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segunda-feira, junho 09, 2014

Viver ou amar. Ler ou fazer amor. Esperar ou procurar.



Da Leitora JV recebi um comentário que me parece merecer algum destaque e, por isso, tomo a liberdade de o transcrever aqui para depois, sobre ele, me pronunciar.





Olá UJM,

Falou em pianistas e deu-me um pretexto para lhe falar de um filme francês que deu ontem na RTP2, A Pianista (2001).


O filme começa com um mulher (a protagonista), com cerca de 40 anos, a chegar a casa. 

A mãe, que vive com ela, chateia-a por causa de um vestido que ela comprou e elas brigam, a mãe bate na filha e esta dá de volta e puxa-lhe os cabelos. Depois, já calmas, a mãe queixa-se de que ficou com uma pelada e a filha diz num tom absolutamente carinhoso "maman, je suis désolée, je t'aime". Abraçam-se e fazem as pazes.

A protagonista é uma pianista, professora no conservatório. Muito rígida. Muito fria. 

Vê um aluno a olhar para revistas pornográficas no quiosque e chateia-o terrivelmente na aula seguinte. Mas vai àquelas cabines em que se vê vídeos pornográficos quando se põe uma moeda e cheira o lenço com o sémen de alguém que esteve lá antes. Vai ao cinema de rua, à noite, aproxima-se de um carro onde 2 jovens estão a fazer sexo e, excitada, urina ali mesmo. E corta a vagina, acho que para reprimir os desejos sexuais.

No meio disto tudo, há um rapaz, bonito, louro, extraordinário pianista, que se inscreve nas suas aulas no conservatório porque a ama. Diz-lhe que a ama e pede-lhe para saírem da aula e irem passear. Ela pode fazer todas aquelas coisas que antes referi, mas não tem de entregar-se ao primeiro que lhe aparece.

A rapariga que ela escolheu para tocar no recital é uma tosca, chorosa, nervosa. Antes de um ensaio tem uma crise de diarreia e o rapaz que gosta da protagonista ajuda-a a descomprimir. Esta fica com ciúmes e poe vidros partidos no bolso do casado da rapariga, que corta a mão toda e deixa de poder tocar no recital. 

Pensávamos que só a professora é que tinha pancada, mas o rapaz percebe que foi ela que fez aquilo e vai ter com ela à casa de banho e beijam-se. Mas ela tem mesmo uma pancada sexual muito grande, não me vou por aqui a contar tudo o que acontece entre eles. 

A dada altura ela tenta "atacar" sexualmente a mãe, que dorme numa cama encostada à dela. E acaba o filme a espetar uma faca entre o coração e o ombro.

Não há dúvida de que as pancadas da mãe, da professora e do rapaz são um pouco maiores do que as das maioria das pessoas, mas tirando a parte dos vidros no casaco da rapariga, nada no filme me parece repulsivo, compreendo a dor daquela mulher. Todos temos inibições, complexos, "issues" e tudo depende da forma como as coisas evoluem e como lidamos com eles. Este aspeto da sexualidade é muito problemático: uns nunca tiveram sexo e queriam ter, outros têm demais, etc.

Ontem dizia-me, UJM, para sair, para andar de mãos dadas pela cidade. Mas devo procurar tudo isso? Deve uma rapariga ter complexos por não haver nenhum rapaz que declare o seu amor por ela, se também ela nunca esteve apaixonada por nenhum? Deve mostrar-se disponível? Não pode só fazer a sua vida, sem se pressionar a si própria, sem fechar as portas a nada, mas sem forçar as coisas? Não devemos deixar as coisas correr com naturalidade? E se - como às vezes acontece (com a Susan Boyle, por exemplo, que nunca tinha sido beijada) - nada chegar nunca a surgir, não podemos encarar também isso com naturalidade? Mesmo que não se seja assustadoramente feio...? :)

Abraço,

JV
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Estimada JV,

Ontem, enquanto estava a escrever, estava a ver e, sobretudo, a ouvir o filme 'A pianista' com a magnífica Isabelle Huppert. Como estava a escrever, ia olhando, volta e meia parava de escrever para olhar com atenção, depois ia seguindo o filme apenas pelo som (e o que eu gosto da língua francesa) e vendo de relance. Frequentemente pensava cá para mim: 'ganda pancada...', referindo-me à torturada professora de piano. Mas que há pancadas assim a torto e a direito não tenho dúvidas. Podem não ser tanto, como diz, mas, se não assim, são variantes. A cena que aflora mas não descreve, via-a com atenção para ver no que aquilo ia dar. Deu no costume, claro: em nada, em crise, em não conseguir chegar ao fim, ao despedaçar emocional. 

Sei de casos assim, em que a mulher, por viver sozinha com a mãe, acaba por viver reprimida, recalcando frustrações, alimentando revoltas surdas. Serão excepções. Não sei. Mas sei que acontece.

A professora de piano notoriamente era uma filha emocionalmente não emancipada e uma perfeccionista, uma amante da pureza (da música), da ordem, da harmonia. Mas ninguém consegue viver uma vida inteira de perfeição, pureza e harmonia. Se não há, pelo menos de vez em quando, algum excesso, algum rasgão na capa de perfeição que cobre a carne, alguma quebra, então, começará a crescer em surdina um desajustamento que, quando surgir a oportunidade, exporá o sangramento interior.

