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quarta-feira, julho 28, 2021

Teletrabalho e felicidade

[A despropósito: sabem que Portugal foi anunciado como o quarto país mais seguro do mundo e o segundo mais seguro da União Europeia?]



Sou absolutamente favorável ao teletrabalho sempre que as funções o permitam, sempre que o trabalhador tenha condições em casa e o deseje. 

Trabalhar em casa pode ser tão ou mais produtivo do que trabalhar num escritório. 

Do que conheço, as maiores dificuldades estão não do lado do trabalhador mas do lado de quem o chefia. Há chefes que julgam os outros à sua imagem, pessoas que gostam de circular, fofocar, andar de gabinete em gabinete, levando e trazendo, e que imaginam que essa é a única forma de trabalhar. Essas pessoas perdem o chão quando estão em teletrabalho. Há também os que o são à moda antiga: precisam de ter tudo em papel, precisam de quem os alimente com papel, precisam de ver os trabalhadores nos seus locais de trabalho. São chefes que não sabem gerir avaliando os resultados nem sabem traçar objectivos ou definir metodologias: se vêem as pessoas em frente de um computador, admitem que estão a fazer o que devem, se as não vêem pensam que estão de férias.

Sei de casos escandalosos de incumprimento em que os chefiados não fizeram o que deveriam ter feito e em que os chefes não deram por isso, só acordando para a realidade quando algo de grave aconteceu. E aí, como é óbvio, não se auto-responsabilizaram por não terem sabido avaliar se o trabalho estava a ser feito, culpando antes o trabalhador ou o teletrabalho.

Claro que há muitas funções que não podem ser desempenhadas em teletrabalho ou a tempo inteiro em teletrabalho. Mas as que o podem, se as pessoas entregam o trabalho que devem, sabem interagir saudavelmente seja em reuniões remotas, seja ao telefone ou mails, se as pessoas se sentem melhor, equilibrando de forma equilibrada a vida profissional e a vida pessoal, então acho que é estúpido, retrógrado e tacanho não querer aceitar a evidência de que os tempos mudaram.

Da minha própria experiência, tenho que, para mim e para muitas pessoas que trabalham comigo, o teletrabalho é uma bênção nas nossas vidas.

Quando é preciso estarmos presencialmente estamos, quando não é preciso e não queremos não estamos. Há alguns que, de vez em quando, gostam de ir até ao antigo local de trabalho para estarem com os colegas. Não precisam de me dizer nada sobre isso. Não vigio nem controlo a realização das tarefas individuais ou as suas deslocações: quero é que o trabalho apareça feito, a tempo e horas e bem feito. Se o fazem a partir de casa, da praia, ou do escritório tanto se me dá.

Com o fim do desconfinamento, a questão vai voltar a colocar-se. E espero bem que haja a inteligência organizacional suficiente para que, quem decide, pense no bem-estar, na felicidade dos trabalhadores e, claro, na eficiência do trabalho.

Não se aplica a todas as profissões, como é óbvio mas aplica-se a muitas, a muita gente, o suficiente para produzir efeito na sociedade.

O Governo deveria fomentar a adopção do teletrabalho. É o futuro e contra as correntes fortes não vale a pena nadar. O governo deveria, pois, recomendá-lo: incentivando a que as pessoas residam fora dos grandes centros, voltando a zonas abandonadas no interior do país, incentivando a que o movimento pendular casa-emprego-casa seja reduzido, diminuindo tempo improdutivo gasto no trânsito, reduzindo a poluição, criando condições para que muitas famílias não tenham que deixar as crianças quase de madrugada nas creches só as buscando ao fim do dia, melhorando as condições de vida de muita gente. 

Será toda uma reorganização territorial a ser pensada. 

Sobre este assunto, permito-me transcrever parte de uma interessante entrevista, no DN, a José Magalhães.

Também é coordenador da Comissão de Segurança e Saúde no Trabalho do INE. Juntando esta experiência profissional ao psicólogo como avalia o impacto que teve nos portugueses o facto de muitos terem passado a um regime de teletrabalho?

Vou partilhar consigo a minha experiência mais direta relativamente ao contacto com os colegas no INE. A esmagadora maioria dos colegas, quando ficaram em casa, passado um mês estavam altamente preocupados, achavam que era uma situação cansativa, que não havia possibilidades de movimentação, que se sentiam menos bem. Entretanto, foram criadas condições para se estar em casa. As organizações, neste caso do Estado, o Instituto Nacional de Estatística, não estavam preparadas para ter 600 pessoas em casa. À medida que o tempo foi passando, foram criadas condições. E hoje a percentagem de pessoas que encontraram no trabalho em casa a sua realização pessoal aumentou grandemente. As pessoas estão em casa, conseguem fazer o seu trabalho, conseguem gerir a sua vida e um grande número de pessoas sentem que encontraram na função de teletrabalho o seu sentido de vida profissional. Conseguem estar mais concentradas, mais livres, porque conseguem gerir o seu tempo, na maior parte dos casos trabalham até mais horas sem darem por isso.

O que é que os patrões podem fazer para que as pessoas se sintam seguras e até felizes para regressarem ao trabalho?

