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segunda-feira, outubro 21, 2019

"A realidade é aquela coisa que não se vai embora quando se deixa de acreditar nela." *





Se vos contasse o que me apetecia poder sentir a liberdade de cortar amarras, de partir à descoberta, começar uma nova vida. 
Bem, não todas. Há amarras que não são amarras, são laços, laços indestrutíveis. Desses jamais me poderei separar. Mas há outros que sim. Facilmente seria capaz de desfazer os nós e sair sem voltar para trás.
Sinto, por vezes, que me poderia abeirar de uma estrada nova onde me sentiria como me gosto de me sentir: sem saber o que vou encontrar.


Lembro-me quando fui a uma entrevista há muitos anos, sem saber nada, nem qual a empresa, nem o que ia fazer. Fui. Quase como se fosse de olhos vendados. Lembro-me de quando comecei a trabalhar nesse sítio depois de passar por entrevistas, algumas bem desafiantes. Mandaram-me apresentar num sítio onde antes nunca tinha ido. Não fazia ideia. Fui à aventura. Quando fui ao departamento de recursos humanos fiz algumas perguntas que deixaram a pessoa que estava a acolher-me muito espantada: mas não se informou antes? Aceitou o emprego sem se informar? De facto, não. E estar a ocorrer-me ali fazer aquelas perguntas até a mim me surpreendeu.

Ao contrário de outras pessoas que se informam, que estudam tudo antes de para irem a algum lado, eu gosto assim. Blind date. É como quando vou visitar outra terra. Conheço quem estude os locais, os restaurantes, estabeleça percursos, e vá conhecer a terra como se fosse apenas confirmar na prática aquilo que já conhece na teoria. Eu não. Quero descobrir, quero surpreender-me.

E é o que me apetece: iniciar uma nova ocupação, conhecer outras gentes, outro mindset. Encalhei no mindset e tive que ir ver a tradução. Mentalidade. É isso: outra mentalidade, outro comprimento de onda, outro ambiente, outras palavras. 


Uma das vezes em que uma das empresas passou por uma fusão foi, para mim, um entusiasmo. Disseram-me, tal como disseram a outros colegas: agora vai ser responsável também por aquilo. E aquilo era algo que eu desconhecia em absoluto: o local onde trabalhavam, o que faziam, quem eram. Enquanto os meus outros colegas ficaram a processar, a avaliar como fariam a abordagem à pista, a estudar processos e os perfis das novas pessoas eu, para surpresa geral, no dia seguinte meti-me no carro e, sem aviso e às cegas, apareci lá. A surpresa de todos, incluindo a minha: foi uma coisa boa, uma daquelas emoções que nos enovela o estômago e nos põe um frémito no corpo todo. Falem-me de vocês, digam-me quem são, contem-me o que fazem. E assim foi: estivemos um dia à conversa. Saí de lá com ideias novas, parecia que tinha entrado num mundo novo. 

Mas agora nem era isso que me apetecia, isso já me parece pouco. Agora era mesmo um outro rumo, uma profissão diferente, hábitos culturais distintos, gente desformatada. 

Interrompi para jogar no euromilhões porque pensei que há o lado prático e isso, na realidade, poderia ser uma ajuda.

E ando com umas ideias. Muitas ideias. 


Por exemplo, acho que isto do clima é coisa muito séria e que medidas de fundo têm que ser tomadas e que há paradigmas que vão ter que ser radicalmente alterados a curto prazo e acho que a ciência e a tecnologia têm que se focar nas prioridades: travar a desertificação, garantir o abastecimento de água potável, conseguir reduzir o aquecimento. E acho que uma destas questões vai passar por encontrar tecnologia acessível. Já entreguei documentação sobre um caminho possível para que se estude o investimento mas quem o recebeu achou a ideia tão à frente que não lhe deu a devida atenção. E eu acho que não estão a ver bem. E acho que é coisa para o Governo, as empresas e as universidades trabalharem em conjunto. Estou a querer puxar pelo lado empresarial mas, às tantas, se calhar deveria puxar por outro. Ou insistir. 

Mas isso eu só gostava de lançar e de acompanhar até garantir que ia mesmo avante. Porque, no mais fundo de mim, o que eu gostava mesmo era de ter tempo para me dedicar a outra actividade, uma coisa muito diferente, um mundo muito novo. Outra gente, outros ambientes, outro mundo. 

E mais. 


Pode soar a loucura e se calhar é e, se calhar, sou meio louca. Ou completamente. Mas não faz mal.

