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terça-feira, novembro 15, 2016

Dar à luz


Os homens que me perdoem. E as mulheres que não puderam ou que não quiseram também. Mas não há nada no mundo que se possa comparar à experiência milagrosa de ter uma outra pessoa dentro de nós. Nada, nada, nada.



Qualquer homem se ache superior a outra pessoa, por mais argumentos que elenque -- que sabe as declinações de cor e salteado, que fala cinquenta línguas, que sabe dizer de cor a Odisseia, a Ilíada, os Lusíadas, o D. Quixote de la Mancha, o Ulisses de Joyce ou, até, sei lá, o Código da Vinci, que sabe toda a teoria da física, da química, da matemática e que é pro em nanotecnologia e filosofia aplicada, que sabe montar móveis do Ikea sem instruções, que consegue fazer a maratona ao pé-coxinho, que sabe tocar ao violino e sem partitura todos os nocturnos de Chopin ou que faz voluntariado 24 horas por dia, sete dias por semana -- nunca, mas nunca, vai estar perto de chegar aos calcanhares de uma mulher.

Mesmo as que nunca passaram pela experiência da gravidez ou do parto sabem que a possibilidade de passarem por isso esteve lá e só isso já é uma maravilha.

Já falei várias vezes de quando estive grávida. Era quase uma miúda mas estava desejando, desejando. Queria tanto ser mãe. Quando soube que estava à espera de bebé foi uma alegria imensa. E a alegria não foi menos imensa e intensa da segunda vez. Uma alegria tão absoluta. Uma felicidade suprema, na altura achava que era a maior de todas. Anos mais tarde, para minha surpresa, descobri que podia haver uma felicidade ainda maior.

Quando engravidei da segunda vez e tive disso a confirmação calhou o meu pai dar uma queda de um lugar muito alto, na empresa, e partir não me lembro se uma, se mais costelas. Estava eu no trabalho, ligou-me. Disse que me ligava ele para eu ver que ele estava bem. Contou-me que tinha caído de uma altura grande, que tinha acontecido aquilo das costelas, que tinha ido ao hospital mas que já estava em casa. Estava de pé quando atendi o telefone e não sei se foi do susto ou de estar grávida, senti uma fraqueza, parecia que ia desmaiar, tive que me sentar. Ele percebeu que eu estava a desfalecer, perguntou se não estava eu a ver que ele estava bem. Sempre tive a pressão arterial muito baixa, talvez também fosse isso.

Fui lá a casa vê-lo: estava de cama, com dores. A minha mãe aborrecida, que ele não tinha cuidado, que podia ter morrido. E, então, achei que devia dar a boa notícia. Não estava nada à espera daquela reacção, eu tão contente e diz o meu pai assim, num tom de repreensão: 'isto está mesmo bom para isso...'. Fiquei siderada. A minha mãe também. Vinte e poucos anos eu, já mãe de uma menina então com dois anos, e eu feliz, feliz da vida e sai-se o meu pai com aquele inesperado remoque. Havia, naquela altura, desemprego, ordenados em atraso, uma crise profunda no país. Mas queria lá eu saber da crise, nem me passaria pela cabeça achar que isso poderia ensombrar a alegria de ir ser mãe outra vez. A minha mãe desculpou-o pelas dores. 

Mas foi a única vez. Logo depois já estava contente e foi, para ele, uma alegria ter um neto rapaz, depois de uma neta menina.

Mas desviei-me da conversa. Estava a falar da minha felicidade. Não havia representações 3D do pequeno ser que crescia dentro do meu corpo nem se faziam ecografias a torto e a direito. Era sobretudo magia. 

Adorava sentir a minha barriga cada vez maior, os movimentos lá dentro, tentava perceber onde estava o rabinho, os joelhinhos, os pezinhos do bebé. De vez em quando um altinho: um pezinho, um pontapé. Gostava tanto de os sentir. E falava com eles, fazia festinhas na minha barriga que se agigantava. Quando estava lua cheia, ia para a varanda e mostrava a barriga à lua, para que o luar agraciasse os meus bebés.

Ao mesmo tempo os meus seios também cresciam, os mamilos maiores -- todo o meu corpo se preparava para o milagre da criação.

Sempre gostei muito de música e punha música para que eles a ouvissem. Imaginava-os quentinhos, a banharem-se dentro de mim, felizes por se sentirem tão queridos, por poderem ouvir música, por sentirem as festinhas que eu lhes fazia.

As minhas barrigas cresciam desmesuradamente e eu não me inibia de nada. O médico dizia que eu estava bem e, se me sentia bem, não fazia mal nenhum aquelas barrigas que pareciam transportar duas crianças de cada vez.