Dou-lhe razão: a vida deve acontecer naturalmente, sem constrangimentos impostos, sem interiorizar questões que são de outros, sem forçar nada. 

A realização de uma pessoa faz-se de muitas coisas - de conhecimento, de dádiva, de partilha, de procura, de conquista, de afecto retribuído, etc, etc - mas não é forçoso que tenham que existir todos estes condimentos em simultâneo. Acredito que uma pessoa pode atravessar a vida entregando-se de corpo e alma a factores que a motivem e que excluam aspectos de que outros não prescindem.

Mas acho que a vida é mil vezes melhor se não for vivida em solidão ou isolamento. Claro que solidão e isolamento não são sinónimos e não são forçosamente negativos. Podem, até, ser procurados como forma de alcançar a felicidade.

Contudo, a minha experiência não é essa e, por isso, falo do que conheço. 

Eu acho que a vida é melhor se tivermos a segurança de um afecto junto a nós, se tivermos o conforto e a alegria de poder dar o nosso afecto a quem lhe saiba dar valor.

Mas isso não se arranja por decreto ou por anúncio (salvo raras excepções, como é o caso, por exemplo, de Agustina que arranjou marido por anúncio num jornal). 

Não é drama não ter nunca tido uma paixão, nem nunca ter recebido uma declaração de amor. Não é drama não ter sentido o frémito interior que acompanha um beijo dado com sentimento.

Sobretudo, o facto de isso não ter ainda acontecido não deve ser causa de ansiedade pois, a todo o momento, pode acontecer.

Agora o que eu acho é que se uma pessoa viver fechada em casa ou no estrito círculo de conhecimentos em que nada de novo acontece, ou seja, se conviver muito pouco, se não partir à descoberta de novos locais, se não usufruir da natureza e dos lugares onde o convívio naturalmente acontece, então menos hipóteses terá de acontecer.

É quase como aquilo de ganhar o euromilhões: só sai a quem apostar. Claro que as probabilidades associadas ao euromilhões são ínfimas e as probabilidades de acontecer um grande amor são razoavelmente acessíveis.

Se me fosse permitido aconselhá-la, diria que a sua forma de ver as coisas é, a meu ver, correcta: não procure ansiosamente, não se entregue ao primeiro com medo de que seja o último, não aja com a precipitação e falta de jeito típicas de quem está receosa de nunca encontrar um amor. Mas não se feche sobre si própria porque o tempo passa depressa e se tiver a sorte de descobrir alguém que a complete, compreenda, enalteça, acarinhe, empolgue, e que seja uma boa companhia e um apoio incondicional, não a deixe passar.

E, se essa oportunidade chegar para ficar, não complique, não aja com conflitualidade ou desconfiança. O amor deve ser uma coisa natural, simples, é uma coisa que funciona melhor se não for recheada com ciúmes, exigências desnecessárias, recriminações.

Exigente e cultivada como o é - apesar da sua tenríssima idade - não pense que há por aí génios a pontapé que possam ombrear com os seus conhecimentos e interesses. Mas, sabe?, não têm que ser génios nem gostarem das mesmas coisas para que a coisa funcione. Importante, importante é que a pessoa de quem se gosta seja boa pessoa, boa onda.

Gosta muito de ler, não é? 

Pode pegar nos livros e ir estender-se ao sol na Gulbenkian ou à beira do rio a ler, pode ir sentar-se numa espreguiçadeira à beira Tejo ali entre o Terreiro do Paço e o Cais Sodré, pode ir ver museus e levar um livro e instalar-se em frente a um quadro. E pode ser que um dia alguém se deite ou sente ao seu lado.

Pode mil coisas e tudo na boa, descontraída, coração aberto. 

Pode ser que se sinta realizada assim como está e, se ficar assim, continuar a sentir-se muito bem. 

Mas, se puder estar ainda melhor, sem qualquer esforço ou drama, então será ouro sobre azul. Só isso.

(E não é pouco...)

E, de resto, assim ou assado, sozinha ou bem acompanhada, o que lhe desejo, JV, é que tenha toda a sorte do mundo e que se sinta feliz e agradecida pela vida que for vivendo.


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. O primeiro vídeo é o trailer do filme 'A pianista' um filme realizado por Michael Haneke, e interpretado por Isabelle Huppert e Benoît Magimel


. O segundo vídeo mostra Rod Stewart e Chrissie Hynde interpretando As time goes by.

. As fotografias de paisagens solitárias, o planeta sem nós, foram obtidas aqui

. As fotografias de Marilyn Monroe são de vários fotógrafos e mostram-na a ler. Sendo uma mulher belíssima, inteligente e culta, por inseguranças interiores sempre arruinou as suas próprias expectativas. Adorava ler e são inúmeras as fotografias que a mostram a ler. Escolhi-a para ilustrar as minhas palavras por nenhuma razão especial, queria mulheres a ler e lembrei-me que se há mulher que tenha sido fotografada a ler essa mulher foi a bela Marilyn.


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