É evidente que o teletrabalho não é adaptado para toda a gente, existem áreas onde não é possível. Agora, o que o empregador tem de fazer, na minha opinião, é analisar quais são os postos de trabalho que tem no seu quadro de empresa, seja pública ou privada, que são passíveis de ser feitos em teletrabalho. Depois tem de fazer uma avaliação sobre quem são as pessoas que têm perfis psicológicos funcionais para estar na função do teletrabalho, porque nem toda a gente responde bem ao teletrabalho. Há pessoas que estão em teletrabalho mas que mostram permanentemente uma necessidade de interação, de estar em termos presenciais no local de trabalho, há pessoas que a partir de uma determinada altura solicitaram autorização para ir para o local de trabalho, não conseguiam ter concentração em casa. Se a decisão for fazer regressar toda a gente só porque sim quer dizer que não aprendemos rigorosamente nada com o que estamos a fazer agora. O teletrabalho não é só importante agora porque houve pandemia.

Qual é então a sua mensagem para os empregadores?

É que existe um grupo alargado de pessoas que estão há demasiado tempo em casa e o ser humano é um ser de hábitos e houve pessoas que se adaptaram às rotinas de casa. Portanto, uma decisão para regressar ao trabalho, se for extemporânea, se for apenas uma decisão métrica, no sentido "a partir de agora, estamos todos bem, volta toda a gente", vai causar problemas de saúde mental graves, agudizados, não tenho dúvidas sobre isso. E se quisermos voltar ao tema inicial teremos pessoas menos felizes.

Além de existirem muitos trabalhadores que preferem estar no local de trabalho, também existem muitos empregadores que querem os funcionários por perto, pois acham que em casa não trabalham tanto...

A liderança remota tem de se aprender, as reuniões em situação remota têm de se aprender e, sobretudo, as lideranças têm obrigatoriamente de mudar. Não só em termos da administração pública, também em termos dos privados, as lideranças têm obrigatoriamente de mudar. Continuamos com lideranças muito voltadas para quem é líder e quem é chefe não poder assumir um erro, não poder pedir desculpas, ter de saber tudo, não poder mostrar hesitações. A liderança do futuro é uma liderança participativa e a liderança, se quiser funcionar em termos remotos, mais participativa tem de ser. E, claramente, as lideranças nas organizações públicas ou privadas são de facto o fio condutor para podermos ter trabalhadores felizes, organizações felizes e trabalhos produtivos.

[Excerto da entrevista, José Magalhães "A percentagem de pessoas que encontraram no trabalho em casa a sua realização pessoal aumentou grandemente"no DN, de Ana Meireles a José Magalhães, doutor em Psicologia e coordenador da Comissão de Segurança e Saúde no Trabalho do Instituto Nacional de Estatística]


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Pinturas de Johannes Vermeer na companhia das Fadoalado, vencedoras do Got Talent Portugal 2021

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Era para ter escrito sobre a afinal humana Simone Biles mas afinal desviei-me. 
A ver se amanhã falo dela. 
Uma gigante que mostra, uma vez mais, que é corajosa ao expor a sua vulnerabilidade.
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Desejo-vos uma bela quarta-feira

domingo, outubro 04, 2020

Um jardim de repente cheio de luz, little cogumelos já avistados na horta, beautiful flowers a aquecer o meu coração, um gelado ao fim da tarde -- coisas em forma de assim num sábado tranquilo

 


Temos aqui três pinheiros muito altos. Os anteriores proprietários eram como eu, durante tanto tempo, fui: não queriam tocar nas árvores, deixavam-nas crescer em liberdade, queriam sombra, queriam ambiente de bosque. Muito bonito. Só que nós, entretanto, ganhámos o gosto por árvores desramadas, com a copa lá em cima. No caso dos pinheiros, acresce a menor quantidade de caruma que teremos na relva. Mais sol, menos caruma. Vieram cá hoje tratar disso. Com uma destreza incrível, sobem às árvores, andam lá por cima, agarram os ramos grossos com cordas para que não caiam desamparados. Só vendo. Ao fim de umas horas o panorama era outro. O meu marido diz que estas árvores devem ter de altura uns trinta ou quarenta metros. Não faço ideia. Dois tinham enormes e pesados ramos que tombavam não até ao chão mas que ficariam talvez a uns dez metros, talvez menos, não sei. Agora todos esses ramos foram à vida. Os pássaros vão estranhar e tenho pena. Mas haverão de se habituar a andar só lá por cima. 

No fim, o chão tinha um mar de ramos, um mar encapelado. Nem havia onde pôr os pés. Chegou, então, uma brigada de lenhadores de terra. Cortaram ramos, carregaram carrinhos de mão que levaram para uma camioneta. Isto durou horas. 

Perguntaram se queríamos a madeira. Apenas um pequeno monte que ainda virão cortar para a semana. Há lá atrás um casinhoto cheio dela, não precisamos de mais. Além disso, quando os pintores cá estiveram, antes de nos mudarmos, disseram que as paredes por cima das lareiras estava um pouco mais escura, ligeiramente mais amarelada, porque a madeira de pinheiro não é boa para queimar, tem muita resina. 

Agora uma coisa vos digo. Quando finalmente levaram tudo, já eram seis da tarde (e começaram antes das nove da manhã). E foi nessa altura que consegui circular sob as redesenhadas copas dos pinheiros. E o perfume que estava no ar era uma coisa do além. Tão, tão, tão bom. E tanta luz, o jardim a parecer mais amplo e luminoso.

Entretanto, enquanto eles andavam naquilo, transplantámos para vasos maiores o asparagus densiflorus e o bonsai de exterior. O meu marido podou o bonsai. Já, in heaven, volta e meia, poda arbustos de uma forma curiosa, quase como bonsais. Quem o viu e quem o vê. Aos poucos foi sentindo o apelo da natureza e hoje já é de gosto que anda a cortar mato ou a podar árvores (quando estamos in heaven) ou a regar a horta aqui.

