast
Mary Trump joins Joanna Coles to pull back the curtain on the Trump family and the man at its center. She recounts a childhood spent seeing her uncle everywhere, the opulent parties that doubled as power plays, and the lessons learned about a man who thrived on attention and control. Mary dissects Donald’s core pathologies—from his craving for wealth and status to the public slips and impulsive behaviors that now define him. She warns that the real danger isn’t just Trump himself, but the enablers who prop him up and profit from his rise. From her perspective as a clinical psychologist and family insider, Mary asks: when the myth collapses, what happens to those left in its wake?




