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sexta-feira, março 19, 2021

Divórcio: porque são as mulheres que rompem.
[E, a despropósito, a receita da minha sopa de bacalhau]

 


Esta quinta-feira a coisa foi um bocado dura. Telefonemas em cima de telefonemas, crises, dramas. Depois a coisa foi-se compondo. Tenho para mim que grande parte dos dramas resultam de se ter assuntos a cargo de gente pouco inteligente e que, para piorar, gente que não tem consciência das suas limitações, empolando cada pequena dificuldade. Incapazes de arranjar soluções para os problemas, gente pouco dotada o que sabe fazer é sacudir a água do capote, fazer-se de vítima, aparecer a apregoar resoluções bombásticas que não passam de pura parvoíce. E a gente ouve todo quele foguetório sem sequer perceber de que é que estão a falar e a única coisa que conclui é que, vindo de quem vem, a coisa não deve ser tão dramática quanto apregoam e que o melhor a fazer é bem capaz de ser tirar o assunto das mãos de quem não revela a mínima capacidade para resolver problemas. E assim foi e, poucas horas depois, com a coisa já noutras mãos, nas mãos de quem percebe do assunto, logo tudo começou a compor-se.

Mas aconteceu de tudo, a nível profissional e pessoal. Por volta das seis e picos a coisa acalmou. Ainda fiz mais um telefonema de trabalho mas as forças negativas do universo afinal pareciam estar a aquietar-se. 

Fui, então, fazer o jantar. Fiz sopa de bacalhau. Fiz assim:

Numa panela coloquei água, duas cebolas grandes, duas cenouras grandes, duas batatas normais, uma batata doce das que são cor-de-laranja (são as que prefiro), uma maçã royal gala, um alho francês, salsa. Juntei também cinco ovos com casca. Não coloquei sal. Pus a cozer.

Enquanto isso, num tacho pequeno coloquei um pouco de água, uma cebola (esta tal como todos os legumes, sempre devidamente lavados, descascados, partidos) e umas postas de bacalhau, uma das quais muito alta. Por recear que a água ficasse salgada, não juntei sal.

Quando a água do tacho de bacalhau ferveu, baixei o lume e cozinhou poucos minutos. Retirei o bacalhau para um prato. Passei a cebola para a panela da sopa, para que acabasse de cozinhar. 

Quando os legumes ficaram cozidos, desliguei.

Retirei os ovos para uma tigela de água fria, para serem mais fáceis de descascar. Descasquei-os. 

Juntei um ovo à sopa. Juntei azeite. Com a varinha mágica triturei bem, até ficar bem cremoso.

À água de cozer o bacalhau juntei cotovelinhos pequeninos e deixei que cozessem.

Entretanto, tirei as espinhas ao bacalhau e parti-o em bocados. Não é desfiar: é apenas cortar aos pequenos para que se sintam. Juntei à sopa.

Abri um frasco de grão-de-bico cozido e com um garfo retirei grãos para aí de meio frasco para a sopa. Quando as massinhas estavam cozidas (não muitas), juntei tudo à sopa, incluindo o caldo que transportava o sal do bacalhau -- e envolvi tudo bem. Provei: não precisava de sal.

Miguei os outros quatro ovos para uma tacinha. Levei também mozzarella ralada para a mesa. Como já era muito de noite já não fui apanhar hortelã. Devia ter-me lembrado mais cedo.

Em cada prato, sobre a sopa, colocámos ovos aos bocadinhos e o queijo.


Gostaram bastante. Um dos meninos e o meu marido ainda juntaram pão torrado. Gostam de sopas de tipo enfarta-brutos. O menino, então, tinha o prato atascado de pão ensopado na sopa à qual juntou ovo e sobretudo montes de queijo. Dizia que nunca tinha comido nada tão bom. O irmão, depois da sopa, começou a fazer mini-sandes de ovo cozido, queijo e um fio de azeite. Depois da fruta, ainda comeram biscoitinhos de chocolate. É como se estivessem na engorda. Contudo, como correm e brincam que se fartam (depois das aulas, claro), não estão nem um bocadinho gordos.

Pode parecer que a receita é longa e, por isso, difícil. Nada. De caras. E não tem como sair mal. Saborosa e nutritiva. Claro que quem estiver de dieta é melhor não comer grandes pratadas, em especial à noite. Mas, mesmo para quem estiver a pão e água, uma vez não são vezes...