Também, entretanto, fiz uma máquina de roupa que, como estava um ventinho bom, ainda deu para quase secar e, ainda brandinha e boa para o efeito, passar alguma a ferro. Depois fomos arrumar algumas coisas à outra casa mas, como já era tarde e porque a motivação é quase nula, pouco fizemos. O meu marido diz que, quando a vendermos, logo arrumamos o resto. Não concordo. Há alguns móveis que estão a fazer falta e não gosto nada de saber que tenho coisas para fazer. Parece impossível como empacotámos e transportámos tanta coisa em tão pouco tempo, um sprint que nos ia arrasando mas que já passou, e agora este resto parece não acabar. 

Abri o que era o roupeiro do meu filho e fiquei sem saber o que fazer a toda aquela roupa. São coisas boas mas que, ou porque agora não servem ou porque parecem um pouco fora de moda, para ali estão. Por exemplo, descobri uns calções e duas mini saias da minha filha, de quando era solteira, que se calhar ainda lhe estão boas. Trouxe para ela ver e provar quando cá vier. Mas há também parkas, há blusões. Ainda por cima, na fase em que estou, em que parece que perdi a vontade de consumir, tenho a sensação que tenho o suficiente para não precisar de comprar o que quer que seja a nível de roupa ou adereços até ao fim dos meus dias, mesmo que viva até aos cento e trinta. Em contrapartida, sei que o corpo se vai modificando e, portanto, o que não me cabe hoje pode caber-me daqui por uns tempos. 

Contudo, há coisas que deito fora sem contemplações: calças largas. Já não consigo ver-me sem ser com calças justas, seja de corte direito quer afuniladas. Portanto, calças largas são imediatamente postas ou para dar, se forem boas, ou para deitar fora, se forem banais.

Bem. Não contei que, antes de irmos para este sacrifício, fui carregar baterias anímicas: um gelado com três sabores, qual deles mais guloso que o outro. Aproveitei também para dar uma breve esticada. Breve, brevezinha que o tempo era escasso.

Isto antes. Depois, fomos ao supermercado. Penso que estamos abastecidos para uma semana, isto se formos só nós. Aproveitei para, entre outras coisas mais prementes, trazer também gengibre cristalizado e favas congeladas, coisas que, por estas bandas, ainda não encontrei. 

Chegámos, pois, carregados de mantimentos e outros produtos que higienizámos e guardámos, e de tralha que se mantêm em sacos na cave, a aguardar os móveis que estão por vir e que, na maioria, irão também para a cave.

Portanto, agora estou aqui cheia de sono. Enquanto escrevo, ouço na televisão o balanço do dia um pouco por todo o mundo. É assustador o que está a voltar a acontecer em Espanha. Aliás, a curva está a empinar-se preocupantemente em vários sítios do mundo. No entanto, quando demos a nossa breve volta aquando da ida à gelataria, pasmei com a quantidade de gente que vi em esplanadas ou a conversar na rua, sem máscara, muito próximos. Dá ideia que grande parte da malta se fartou de cuidados e está numa de pagar para ver. Não digo que seja uma má decisão, digo apenas que, volta e meia, a covidecas dá para o torto e que, mesmo quando não dá, há casos em que ficam desagradáveis sequelas. Por isso, pela parte que me toca, tento não me pôr à vontadinha. Já basta quando me distraio.

Sobre o Trump não me pronuncio. Toda aquela entourage prima pela opacidade ou pelas manobras de diversão e eu não tenho paciência para lidar com coisas assim.

Portanto, nada mais tendo a acrescentar, com vossa licença irei preparar-me para me deslocar até aos meus aposentos privados.

Espero que gostem das flores do meu jardim. Quanto ao gato, acho-o lindo. A ver se um dia começa a vir para perto de mim. Não sei bem para quê. Mas gostava.

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E acabo com um vídeo a que acho muita graça: o ar surpreendido, agradado e coquette de toda a gente a quem alguém diz que é bonito. A vida deveria ser assim, entre coisas muito belas, entre sorrisos, entre palavras simpáticas, de amor e carinho. Estou toda numa de peace and love.



A todos desejo um belo dia de domingo

sexta-feira, março 20, 2020

Com vossa licença, agora o tom é outro.
E contém um CovidSutra, um CoronaSutra, umas mangas de alpaca de balão, um potente anti-vírus e outras cenas


Ao fim do quarto dia de teletrabalho, fartinha de trabalhar em contínuo, de sol a sol -- sem ter tempo para pegar no balde e lavar nem que fosse mais um palmo de chão, sem ter tempo para sacudir um tapete que fosse ou para arrumar nem uma gaveta chinfrim -- fartei-me de carpir. Não dá. Bolas para isto. Não há saco. Não quero estar para aqui a queixar-me desta insana estafadeira. Não basta ela, ainda mais estar para aqui a falar dela. Ná, ni penser. 

Hoje, num intervalo, fartésima de mails e telefonemas e com os problemas a choverem-me em cima, peguei em mim e fui andar para o meio das árvores. Espreitei o DN e, pelo segundo dia consecutivo, vi a flecha a amolecer. Pensei: não há tusa que sempre dure nem exponencial que sempre se empine. Depois ocorreu-me que o pensamento era capaz de dar aforismo bom para emoldurar. E comecei a rir e a lembrar-me dos meus ídolos, os meus gurus, naquela vez em que estavam na cruz a cantar que há sempre um bright side of life. E resolvi: se a gente se rir na cara do pompom dos totós cor-de-rosa, a flausina capaz de recolher o desaforo. A gente não pode mostrar medo. A bicha é que nem caniche, se sente o medo nos outros, arreganha o dente e avança para cima.