Porque já antes aqui falei disso, não vou repetir com pormenor o que foi o parto, idêntico nos dois casos, vou abreviar. Nasceram no limite do tempo e teve que ser parto provocado. Porque pedi encarecidamente que cesariana só em último caso -- queria ter os meus filhos pelas vias normais, sem anestesia, completamente ao natural -- acabei por suar as estopinhas. Quando a minha filha nasceu ainda eu acreditava que, se fizesse as respirações, não ia doer nada. Na verdade, o que aconteceu foi que pensei que morria de dores. Teve que ser puxada a ferros e tive dores dilacerantes. Podia ter aprendido a lição. Não aprendi. Quando foi a vez do meu filho, a minha vontade foi a mesma. Pensei que o caminho estava desbravado, pôr a criança cá fora haveria de ser canja. Nada. Pior ainda. Pesava mais de quatro quilos, tinha a cabeça grande. Não saía nem por mais uma. Ferros, puxar, puxar, e eu a achar que não ia resistir, tantas as dores, a cama alagada em transpiração. E, depois de se romperem as águas, as dores eram mais secas, mais profundas, mais violentas, a cama encharcada, a barriga retesada de contracções e, de cada vez que vinham novas contracções, eu rasgava-me por dentro, como se um ser poderoso estivesse a despedaçar-me. Estava a soro, o parto induzido e sem anestesia é de loucos, mas eu quis assim, queria estar bem acordada e que nenhuns químicos pudessem alguma vez molestar os meus bebés. 

Mas, mal saíam, era um alívio instantâneo, tudo passava, tudo. Tê-los em cima de mim, tê-los depois os meus braços, amamentá-los, sentir o seu calorzinho bom, sentir como se aninhavam no meu colo, compensava o suplício que quase tinha cabado comigo. Nem mais me lembrava disso.

Sensações únicas e inesquecíveis.

Depois disso, não têm conta as vezes em que tive vontade de voltar a engravidar. Saudades de sentir um serzinho a crescer dentro de mim.
A vida longe do apoio familiar, as dificuldades em viver e trabalhar em lugares de muito trânsito, a aflição para conseguir chegar a horas aos colégios com o trânsito congestionado e não ter a quem pedir ajuda. Éramos só os dois, a trabalhar longe um do outro, com trabalhos exigentes, a querermos que eles sentissem que estavamos sempre próximos e a querermos conciliar tudo -- não foi fácil. Mais que dois filhos parecia-nos ingerível. Tivesse eu tido os meus pais perto de mim e teria ido à meia dúzia. É que não é apenas a felicidade de os ter: para mim é também aquela sensação muito animal de sentir no corpo o milagre da reprodução.
Vem isto a propósito de um vídeo fantástico que estive a ver e que aqui partilho convosco: desde a explosão orgásmica até que umas sementes caudaludas e destravadas vêm por aqui adentro, a querer atingir o santo graal e, mal o vêem, forçam a entrada com a cabeça e, depois, o milagre, o milagre de as células se irem juntando, harmoniosamente, e os órgãos se irem formando, e, depois, já todos formadinhos, já com as feições a definirem-se, já a sentirem vontade de descobrir o mundo, o milagre da vinda ao mundo. Uma pessoazinha pronta para vingar em meio tão adverso. Nós.


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  • Lá em cima Josefa de Castilla Portugal y van Asbrock de Garcini, grávida, é pintada por Goya
  • Pregnant Therese é uma pintura de Helene Knoop
  • Judy Collins interpreta Amazing Grace que não tem a ver com o tema mas cuja sonoridade e cujo título me agradam para aqui estar
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domingo, junho 30, 2013

Compreender um texto é como compreender um cão - assim pensava Maria Gabriela Llansol, Goya, José Tolentino de Mendonça e... eu. Acrescento as perplexidades de Mattia Pascal pela mão de Pirandello que, por sua vez, vem pela mão de Pedro Mexia. 'Liberta de todos os laços, absolutamente senhora de mim, tendo perante mim um futuro que poderei moldar segundo os meus desejos', posso escrever sobre estas coisas [parafraseei Mattia Pascal mas acho que ele não se vai importar]


Gosto muito de ler José Tolentino de Mendonça. Conhecia-o da sua poesia e só agora que ele tem uma crónica semanal no Expresso, com o sugestivo nome que coisa são as nuvens, é que começo a conhecer a forma límpida como pensa.




A crónica deste sábado é muito bonita (são sempre muito bonitas). 


[Penitencio-me sempre que, ao querer exprimir o quanto gosto de um texto ou poema, só me ocorre dizer que é bonito. Parece-me fraquinho, poucachinho. Mas, por mais que me esforce, é isso que me ocorre.

Deveria ser capaz de usar palavras mais rebuscadas ou mais técnicas - e, agora que escrevo isto, ocorre-me a palavra oxímoro que acho uma palavra enviesada porque quase se pode confundir com oxímero, que não tem nada a ver, ou, quem diz isso, diz que talvez fosse interessante dissecar melhor a coisa, retalhá-la, etiquetá-la. Mas tudo isso me parece artificial, parece que é estragar tudo.