Depois, aqui chegada, dei uma volta pelas notícias: excepto uma, nada que me interessasse. 

Desta vez o que despertou a minha atenção foi que são as mulheres que pedem 75% dos divórcios. Não sei se a estatística é universal, se apenas em França já que o artigo faz parte do Madame le Figaro. É interessante. Antes, eram os homens. As mulheres, por, em grande parte, dependerem financeiramente dos maridos, sujeitavam-se a tudo. E havia o estigma social, a censura. Agora, apesar de, em média, as mulheres ganharem menos que os homens e, portando, ficarem mais frequentemente em situação mais precária do que os homens em iguais circunstâncias, as mulheres não querem saber. Vão em frente.

Uma mulher que vive em casal, quer viver bem em casal, quer ter qualidade emocional - leio; e concordo. 

«Quand une femme rompt, la décision est liée à sa maturité, à son illusion déçue de constater qu'il n'y a pas de “danse de couple”.» Autrement dit, pas, ou plus, de magie. [Quando uma mulher rompe, a decisão está ligada à sua maturidade, à decepção de não existir a ilusão de uma dança a dois. Ou seja, que já não há magia]

E se ao fim de pouco tempo, a percentagem de homens que já vive de novo em casal é maior do que a das mulheres, já que as mulheres parece quererem ponderar melhor ao envolverem-se de novo com outra pessoa, a verdade é que, quando isso acontece, depois de terem dado o tempo necessário para se readaptarem e para fazerem uma boa escolha, sem a pressa que os homens parecem demonstrar, as mulheres parece que renascem. Mostram-se livres, seguras, determinadas a enveredarem por uma nova vida. São outras, mais fortes.

O artigo é interessante e a quem se entender bem com o francês, aqui fica o link: Divorce : pourquoi ce sont les femmes qui rompent


E, por hoje, nada mais. Ainda estive a ver vídeos sobre japoneses que vivem para além dos 100 anos e é muito interessante... mas já não é para hoje. 

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As mulheres com máscara são obra de Volker Hermes e são bem acompanhadas pelos The Paper Kites que interpretam Dearest 

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E uma bela sexta-feira!

quarta-feira, janeiro 06, 2021

Uma coisinha sobre a vida

 


Estou a ver um programa sobre o João Cutileiro. Mais um que se foi. Dirão os mais sensatos que é a lei da vida. E é. Ninguém cá fica. Acontece que, para quem está nessas idades e ainda tem o gosto pela vida, essa lei é cruel. Se olharmos com distanciamento, e é inteligente que o façamos, achamos que nem vale a pena ter pena lamentar quando os velhos se vão. E esquecemo-nos que, se vivermos até essa idade, esses velhos seremos nós, um dia. E, um dia, talvez olhemos a vida com pena que tenha decorrido tão depressa e que ainda tenhamos tanta coisa para fazer, tantas palavras por dizer. 

A vida passa e as oportunidades também.

Sempre gostei muito de escultura e, se tivesse as minhas fotografias organizadas, poderia aqui mostrar as fotografias que, ao longo do tempo, fui fazendo a obras de Cutileiro. Por isso, vou ter que usar fotos obtidas na net.

Não sei se ele estava fatigado e com vontade de descansar ou se ainda tinhas trabalhos em curso ou em mente. Não sei se ele percebeu o que ia acontecer e teve pena ou se não deu por isso ou, se deu, se se sentiu puxado pela tal luz branca, indo, feliz, nessa direcção. Sei é que eu tenho pena.

Convivi de perto com o lento caminhar para a morte e sei como pode ser doloroso. Depois de ter ficado diminuído pelo avc, durante algum tempo havia desespero no meu pai. Impaciência. Queria recuperar os seus bons tempos e via que isso não ia acontecer. Antes pensava ser um homem saudável. Em boa forma física, aspecto jovem, não tinha doenças. Contava, com orgulho, como a sua vida saudável o trazia tão bem. Explicava a alimentação que seguia -- muito peixe, pouco sal, muitas saladas, muita fruta -- explicava os longos passeios no campo ou na praia. Nunca lhe ocorreu que um dia poderia acontecer-lhe o que lhe aconteceu. Mas aconteceu: nesse dia tudo se foi. Não valorizou as ameaças anteriores. Não ficou com medo. Achava-se sempre capaz de superar essas ameaças. Só que aquela, tão grande que quase o levou, venceu-o a ele. Mas levou doze anos a levar-lhe a melhor. Perdeu o andar e voltou a andar, perdeu a fala, recuperou a fala, perdeu a independência e voltou a recuperá-la. Mas nunca completamente. E sempre de uma maneira que se sentia ser efémera. Quando parecia estar melhor e a progredir no sentido da recuperação, apanhava uma pneumonia, depois uma bactéria hospitalar, depois voltava a perder o andar, a piorar. Ou, uma vez, no dia um do ano, caiu em casa, partiu uma perna, teve que ser operado. Não voltou a andar. Sempre assim. Desilusões sucessivas para ele, para nós.