Com esta disposição, fui para casa, pus o franguinho ao lume para fazer um cheiroso arrozinho dele com tomatinho, feijaozinho verde, cebolinha e etc. E, enquanto ganhava cheirinho de comidinha caseirinha feita com alegria e alecrim, voltei para os problemas. Mas, naquela disposição de afastar de mim as maçadas, despachei tareia em dois, sorrisos para outros, atendi chamadas e, antes de ir à bucha, voltei para uma volta rápida para snifar o cheirinho a eucalipto, a pinheiro e a cedro. Quando regressei, estava com uma fomeca de dar gosto.

A tarde correu de feição. 

Disse à minha mãe: arranje um lençol velho e faça uma bata como aquelas descartáveis que usamos quando vamos fazer ecografias. A minha mãe tentou desviar a conversa. Até treme quando venho com ideias. Disse ainda: arranje também uns chinelos. E expliquei que a senhora que lá vai ajudar a tratar do meu pai, não deve estar em casa com os sapatos e com a roupa da rua. A minha mãe suspirou. Tem medo de ofender, não quer melindrar. Insisti: mãe, é para levar a  sério. Vocês são grupo super de risco, ninguém devia entrar aí. Mas como tem que ser, que vá blindada, não pode roçar em nada com os braços vindos da rua. Não tem equipamento adequado, faz-se. A minha mãe suspirou. 

À hora de jantar, liguei-lhe, uma video chamada. Ficou logo toda: ai, que nem o cabelo arranjado tenho. Mas eu também não. Tomei banho e deixei o cabelo secar de qualquer maneira, estou uma leoa com juba. Fomos falando até que chegou a senhora. Passado um bocado, a minha mãe mostrou-me a ela e ela a mim. Desatei a rir à gargalhada e elas as duas também. Estava de máscara e com umas mangas azuis claras de balão. A rir à gargalhada, mostrou-me as mangas: olha, as mangas de alpaca que a tua mãe me fez. A minha mãe disse: saíram mangas de balão. E escangalhavam-se as duas a rir e eu com elas. Ela saíu da cozinha para ir para o quarto do meu pai: 'olha, adeus, agora vou ali fazer uma operação'. E saíu a rir, a minha mãe perdida de riso. Uma cirurgiã de mangas de balão e, disse-me ainda a minha mãe, com uns chinelos que eram do meu pai. Perfeito.

E, se bem que o dia tenha sido longo, hoje estou assim. O meu marido com uma baita neura e eu toda cheia de animação. Tenho a certeza, e chamem-me maluca: as boas notícias vão começar a chegar. É só a gente deixar-se ficar na toca, em isolation, a curtir a situation, a esperar que a má onda passe e que a maluca e reboluda gaiteira dos pink totós não nos bata à porta, nem à nossa nem à de quem amamos e, claro, à porta de cada vez menos pessoas. 

Tirando isso, dizer mais o quê?

Niente. Só se for para desejar que a nuvem negra que baixou sobre Itália se dissipe rapidamente, que os raios e coriscos que invadiram Espanha também, que, por todo o lado, a malapata se vá e que, não tarda, a gente ande a jogar ao berlinde com o pink-covid. 


E c'est ça. E agora, com vossa licença, vou ver coisas fantásticas. Podia ir ler ou dedicar-me a coisas mais eruditas. Mas não estou para isso, hoje estou toda para esvaziar la tête e deixar que a música, a surpresa, a graça e o good mood me banhe.


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E queiram fazer o favor de descer para a lição de máscara do Peçanha.

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sábado, fevereiro 22, 2020

O Governo Sombra, o Pedro Mexia e Rothko, o Vasco Pulido Valente.
E o tempo que passa.