No outro dia, um colega meu contou-me que, estando a atravessar a China, deparou com campos e campos e campos cheios de chineses e chineses e chineses e andavam todos curvados a espetar flores de plástico na terra. Ficou admirado. Os chineses com quem ele ia explicaram, então, com o ar mais natural e emproado do mundo, que, como o mau tempo tinha devastado as colheitas, para a terra ficar mais bonita estavam a enchê-la de flores de plástico. Para os chineses isso era normal. 

Eu acho que olhar para um texto puro e belo e desatar a despejar palavreado por cima é a mesma coisa que espetar flores de plástico numa terra lavada pela natureza.

Mas, claro, admito que isto seja prova da minha rusticidade. Mas, rústica que sou, parece-me que dizer que uma coisa é bonita é uma boa coisa.]


Ler a bonita crónica do Padre José Tolentino de Mendonça confortou-me um pouco. Deu-lhe ele o título de O que é compreender.


Não vou transcrevê-la toda pois bom mesmo é lê-la toda, em papel, mas, para os que o não poderão fazê-lo, trago aqui um pouco:


(...) Talvez porque compreender seja outra coisa, peça de nós outro tempo, distinto daquele que estamos habituados a usar, nos exponha na nossa pobreza, encaminhe a nossa inteligência e o nosso coração por territórios porventura mais próximos do silêncio do que da palavra.

Penso muitas vezes naquela pintura de Goya que retrata um cão. Não sabemos exactamente o que é que o cão está ali a fazer: apenas vemos o seu focinho que sobressai, solitário, projectado num céu vazio. Dir-se-ia que ele fareja não já o mundo, mas a fronteira do mundo, à maneira de um detective metafísico.




Quando penso nesse cão de Goya acontece-me associá-lo a uma frase da escritora Maria Gabriela Llansol sobre o texto (que não há-de ser diferente do trabalho de compreensão do mundo e de nós próprios). A frase diz: 

                                             Compreender um texto é como compreender um cão...
                                             ou seja,
                                             é aceitar que não se fala,
                                             que não se compreende,
                                             excepto pela companhia

Armámo-nos de instrumentos sofisticados de análise, estratificamos, decompomos, observamos através de lentes que reputamos infalíveis, e esquecemo-nos desta verdade básica: a compreensão passa, necessariamente, por um avizinhamento, por uma descoberta mútua que só a reciprocidade vai tecendo e aclarando. 

A compreensão é um jogo jogado na consciência de que estamos perante o vivo, que se dá a ver na dobra, no intervalo, na interacção afectiva, na dedução incalculável daquilo que cada um traz escondido, sem nos deixarmos capturar pelas expectativas, sem impormos nada do que sabemos ou pretendemos saber.


Llansol tem razão: não compreendemos nada nem ninguém, excepto pela companhia.

(...)

O objectivo é poder alcançar aquela plena liberdade da definição que Montaigne propõe: 'Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: Porque era ele. Porque era eu'. 

companhia constrói-se, em seguida, na aceitação. Aceitar, aceitar - que exercício tão difícil. Aceitar a noite e o nada, o silêncio e a demora, aceitar a graça e a fraqueza, a diferenciação e o desapego. 

De tudo fazer caminho. 

Aceitar ver o todo apenas na parte, na visão incompleta, no gesto inacabado. 

A ansiedade de dominar é um equívoco.

(...)

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Dominar um texto? Dominar a compreensão de um texto? Dominar o conhecimento técnico da língua, de um estilo? ... Não. Não quero. Isso não me interessa. Dominar é menorizar o que se domina. Não se deve menorizar o que se respeita. Muito menos o que se ama.

Gostar de uma coisa (tal como gostar de uma pessoa) é deixá-la livre. Não tentar dominá-la, compreendê-la, possuí-la. É deixá-la ser. Apenas isso. É observá-la na nossa incompreensão. É gostar porque sim.


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"Não sei como vim ao mundo, nem o que é o mundo, nem o que sou eu; vivo numa ignorância terrível de tudo; não sei o que é o meu corpo, os meus sentidos, o que é a minha alma, nem esta parte de mim que pensa aquilo que eu digo (...)". Isto escreveu Pascal. Blaise Pascal.

[E isto escreveu Pedro Mexia, também no Expresso, ao falar sobre "O falecido Mattia Pascal" de Luigi Pirandello. E vem mesmo a propósito do que José Tolentino Mendonça disse em que coisa são as nuvens.]


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As pinturas e a gravura são de Goya. Francisco José de Goya y Lucientes (Fuendetodos, 30 de março de 1746  — Bordéus, 15 ou 16 de abril de 1828) foi um pintor e gravador espanhol.

Na transcrição dos excertos da crónica de José Tolentino de Mendonça tomei a liberdade de acrescentar algumas consoantes. Palavras com letras a menos parecem-me palavras que saíram à rua sem cuecas. Pode ser que um dia me habitue mas, por enquanto, ainda não estou aí.

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E com isto me vou que já são horas. Tenham, meus Caros Leitores, um domingo muito bom. 
Que o excesso de calor seja compensado com belos banhos, frescas bebidas e outras coisas boas!