As sequelas foram tão extensas e profundas que teve que passar a estar fortemente medicado. Alguns medicamentos tinham efeitos secundários que confundíamos com o seu próprio e intrínseco estado físico. Se estava agitado, enervado, não sabíamos se era alguma coisa nele ou de algum medicamento. Se estava ausente, não sabíamos se tinha tido outro acidente ou se estava sedado em excesso. Muitas vezes, resolvíamos retirar parte da dosagem, aos poucos, para ver se voltava a estar mais normal. Mas logo notávamos que isso tinha consequências que se calhar eram pior para ele. O neurologista dizia: vão aferindo, tentando acertar na melhor dose consoante ele esteja, não há outra maneira. Era muito difícil, nunca sabíamos o que era melhor para ele. E ele, antes tão orgulhosamente independente, não podia ter uma palavra a dizer sobre a sua própria condição.

Uma vez disse à minha mãe: 'Nós temos uma filha?'. A minha mãe disse-lhe que sim, disse-lhe o meu nome. Continha as lágrimas ao contar-me isso. Fiz de conta que a mim não me fazia impressão para que ela não sofresse ainda mais. No fim, quando não via, mal ouvia, e já praticamente não conseguia falar, quando eu chegava perto dele, lhe punha a mão no ombro e o beijava. a minha mãe perguntava-lhe: 'sabes quem é?' e ele esforçava-se por dizer o meu nome. Era um esforço enorme para dizer apenas uma palavra. 

Mais do que uma vez perguntou à minha mãe se já tinha morrido. A minha mãe assustava-se, dizia que não, que ideia, que não dissesse isso. Não percebíamos o que se passava na sua cabeça para colocar a hipótese de já ter morrido. Uma vez também perguntou se estava dentro do caixão. Muitas vezes não sabia onde estava e dizia que queria ir para casa. E, estando acamado, frequentemente, enquanto falava, gritava que a minha mãe ou a senhora que a ajudava se despachassem, dizia que queria ir para a cama para dormir. As vezes que dizia que queria morrer não têm conta. Muitas vezes, quando eu chegava perto dele e lhe perguntava 'Então, pai, como está?' ele respondia -- por fim, com a voz quase impossível de se perceber -- 'Quero morrer'. 'Que coisa, pai, não diga isso'. Mas percebia muito bem esse seu desabafo ou esse seu apelo. A degradação do seu estado físico foi progressiva, lenta, dolorosa. Uma pessoa antes com tanta vitalidade e tão orgulhosa ficou totalmente à mercê de outros: tinha que ser levantado, lavado, alimentado, aspirado. Não sei no que pensava quando estava mais lúcido. Sabemos, isso sim, que manteve até ao fim, pelo menos enquanto conseguia exprimir-se e salvo horríveis lapsos como os que acima referi, uma memória surpreendente. Mas parece que apenas reagia se chamássemos por ele e lhe fizéssemos perguntas. Senão, mantinha-se ausente.

Quando morreu, no meu íntimo, senti que o meu pai tinha, enfim, descansado, que não merecia ter sofrido tanto. O que senti como injusto foi o avc que teve há doze anos e o lento declínio a que assistiu aprisionado no seu corpo. Lembro-me de a minha mãe ter dito, no dia em que teve o avc, como um profundo lamento: 'acabou-se...'. E, quando lhe perguntei ao que é que tinha acabado, esclareceu: 'a vida que tínhamos'. A minha avó materna tinha morrido pouco antes e, finalmente sem encargos nem preocupações, os planos deles eram passear mais, iam de férias para o algarve no verão, iam para as beiras na primavera, iam para perto de nós com maior frequência, estavam a imaginar uma vida de qualidade. E uma rasteira assim, indecente, roubou-lhes doze anos de vida. Quando alguém sofre um tal sofrimento, é toda a família que o sofre, em especial os que lhe estão mais próximos.