Uma vez mais, estive a ver o Governo Sombra. No outro dia fiquei surpreendida e hoje confirmo que  parece que mudaram ligeiramente de registo. Parece que estão um pouco mais atilados. Se calhar é porque estão todos mais velhos, já terão ganho mais noção de quão efémero é o poder que têm. Talvez seja o tempo a fazer o seu trabalho também sobre eles. Até o João Miguel Tavares parece ligeiramente mais ponderado. Ainda não aprendeu a pensar mas, enfim, parece que já consegue elaborar melhor as tentativas de raciocínio. Acresce que se apresenta mais composto, quase civilizado, cabeça rapada e todo em noir. O Ricardo Araújo Pereira também parece não querer fazer, a toda a hora, o papel de palhaço de serviço. Só às vezes. Quando fala a sério, percebe-se que é capaz de ter qualquer coisa interessante lá dentro. E Pedro Mexia continua equilibrado e com ideias estruturadas pelo que se ouve sempre com interesse até porque se aprende sempre com ele. E estou a dizer isto sem estar a prender-me, particularmente, ao sentido do que defendem mas à qualidade da argumentação ou, pelo menos, à forma como falam sobre os assuntos da semana. Não concordo com muito do que dizem mas para se gostar de ouvir outros a conversarem ou, inclusivamente, para participar na conversa, não é forçoso que todos alinhem pela mesma cartilha.
Sei que o facto de dizer estas coisas pode parecer confuso aos olhos dos fundamentalistas que acham que se digo que simpatizo com o Pedro Mexia, assumido simpatizante do CDS, ou se me mostro mais tolerante com o João Miguel Tavares, conhecido descerebrado que pensa com o nariz (Mexia dixit), é porque tenho motivações secretas. E digo isto pois hoje recebi um mail dando-me conta de uma coisa feia. Para que eu visse com os meus próprios olhos, um Leitor a quem agradeço enviava-me um link para um comentário num outro blog no qual um comentador relativamente habitual do Um Jeito Manso escreve aparentemente sobre mim, mas escreve com a maledicência a escorrer-lhe das mãos, deturpando o sentido do que escrevi e acrescentando que 'o teor de alguns posts já antes era estranho e as respostas a certos comentários eram por vezes provocatórias e nem sempre correctas' e concluía, 'Passarei ao largo desse local daqui em diante'. Não refiro o nome dessa pessoa, ou melhor as duas letras com que se assina, nem coloco o link para o dito comentário pois não me agrada dar palco a gente cobarde e estúpida que não apenas treslê em vez de ler como, em vez de ter a frontalidade de me dizer aqui o que pensa, vai, qual vizinha, fazer fofoquice nas minhas costas. Mas adiante que com gente que age assim não faz sentido que se perca mais tempo do que já perdi. E acho bem que não volte a pôr aqui os pés -- que gente que pensa e escreve com os pés não faz cá falta nenhuma.
Mas, volto ao Governo Sombra só para dizer que, quanto ao moderador, o que tenho a dizer é que estava mais arranjadinho do que o vi ali pela hora de almoço, desfraldado e com ar meio despassarado. Mas nada contra os desfraldados e despassarados.
E, por falar no Pedro Mexia, estive agorinha mesmo a ler o que ele escreve sobre Rothko (na crónica 'O vermelho e o negro' integrada no Livro 'Imagens Imaginadas') e revi-me totalmente nas suas palavras. Fiquei foi muito admirada pois tinha para mim que ele ficaria indiferente a uma pintura a que aparentemente apenas os intutivos e os que sentem com as vísceras seriam sensíveis. Não os exclusivamente racionais. Mas, pelos vistos, ou não é bem assim ou ele não é cem por cento racional. A pintura de Rothko é, de facto, luminosa e ambígua. O que ali está tem a ver, também para mim, com a ideia de acesso a um mundo vedado ou com a ideia de um memorial perpétuo.
O programa de hoje acabou, justamente, com o Pedro Mexia. O livro de hoje foi escolha sua e era um livro de crónicas de Vasco Pulido Valente. Hoje, ao ouvir as notícias, fiquei triste com a saída de cena de mais um. Ninguém cá fica, é bem certo. Mas faz impressão. É tudo tão passageiro, tão sem nexo se visto nesta perspectiva. Mas, enfim, é o que é. No entanto, quando se vai alguém ligado à cultura, parece que a perda é bem maior. Era tão corrosivo, ele. Tinha graça nesse seu excesso de ironia, nessa sua transbordante verrina. Inteligente, capaz de imagens destruidoras mas de uma eficácia brutal. Ia-se para uma crónica dele com a curiosidade de quem quer saber em cima de quem é que ele ia deitar o copo de veneno, sendo certo que o copo de veneno podia ir disfarçado de muitas e engenhosas maneiras. Não há nada como uma pessoa inteligente, culta, bem humorada e de verbo fácil. E, quando mais uma pessoa assim desaparece, inevitavelmente olha-se à volta e percebe-se que não há muitos mais com aquela verve e aquele frutuoso mau feitio e que isso é uma pena. Parece que o nosso mundo se vai extinguindo, tornando-se mais cinzento e triste. Mas claro, isto que digo é um lugar comum, apenas aceitável se me esquecer que essa não é a equação certa pois também nós, um dia, nos iremos e os que vêm a seguir a nós já não estão nem aí. Apenas lerão os sucedâneos do Instagram ou do TikTok que, fiquei a saber ontem, é o que está a dar junto dos mais novos. Portanto, coração ao largo e siga o baile.

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E, por falar em equilíbrios instáveis e em coisas que, se pensarmos bem, não fazem grande sentido -- como andar a gente uma vida inteira a querer aperfeiçoar-se para depois ir desta para melhor -- não vem nada a propósito mas deixem que partilhe este vídeo. É uma construção efémera e inútil. Mas o trabalho que lhe deve dar e a beleza que tem... Coisas que são para a gente ver e apreciar sem pensar muito nelas. Digo eu.


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As pinturas são de Bela Silva e não faço ideia de porque é que me apeteceu trazê-las para um post em que se fala de Rothko tal como não faço a mínima de porque é que me apeteceu ter o Mr. Bojangles a fazer-me companhia. São cenas.

E queiram aceitar o meu convite e descer até onde se festeja a alegria de viver e a sabedoria dos acasos.

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segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Tu és a única razão


Há amores grandes mas não há amor maior do que o de uma mãe pelos seus filhos. Mesmo que tenha vários filhos, amará cada um como se fosse o único. E, mesmo que os filhos tenham filhos, o amor que se sente por cada um dos mais pequeninos continuará a ser total, único, imenso, incondicional.

No outro dia, disse a um dos meninos: 'Meu amor mais lindo'. Ele, sempre justo, com um ligeiro toque de censura, chamou-me a atenção: 'Mas gostas mais de mim do que dos meus manos...?' Expliquei-lhe que não. Que gosto de cada um de sua maneira mas que é igualmente muito em cada um. Todos são os meus amores mais lindos, todos são os meus amores mais amores do mundo.