Quando, no meu dia a dia, tenho que aturar gente medíocre que se acha a maior, gente que se agarra  aos seus pequenos poderes, gente que não consegue ver ao longe ou dar espaço a que outros despontem e se afirmem, só me apetece levantar-me e dizer que se vão catar, que já dei demais para tão infértil peditório, que tenho mais que fazer. Debato-me pois com o sentir que tenho que engolir sapos, porque faz parte, ou ser inconveniente, levantar-me, dizer que, se é para ficar, é com gente de confiança, gente capaz. 

E nem sei porque estou com esta conversa quando sei que a vida é assim mesmo. 


Tirando isso, só tenho a dizer que, talvez devido ao adiantado da hora,  tudo me parece possível, quer a capacidade para ir aguentando o lado pior da realidade quer a capacidade de manter em suspenso os sonhos, sonhando um dia poder abraçá-los.

E depois há a natureza, minha sempre presente mestra: ensina-me, maravilha-me, encanta-me, mostra-me o que é a vida, o perecimento, a queda, mas também a reinvenção, o renascimento. 

Por exemplo (e, na verdade, não sei bem o que pretendo exemplificar). Ia a passar e sentia o perfume. Perfume fresco e limpo. Parei. Vi o que me parecia um resto de flores secas, como que um cacho de pequenas flores. Aproximei-me. Cheirei. Era dali que vinha o perfume. Ao pegar para melhor aspirar o perfume, senti que não estavam secas, estavam frescas e macias. E depois reparei que havia mais. Muitas. Muito perfumadas. Nunca as tinha visto. E, no entanto, que lindas e gráceis e perfumadas florzinhas. Que maravilhosa surpresa. Que bom auspício.


As fotografias foram feitas in heaven (e repararam que os cogumelos já começaram a aparecer? e não são lindos, uma perfeição?). Lá em cima Kenny Wheeler & John Taylor interpretam Fordor justamente de Where do we go from here.

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* Com os meus agradecimentos e o devido crédito ao ninghem que escreveu o que coloquei no título e me deixou mais dois presentes num comentário num post mais abaixo.

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E os meus votos de um dia feliz a todos vós

quarta-feira, setembro 18, 2019

Jorge Amado. As novas rotas da seda. Alvim e a sua Prova Oral





Só para dizer que na segunda não consegui mas que esta terça, num ápice, mergulhei numa livraria.  Minutos, a despachar. Esta rentrée não me está facilitada. Ando com o tempo muito contado e isto já para não falar que, para algumas coisas, com pouca paciência. Mas agora é para falar de livros, não de trastes. 

De qualquer maneira, ainda não estou muito ambientada a muita prateleira, muito expositor, muita cor, muita coisa, muito barulho. Sinto falta do silêncio, da largueza sem muita gente à volta. Mas as coisas são o que são. Portanto, se em vez de livros a capela, tem que ser livros à mistura com pseudo-livros e outras pseudo-coisas, tudo envolto em burburinho, pois que seja,

Peguei na biografia do Jorge Amado porque tive uma fase da minha vida em que gostava muito de ler tudo o que ele tinha escrito. Aquela escrita que trazia sal na pele, areias que à noite acolhem santos e orixás e amantes que se abraçam entre gemidos e ais de amor, longas praias com pescadores, cabanas e muitos amores, e terreiros e traições e paixões. Gostava de lê-lo a ele e a outros brasileiros. E fui também saber onde estava As novas rotas da seda, recomendação do Malomil que disse que era imperdível e eu, bem mandada como sou, pensei logo que era bom para o meu marido. E se ele o ler e gostar e não quiser resumi-lo pode ser que eu o leia. Ando preguiçosa. Ainda estas férias tentei isso com outro livro. Primeiro com ele e, como não resultou, tentei a sorte com a minha mãe. Também não tive sorte, disse-me que aquele livro era uma seca. Mas acho que este das rotas da seda deve ser interessante, seca nenhuma.


E agora estive aqui a folhear a biografia do Jorge Amado escrito por Joselia Aguiar, e talvez vá gostar de ler até porque parece que também fala de outros de que eu gostava tanto ou mais do que dele e tudo junto deve ter graça. E estive a ver as fotografias que lá vêm e achei graça porque a última que aparece é ele e a mulher, de costas, a passearem à beira mar. Pensei que gostava de ter podido ser eu a fotografá-los, mais um daqueles casais caminhantes de viagem de longo curso que partilham afinidades e afectos e que mostram porque é que há amores que perduram.

Ainda tentei encontrar lá outro de que soube também na blogosfera mas só por encomenda e pagando logo e isso, por princípio, não faço. Terei que tentar noutra livraria que venda material mais marginal. 