Enfim. 

Moral da história: não guardar para depois o que agora pode acontecer mas amanhã não sabemos. Não guardar decisões, palavras, afectos. Se podemos fazer ou dizer hoje, é hoje mesmo que o deveremos fazer ou dizer. Quanto ao que vai acontecer amanhã, isso nunca o sabemos. Amanhã pode ser tarde de mais.

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Gosto do vídeo abaixo. Pensei dar o seu nome a este post, a thing about life. Mas seria pretensioso. Fica antes 'uma coisinha sobre a vida' porque não consigo falar sobre a Vida, a vida em geral, só o consigo sobre a vidinha, em especial sobre a minha já que é sobre ela que falo com maior à vontade, sem recear tocar em pontos alheios, pontos privados onde não tenho o direito de tocar.


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Um dia bom

terça-feira, dezembro 29, 2020

Rubro

 




Durante anos, quando pensava numa cor era apenas no encarnado que pensava. Encarnado rubro carmim vermelho carne sangue fogo alma loucura flama paixão.

Com o tempo fui tentando conter-me.

No entanto, se me vejo perante uma tela em branco é para as tintas incandescentes que a minha mão espontaneamente se dirige. Posso tentar moderar-me. Mas não consigo. É a fogosa exaltação que se derrama sobre a tela. Sou feita de extremos e o extremo para que sempre me inclino é o da paixão. 


Mas tento a contenção. Abro a mente e o coração aos mil aromas de verde: o verde musgo, o verde oliveira, o verde pinheiro, o verde cedro, o vedro eucalipto, o verde bosque, o verde fundo do mar. Deixo-me envolver pelos verdes e sinto que estou em casa. Mas a vibração de uma alma tingida de paixão continua presente. Tento também a claridade do azul céu, a profundidade do azul veludo, a insolência do azul klein, a inocência do azul alfazema. Gosto do azul. Mas há no azul uma elegância conservadora ou uma pureza, não sei bem, que não me acolhe. E há o branco. Os mil tons de branco. A luz. A ilusão da luz. Não me identifico totalmente. Prefiro os reflexos, as sombras; a luz, sim, mas quando matizada de pecado, de dúvida, de excesso. Claro que poderia ser o preto, o negro, o breu, o infinito, o eterno labirinto. Mas há no negrume a maldição das trevas e eu não gosto de antecipar o funesto destino de tudo o que um dia viu a luz. O amarelo, sim, claro, poderia ser. É alegre, festivo, irradia mel e ouro, sol sobre a pele, calor, afago, doçura. Gosto do amarelo. Mas o amarelo é superficial, fica na pele, não desce onde a carne se verga ao sobressalto da paixão.

Encarnado, sim, não há como fugir-lhe. Encarnado rubro carmim escarlate fogo vermelho chama. Chamamento.


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Pinturas de  Zhu Wei, Hyung Ju Park, Igor Tishin e Ligyung na companhia de The Paper Kites em For All You Give 

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Desejo-vos um bom dia

segunda-feira, dezembro 28, 2020

2020, o ano que marca a viragem da nova era AC para a futura nova era DC

 


De vez em quando sou tomada por uma onda de optimismo. Nessas alturas esqueço-me da gente que só atrapalha e que, estranhamente, existe aos molhos. Parece que quando se vê um caminho desenhado para se poder andar por ele de forma feliz logo aparece um bando de gente disposta a lançar poeira, a atirar areia para tudo o que é engrenagem, a poluir, a fazer com que a oportunidade se esvaia. Racionalmente sei que é pouco inteligente ser optimista pois sei bem que, por cada optimista que apareça, logo aparecem cem pessimistas a atravancar o caminho e mil cépticos a fazer perder a vontade de avançar e dez mil burros que, não sabendo a quantas andam, perturbam ainda mais que todos os outros.