E o que noto é que a minha forma de gostar deles não muda com o tempo e com as circunstâncias da vida. Se se atrasam a ligar, se lhes ligo e o telemóvel está sem sinal, se qualquer coisa assim acontece, fico preocupada como ficava preocupada quando eles eram pequenos ou adolescentes. E não é por terem já formado as suas famílias que fico mais despreocupada. E o reverso é também verdade: quando estou com eles, fico na maior alegria. Não há para mim maior felicidade do que estar com os meus amores. E, se os meus pais estão também, ainda mais completa é a alegria. O meu pai já não se apercebe bem da barafunda que lá vai por casa mas para a minha mãe é também uma grande alegria ter a família, que se vai multiplicando, reunida. Ainda hoje lá estivemos  e vejo como a minha mãe rejuvenesce e brilha de alegria vendo como a casa rejubila com os risos das crianças.

Por tudo isto, ouvir o que se passou com o jovem aqui abaixo, imaginar o que a mãe sofreu quando pensou que o ia perder ou quando temeu as lesões com que ficaria -- e vê-los  agora juntos, a cantar com uma sentida emoção, emociona-me também a mim. Cantam muito bem e percebe-se como ambos estão agradecidos. São momentos felizes que sabe bem ver.

Sharon e Brandon sob uma chuva de estrelas

terça-feira, abril 24, 2018

O Padre Ray Kelly e a roqueira Jenny Darren


O Father Ray Kelly parece um santinho, tímido embora bem disposto, e apresentou-se nervoso embora querendo parecer à vontade.  A avózinha Jenny Darren parece uma crente da paróquia do padre, embora se perceba que há ali uma certa dose de irreverência. Apresentou-se avozinha da cabeça aos pés mas provou que quem vê caras não vê corações. Rapidamente se despiu de preconceitos e pôs o pessoal todo de olhos arregalados. Enquanto ele encantou com a sua voz sentida e de veludo, ela foi o contrário, bombou até deixar toda a gente ao rubro. Ele tem 64, ela 68.

Depois de ter escrito o que abaixo escrevi -- que não faz sentido alinhar os sonhos com o de outras pessoas já que isso pode significar abdicar deles a troco de nada e de ter partilhado o vídeo sobre isto de cada um ter o seu relógio da vida-- eis que me aparecem estes dois fantásticos vídeos. Vejam que vale muito a pena.
Passou-se no Britain's Got Talent 2018 deste fim de semana.
Ele interpretou Everybody Hurts dos R.E.M. Ela Highway To Hell dos AC/DC. Vejam (e ouçam), por favor, porque só visto (e ouvido). 




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E se ainda não leram o que escrevi abaixo, permito-me sugerir que o façam pois perceberão melhor o meu espanto ao descobrir estes dois espantosos cantores justamente logo a seguir a ter acabado de escrever o que escrevi. Ele há coisas, caraças.

E viva a vida!

terça-feira, março 21, 2017

Felicidade.
[Ou o desperdício que é não ser feliz]





Perante a mesma situação as pessoas reagem de maneiras muito distintas, tantas que se diria estarem a viver situações igualmente distintas.

Três casos ao acaso.

Trabalhou comigo uma pessoa que, profissionalmente, vivia num tormento. Sempre soterrado debaixo das preocupações, sempre a sentir que vivia situações limite, sempre na iminência de se ver por dentro de uma tragédia. Ficava a trabalhar até tarde, quase não conseguia gozar férias. Quando se combinava um lanche a meio da tarde ou qualquer outro momento de convívio, ele nunca conseguia comparecer pois o trabalho e as urgências a tal o impediam. 

Se calhava encontrar algum conhecimento mútuo, diziam-me: ‘então, já sei, as coisas por lá estão complicadas…’. Se eu mostrava espanto, que ideia, que não, problemazecos como sempre os há, nada de mais, logo me esclareciam que tinha sido fulano de tal, muito em baixo, stressadíssimo, que tinha falado nos seus múltiplos problemas. No entanto, era só ele que via tanto drama. Não me lembro de o ver feliz.


Lembro-me de um outro. Era responsável por uma área da empresa que ele conduzia com o desvelo com que se cuida de um jardim. Tudo num brinquinho. Ali nunca nada falhava. Era muito exigente mas era o primeiro a dar o exemplo. Nunca o vi despreocupado ou feliz. Parecia sempre vencido pelo dever. Entretanto, a empresa passou por uma das várias disrupções normais nos grandes grupos. Na sequência de um processo de aquisições e fusões, ele deixou de ser o responsável pela área, passou a adjunto. Para ele esse processo foi muito doloroso. Nunca conseguiu imaginar que aquela área deixasse de ser ‘sua’. Fisicamente, estou a falar de um homem forte, estômago proeminente, rosto avermelhado. Por essa altura, ele começou a andar numa pilha de nervos. Por vezes, temíamos que explodisse. Ou implodisse. O  estado era vulcânico. 

No entanto, o que lhe aconteceu a ele aconteceu a metade dos responsáveis. De repente, ao juntarem-se duas empresas, sobrava um director de cada. Passei por isso. Como na altura eu acumulava duas áreas, perdi uma mas devo dizer que também me custou pois perdi justamente aquela de que mais gostava. Contudo, nestes processos, o que conta não é apenas o mérito até porque os novos accionistas e respectivos representantes conhecem bem é os do seu lado, não os do outro acionista. Portanto, é frequente que fiquem os directores da confiança do administrador que tem o pelouro. Aos que sobram, são arranjados outros lugares ou, querendo as pessoas sair, facilita-se a saída. Para toda a gente estes períodos são sempre conturbados e nem todos os encaram com tranquilidade. Mas ultrapassa-se, que remédio. A vida continua e não serve de rada ficar agarrado ao passado, a carpir a injustiça da decisão ou o que for. Mas este meu colega sofreu especialmente com a situação. Ele achava que o novo responsável era pouco cuidadoso, que estava a estragar o espírito de rigor que antes imperava. Assisti a discussões inacreditáveis. Perdia a cabeça, ficava possesso. O seu rosto ficava, então, verdadeiramente a ponto de rebentar, quase cor de vinho, e os olhos quase desorbitavam. As outras pessoas assistiam perplexas. Até as que antes dependam dele ficavam atónitas. Uma vez, depois de lhe ter ouvido gritos e mais gritos, encontrei-o no corredor. Já seriam umas oito da noite. Perguntei-lhe o que se passava. Quase tremia de fúria e impotência: que tanto cuidado que ele antes sempre tinha para agora ser tudo feito em cima do joelho, que, para que o resto da empresa não se apercebesse do regabofe que por ali aí, começava ele a trabalhar às sete da manhã mas que ninguém lhe agradecia, ninguém queria saber da opinião dele que, na altura de receber os louros, eram os outros que os recebiam. E quase espumava ao dizer isto. Pensei, assustada: credo, qualquer dia dá-lha alguma coisa. 


Tranquilizei-o: que, do que eu sabia, tudo estava a andar bem, que nada podia ser tão grave, que não andasse ele a dar cabo da saúde, e que deixasse de ir fazer trabalho oculto ao princípio da manhã pois, se havia problemas, ele estava a ocultá-los e, assim, ninguém os resolvia, mas que se tranquilizasse, que não trabalhasse tanto. Nem me ouviu. Perguntei-lhe se andava a vigiar a tensão arteral. Que sim, que andava altíssima, e como não?, a ter que aturar todos os dias aquele incompetente? 

No dia seguinte procurei o novo director. Era muito diferente dele mas notoriamente competente. Antes falei com os antigos subordinados. Estava toda a gente serena, não havia ali stress, o trabalho parecia correr sobre rodas. Quando falei com o chefe dele, tendo o cuidado de não relatar as enormidades que tinha ouvido, o chefe mostrou-se preocupado, que não sabia como lidar com ele, que em qualquer coisa via um problema de vida ou morte, que perdia a cabeça por ninharias, que se estava a afastar cada vez mais dos seus antigos subordinados a quem olhava, agora, quase como ‘vendidos’. Fiquei ainda mais preocupada com ele. Pensei mesmo que ele estava a dar cabo da vida e, ainda por cima, sem qualquer motivo para isso. Ou melhor, motivos de descontentamento sempre os encontramos. Mas, onde uns seguem em frente, outros afundam-se neles -- e era o caso dele. 

Mais tarde, não sei se meses ou um ano, já eu não trabalhava lá, parei uma vez numa estação de serviço. Estava na fila para pagar quando ouço o meu nome. Olhei para trás e não conheci ninguém. A voz era a dele mas não era ele. Era um homem muito magro, a roupa larga, o rosto branco. Fiquei para morrer. Tão abismal era a diferença que não fui capaz de dizer uma palavra sobre a súbita magreza. 

Perturbada, comentei, mais tarde, o encontro com um colega. Perguntou-me: ‘Então não sabe?! Está muito mal. Já nem deve durar muito. Quando se descobriu, já era tarde demais. Continua na mesma luta, a aparecer na empresa às sete da manhã, sempre a mesma labuta, vai morrer debaixo desta dupla agonia, doente e sentindo-se incompreendido, desprezado. Toda a gente lhe diz que descanse, que não se enerve, mas é mais forte que ele.’ 

Morreu pouco depois. A empresa continuou a funcionar normalmente. E eu, volta e meia, penso com tristeza no absurdo que foi aquilo: pelos vistos já estava bem doente sem o saber e naquela luta insana, e, mesmo depois de saber que estava a caminho do fim, continuou a desperdiçar, um a um, cada minuto da sua vida. 


E um outro. De todos já aqui falei antes. Também foi meu colega e, ao contrário dos restantes colegas dessa altura que era tudo boa onda, achava-se o melhor de todos. Via defeitos em tudo o que os outros faziam, e dava como exemplo o que ele fazia. Ele era o mais exigente, o mais justo, o mais avançado, o mais rigoroso, o mais tudo. Segundo ele, nós éramos os patetas alegres, os facilitistas, os que, por falta de ambição, não haveríamos de tirar o pé da lama nem de levar a empresa a lado nenhum. As pegas que tive com ele foram incontáveis. Naquela sua ânsia de conseguir economias, não se ensaiava nada de fazer cortes cegos, passando por cima de quem lhe fizesse frente. Assisti à forma desabrida como tratava as pessoas, vi a forma como massacrou alguns que se puseram a jeito até que uma vez o avisei, à frente de outras pessoas, de que, à minha frente, não voltaria a tratar assim quem quer que fosse pois, se o fizesse, estivesse ele seguro de que me levantaria da mesa e me demarcaria publicamente da forma quase selvática como queria atingir os seus propósitos. Para minha pouca sorte, numa das múltiplas reestruturações pelas quais já passei ao longo da minha vida profissional, na sequência de umas quantas demissões, eis que ele, falcão exemplar, é repescado para a administração e eu, entre outros directores, ficamos a depender dele. Foi dos períodos complicados da minha vida. Ele via-se como sempre se tinha visto: o maior, o melhor, e eu era aquela que a levava na boazinha, amiga da classe operária, defensora dos desvalidos. Guerras que só visto. Queria educar-me. Ora com quem ele se foi meter. Também destratou outros colegas meus mas os homens têm um medo intrínseco: o de que, se avançarem, podem, na sequência disso, ter que partir para o passo seguinte que, na opinião deles, só pode ser um de dois: ou ir às trombas ao outro ou demitirem-se. Portanto, por via das dúvidas, geralmente engolem em seco. Eu não. Vocês já sabem alguma coisa de mim. Dificilmente me fico, especialmente se achar que o outro não tem razão. Portanto, era taco a taco. Quando ele, num dia de guerra a sério, me sugeriu que eu me demitisse, respondi-lhe que não o faria e que o mais provável é que fosse ele a ir ao ar antes de mim. 