De vez em quando o meu optimismo leva-me a ver caminho aberto onde os outros vêem escolhos, tempestades, má sorte à espreita. Mas, ainda assim, o meu optimismo não soçobra. Penso que são os outros que não querem ir à procura do caminho aberto. Perante um caminho que vai dar a uma parede cega, dir-se-ia que qualquer um perceberia que o melhor seria escolher outro caminho onde haja continuidade ou paredes com portas. No entanto, há quem, perante uma parede cega, se entretenha a discutir a parede, a discutir com a parede ou a tecer loas sobre a parede, invocando todas as histórias que, desde os clássicos, incluíram uma parede. E há quem vá de encontro a ela, caia, e volte atrás para, de seguida, reinicie o mesmo percurso e vá, de novo, lá bater com a cabeça e isso vezes consecutivas, sempre acusando a parede ou a má sorte de a parede lá estar. E há quem, pura e simplesmente, baixe os braços e fique parado a carpir por ter uma parede cega no seu caminho. Por isso, reconheço que as razões para o meu optimismo são diminutas e, se o sinto, talvez seja porque sou uma pessoa de fé (e sou) ou porque não tenho os cinco alqueires bem medidos (e não digo que os tenha) ou porque tenho a mente toldada pela imaginação (e também não juro a pés juntos que não).

Mas, seja como for, é isso: de vez em quando sinto uma onda de optimismo a invadir-me. Por exemplo, acho que a clivagem deste ano pode iniciar uma nova era. A minha filha há bocado dizia que 2020 é o ano que estabelece um novo AC/DC, antes do covid, depois do covid. Achei a ideia fantástica e tanto mais quanto estava, justamente, numa de achar que esta bofetada sem luva branca que o corona dos totós deu à besta humana poderia muito bem ser o abanão que era preciso para que a besta humana atinasse.

Olho para o 2020, ano tão cruel, e consigo ver nele as sementes de um mundo melhor. Por exemplo:

  • consigo ver um maior respeito pelo planeta e pelo equilíbrio geral entre os seus elementos, 
  • consigo ver um apelo mais forte por uma vida mais simples, mais saudável, mais ligada à natureza e ao que verdadeiramente importa, 
  • consigo ver um maior respeito pela investigação e pela ciência, 
  • um maior respeito pelas profissões menos qualificadas e que, afinal, são tão essenciais à sobrevivência de todos, 
  • consigo ver um maior respeito pelos serviços nacionais de saúde que assentam na generosidade dos que mais podem para assistir os que menos podem, 
  • consigo ver o princípio da queda do populismo mais básico que provou levar a situações tão desastrosas, 
  • consigo ver que, se quisermos e conseguirmos, por uma vez, pôr de lado a mesquinhez e sermos inteligentes, poderemos iniciar uma nova era em que a esperança terá razões para se manter viva.

Li no Guardian um artigo interessante que vai precisamente neste mesmo sentido Reasons to be hopeful in 2021. E enuncia algumas:

  • A vaccine for HIV: ‘This is an incredibly exciting result’
  • Bristol: the people behind Britain’s greenest big city
  • Vodka made out of thin air: toasting the planet’s good health
  • Cleaning up the ocean: ‘Things that seem insoluble can be solved’
  • Saved from extinction: the rare species back from the brink
  • Regenerative farming: a return to nature-friendly agriculture
  • Bringing sight to the blind: developing a new artificial eye
  • Celebrity philanthropy: when the great are also really good
  • Anti-ageing: the worms that may help us live longer, healthier lives

E cada um que se sinta optimista e que goste de assim se sentir será capaz de enunciar uma mão cheia de razões que o justifiquem. Razões pessoais, razões gerais. 

Podemos ter razões para preocupação pessoal, podemos sentir tristeza porque os nossos sonhos se têm revelado uma ficção e uma frustração, podemos sentir desgosto porque nos sentimos desrespeitados ou injustamente tratados por aqueles por quem sentíamos genuíno afecto, podemos sentir medo perante a imponderabilidade do futuro, podemos sentir falta de muita coisa e até de meios para sobreviver condignamente, podemos sentir profundas saudades de quem está ausente, podemos ter mil razões para duvidar que melhores dias virão. Podemos, claro que podemos. Todos nós temos razões para nos sentirmos reticentes, mesmo descrentes.

Mas, no meio de tudo isso, podemos também acreditar que há milagres, podemos pensar que, no meio de um céu cinzento e pesado, aparece por vezes uma mancha de luz e que, da mancha de luz, nasce um arco-íris transportando todas as cores do universo. E, quando menos se esperar, chegarão as palavras daqueles que amamos, chegará a notícia que desejávamos, chegará o abraço pelo qual esperávamos, concretizar-se-á o sonho que teimava em manter-se vivo, chegará o inesperado e tão almejado reinício. Acredito nisso. E, se todos acreditarmos também, as coisas acontecerão. 

Claro que isto, aos ouvidos dos incréus, pode ser apenas música celestial. Não digo que não seja. Digo é que, mesmo os descrentes, no mais fundo de si, gostariam de ser tocados pela graça de uma boa surpresa mas terão que perceber que, para que ela aconteça, terão que ter a humildade de dar passos nesse sentido e terão que estar disponíveis para, depois, a receber. 


A vida na nova era DC pode ser uma vida bem melhor. Acredito mesmo nisso.

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As fotografias são da autoria de Jan von Holleben

Fiz-me acompanhar, enquanto escrevia e escolhia as fotografias, pelos The Paper Kites que, aqui, interpretam By my side, tema que, se calhar, não tem muito a ver com o que escrevi mas que me soa muito bem.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira. 
Dias felizes.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

Um domingo normal
[E, se quiserem, sintam-se à vontade para encherem o normal de aspas]

 


A salinha onde habitualmente nos sentamos à noite a ver televisão foi, noutra vida, o quarto de um dos filhos dos anteriores proprietários. Tinha, pois, as tomadas adequadas a essas funções. Agora, com dois sofás, um móvel com uma televisão e box, candeeiros de pé, computador, etc, as tomadas eram poucas e situadas onde menos dava jeito. No piso de cima a que chamo sótão mas que, na verdade, é uma sala muito grande, para além de outros compartimentos, havia a mesma questão: ao lado de um sofá tenho uma mesa com um candeeiro e, para o ligar, só com uma extensão. Por isso, este domingo esteve cá um senhor a colocar, nessas divisões, as tomadas necessárias. Agora já não há fios à vista já que há tomadas perto do que é preciso. 

Entretanto, de manhã, chegou parte da família: vieram buscar as bicicletas e capacetes e, ala moço, todos a pedalar pelas redondezas. Quando chegaram do passeio, uns quilómetros, as crianças estavam com fome, perguntaram pelo lanche. Pãozinho morno com ovo mexido, servido na rua. A seguir, fomos até à horta e comeram tangerinas directamente da árvore, já bem docinhas. E, porque já eram quase horas, lá se foram.

Como o senhor ainda continuava, fui para a divisão onde está a biblioteca de língua portuguesa que uso como meu poiso para as reuniões pois é num canto da casa que é mais isolado e onde posso estar sossegada, falando sem incomodar e sem ser incomodada pelo meu parceiro de teletrabalho. E, então, pus-me a magicar. Desde sempre tive a ideia de colocar a chaise-longue sob a janela, abaixo do parapeito que é baixo, e a pequena secretária num canto ao fundo. E sempre estive aí lindamente instalada até que os dias começaram a ficar mais pequenos. Essa divisão está virada a norte o que, nesta altura do ano, a torna escura. Por isso, a partir para aí das quatro e tal da tarde tenho tido que estar de candeeiro aceso. Então, hoje não fui de modas: abdiquei da bela ideia da chaise longue junto à janela e, aí, mesmo de frente e encostada à janela, está agora a mesinha de trabalho. E a chaise longue foi para a parede entre a estante a e a outra parede. Agora escrevo mesmo à janela, vendo as flores de perto, cheia de boa luz. Se estiver com a janela aberta, se calhar sentirei o perfume das flores. Fiquei mesmo contente com esta nova disposição das coisas.

Depois do senhor sair, limpámos o chão de todo o lado por onde ele andou, desinfectámos tudo, deixámos estar a casa a arejar. 

Depois fui pôr a roupa na máquina. Já passava bem da uma e tal quando fui para a cozinha fazer o almoço. Fiz lombo de atum fresco de cebolada, acompanhado de arroz basmati aromatizado com uma folha de louro e um fio de azeite.

A seguir, estendemos a roupa e, por incrível que possa parecer, fomos outra vez ao supermercado. 

É o nosso contacto mais assíduo com o que nos sobrou da civilização. É pequeno, este, tem sempre pouca gente. Gostamos de lá ir. E só isto dá para ver ao que isto chegou, quão fundo batemos. É que, não sei se estão a ver, ambos detestávamos ir ao supermercado... Mas, enfim, adiante. 