Talvez por ser público que aquilo entre nós não ia a lado nenhum, houve nova reatribuição de pelouros e deixei de trabalhar com ele. Aí, estranhamente, reaproximou-se, mudou, e ficámos a dar-nos até bem. Mas continuou a infernizar a vida aos outros. Pouco depois, nova reviravolta e a administração foi destituída. Acabou mesmo por ‘ir ao ar’, ele. Andou um bocado aos papéis mas, por ser pessoa válida, logo foi administrar outra empresa, felizmente longe de mim. Aí voltou a usar a sua filosofia de vida, de que quase todos os outros eram uns relapsos, uns improdutivos, que ele é que era bom, inteligente e sensato. Inventou maneiras para controlar a produtividade das pessoas, arranjou maneiras de introduzir novos métodos nem sei de quê. Como sempre, estava ele de um lado, ele o bom, o eficiente, o exemplar e do outro lado da barricada o resto do mundo. Os inimigos não se lhe fizeram esperar e tenho ideia de que alguns lhe moveram, mesmo, processos.


Pessoalmente era pessoa civilizada, embora parecendo sempre 'em serviço', como se não pudesse dar-se ao luxo de ser feliz, tantas as ralações. Conheci-lhe a mulher que era bastante querida. Presumo que ele a tenha educado tal como educou os filhos, tal como tentava educar toda a gente à sua volta. 

Um dia, um outro colega ligou-me. Não tinha eu sabido? Eu, que não. Pelas notícias? Eu, não. Agressão violenta à porta de casa, ninguém sabia quem é que o tinha agredido daquela forma, coisa muita feia, e ele em coma, dificilmente escaparia. Ficamos todos em estado de choque. Meses de coma. Escapou mas, claro, não voltou a ser a mesma pessoa. Não sei se ele tem memória de como desperdiçou a vida enquanto tinha qualidade de vida. Pensará algumas vezes no absurdo que tinha sido aquilo de tentar educar toda a gente, achando-se melhor que todos? Naquele afã, nunca lhe vi vestígios de felicidade.

Três exemplos. Podia dar mais uma mão cheia deles. Pessoas que, vá lá saber-se porquê, parece que não percebem que estão a desperdiçar a vida. 

A sensação que tenho é que que se esquecem da sua natureza animal. Parece que acham que vieram a este mundo com uma missão. Ou parece que se esquecem que é da natureza animal arranjar saída para as dificuldades que aparecem. E que se vive para viver e para mais nada. E que de nada servirá estar vivo se for para andar a fazer-se de morto. Tem que ir à caça e não tem cão? Pois cace com gato. Era apaixonada pelo maridão e o maridão cansou-se de tanto amor? Pois azarinho -- e o que não falta são outros homens (e, ainda por cima, estão sempre a nascer, como me disso no outro dia uma que ficou viúva). Ficou sem trabalho? É horrível mas há que dar a volta, fazer outra coisa, outra coisa qualquer. Teve que se desfazer da casa? Pois é, uma grande desgraça, mas que se procure outra mais pequena, mais longe, mais barata -- e melhores dias virão. Está doente? Então força, isso há-de passar, e haja descanso, afecto, pensamento positivo e, sobretudo, vontade de seguir em frente porque para a frente é que é caminho. E não é nada de muito dramático mas não tem dinheiro para cinemas, restaurantes? É pena mas passear à beira-rio ou no parque não custa dinheiro, ir a uma biblioteca não custa dinheiro, ir ouvir música de rua não custa dinheiro e pode apanhar-se sol e ver outras pessoas. 

O que é a felicidade? 

Para mim é isto. É ir em frente, é procurar estar bem, é aceitar o que acontece e, se não for bom, tentar dar a volta por cima, é ir à luta, é encarar a vida com optimismo, é gostar de dar e receber, é não consumir energias a maçar os outros, é gostar de rir, é procurar o riso, é dar valor às pequenas coisas, é gostar do que se tem, é gostar de estar vivo. Não é nada de especial -- mas é bom.


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Lá em cima é uma menina de 14 anos, sem braços, abandonada pelos pais, a cantar e a tocar piano no Got Talent da Roménia neste domingo. Parece feliz.

As fotografias foram feitas no Ginjal, lugar que tem o condão de pôr sempre ainda mais feliz.

E agora vou espreitar uma biografia de Stephen Hawking que é outro que tal, sempre com ar de quem a sabe levar na boa.

Se alguma coisa ali me cair no goto, conto-vos.

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