Não apenas queríamos comprar já mantimentos para a ceia e para o dia de natal como, no outro dia, tinha lá visto, na entrada, um ficus benjamina já grandinho e a bom preço e que, por esquecimento, não trouxe. Explico porquê: em frente da cozinha há um pequeno pátio e é aí que está o estendal. Esse pátio é limitado, na parte paralela à rua, por uma meia parede de vidro e, em tempos, era aberto para o jardim. Como quem cá morava tinha gatos, para eles não fugirem, colocaram uma espécie de grelha alta, em metal branco, à laia de porta. Aquilo assim aberto até dá jeito: por exemplo, se estou na cozinha ou no jardim e tocam à campainha, posso ver, por ali, quem está ao portão. Mas tem o inconveniente de, se tenho roupa estendida, se ver um bocado quando se passa na rua. Não gosto. Então pensei em pôr um vaso grande, com uma planta que cresça bem, como um ficus, do lado de fora da grelha, no jardim. E assim foi. Trouxemo-lo. Depois fomos ao viveiro comprar um vaso. Como ando há séculos com vontade de ter uma taça de suculentas e havia lá uns vasinhos minúsculos muito baratos trouxe quatro e uma taça. 

Quando chegámos a casa, foi disso que fomos tratar. Fomos buscar terra escura e boa ao fundo da horta, coisa de que gosto muito, mexer na terra húmida e macia é para mim um prazer. Mudei-as dos vasos onde estavam para os novos, ajeitei-as. Fiquei toda contente. 

Como no sábado à noite tinha feito sopa e uns cuscus mediterrânicos a acompanharem frango estufado e tinha sobrado, e do almoço também tinha sobrado, estava livre de fazer jantar -- o que me faz sempre sentir quase de férias. 

Fomos, então, fazer a nossa caminhada. Já estava a fazer-se de noite e, a meio do passeio, já estava noite feita. Caminhar por aqui à noite dá-nos uma outra dimensão do lugar. As casas parecem diferentes. Sempre gostei de passear à noite -- por vários motivos e um deles tem a ver com a visão exterior da intimidade da casa dos outros. Na volta tenho um certo espírito de voyeuse... Como já aqui o contei, por estas bandas, grande parte das casas tem grandes janelas ou painéis de vidro que ninguém se preocupa em cobrir. De noite, com as luzes acesas lá dentro, vi várias árvores de natal gigantes, lindas. E vêem-se confortáveis salas com belos candeeiros. Por vezes vêem-se as pessoas lá dentro. Algumas casas têm iluminações no jardim. Gosto de ver. Se não estivesse tanto frio, se os cães não ladrassem tanto mal alguém se aproxima dos seus limites territoriais, se não pudesse prestar-se a confusões, acho que gostaria de andar de binóculos e máquina fotográfica a ver, a registar, a imaginar quem são e como é a vida daquelas pessoas. 

Quando chegámos a casa, estava a vizinha do lado a cirandar na sua cozinha. Estava confortavelmente vestida, com uma roupa confortável, casaco de capuz, o seu cabelo comprido espalhado pelas costas. O meu marido disse: não olhes. Mas era impossível não ver. É jovem, bonita, simpática e, pelos vistos, não se importa que a vejamos a andar pela casa.

Ao entrar, acendemos o candeeiro de pé que o meu marido se lembrou de colocar junto à entrada, ao pé de um jarrão natalício -- tem lá dentro umas as hastes iluminadas e, na base, ramos de pinheiro, camélias e umas pinhas --, e apontado à aguarela que está por cima. A luz é amarela, suave, fica o ambiente muito aconchegante. 

Pequenas coisas assim agradam-me: a luz suave num recanto da casa, um jardim iluminado numa rua envolta em noite, uma bola de natal rodopiando na aragem nocturna, suspensa num arbusto, o perfume dos cedros à noite quando passo junto às vedações, uma laranja pesada de sumo, fria, doce, uma fatia de diospiro doce e sumarento com uma fatia fina de queijo da serra em cima, um chá quente e saboroso, o sorriso, a voz, as brincadeiras das crianças. 

E, assim, começa-me uma nova semana. No trabalho, a mudança divulgada, a máquina em movimento. Em casa, o natal que ainda não consegui bem perceber como vai ser. Em casa de portas e janelas abertas? Na rua? Tão atípico. Tudo atípico.

Não sei como sairemos disto. Talvez consigamos voltar a ser parecidos com o que éramos antes. Talvez pareça um ano de hibernação. Talvez venhamos a pensar com saudade nestes tempos de hibernação. Sei lá. 


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As fotografias foram feitas cá por casa e fazem-se acompanhar pelos The Paper Kites a interpretar Climb On Your Tears

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.