Tirando isso, só tenho a acrescentar que estive a ver a Prova Oral e que me diverti à brava. O Alvim é um daqueles meus malucos de eleição que não perco. Diverte-se e só de vê-lo divertido já eu me divirto. E os convidados dele são sempre uns bacanos que proporcionam momentos de boa onda. Hoje levou duas piradas da cabeça que iam dando com o Bordalo II em doido. Fartei-me de rir com tanta maluqueira.

E pronto. Depois do Pitt, Brad Pitt, é só isto que tenho a declarar -- o que, convenhamos, não é muito.


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As flores em gelo foram obtidas aqui.

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E um dia feliz.  Saúde e alegria.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

Disse-lhe que a situação me fazia lembrar 'O velho e o mar'


No post abaixo já falei do ex-deputado que, em tempos, precisava de pimenta na língua, o José Eduardo Martins, e que, nos frente-a-frente da SIC N, se porta como a versão bijeenche do catavento. Para evitar cenas maçadoras daquelas, com as quais já não se aguenta, apresentei umas quantas sugestões. Os Departamentos de Programação das televisões deviam pôr os olhos no que eu digo, que, entretenimento por entretenimento, que seja a valer.

Mas isso é mais abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra. Recordações de novo, recordações de um tempo que me parece tão estranhamente longínquo. Recordações que irão sair com um certo toque de nostalgia, quer-me cá a mim parecer.



Era um homem que todos diziam frio e implacável. Muito rico. Despudoramente rico. Podendo usar carro de serviço usava os seus carros pessoais, carros antigos, vintage, lindos. Quem percebia do assunto, fazia estimativas para o valor dos carros: uma exorbitância que deixava alguns muito irritados (exibicionismo, diziam muitos). Tinha também um motorista particular. Os muitos detractores alegavam que era para tratar de negócios secretos, pouco abonatórios. Também lhe atribuíam negócios com ouro ou diamantes por terras de África. Um dia ele disse, Dizem muitas coisas mas poucas são verdadeiras. E contou-nos a proveniência da sua fortuna. Segundo ele, não passava pelo ouro nem por pedras. Também disse, Falam muito dos carros que uso. Uso-os porque gosto muito deles e porque, tendo eu possibilidades, acho que não devo usar carro de serviço. Também falou do motorista: era alguém a quem se tinha afeiçoado, já trabalhavam juntos há muito tempo, fazia recados para a família, tratava de tudo o que fosse preciso. Se podia pagar a alguém de quem se tinha tornado amigo, porque haveria de recorrer a motoristas de serviço?

Quando o filho se casou, a festa foi fantástica. Convidou-me. Convidou os colaboradores mais próximos. Muita gente, família, amigos, quer do lado dele quer do lado da noiva. Uma tenda gigante numa zona plana da sua belíssima quinta. Estava um belo dia de verão e um ambiente muito agradável. A mulher, o oposto dele, dançou a noite toda. Ele não, manteve-se reservado, quase silencioso. Mas via-se que estava feliz. Sorria vendo a alegria e a vivacidade da mulher.


Mas era implacável, sim. Quando desconfiava da lealdade ou da seriedade de algum colaborador, munia-se de provas, cercava-o sem que ele se desse conta. Depois, quando confrontava o prevaricador, o golpe era rápido e certeiro. Tantas e tão inequívocas as provas que quem assim era confrontado apenas tinha que aceitar as condições que lhe eram propostas para se ir embora. E tinha um feeling impressionante. De um colaborador antigo, que toda a gente tinha por exemplar, teve uma desconfiança estranha. Tão melindroso era o assunto que apenas confiou em mim para o ajudar a confirmar. Fiquei chocada, quase ofendida. Como duvidar assim de uma pessoa tão leal, tão séria? Inflexível, inalterável, pediu que eu lhe desse o benefício da dúvida e que fizesse o favor de atender ao seu pedido, só isso -- e de maneira que ninguém desconfiasse. Senti-me a pior das criaturas por estar a ir na cantiga dele. Mas pior fui ficando à medida que fui confirmando aquelas suas absurdas desconfianças. Nem queria acreditar. Antes de o informar do que quer que fosse, muni-me eu, pela calada, de todas as provas possíveis. Não havia dúvida: aquele de quem ele tinha desconfiado e em quem eu confiava sem pestanejar andava mesmo a roubar – e de uma forma absolutamente ardilosa, quase indetectável. Foi despedido de um dia para o outro. Ninguém soube das razões, foi como se o próprio tivesse tido razões para sair. Quando lhe perguntei como tinha desconfiado, disse-me que alguém lhe tinha dito que tinha encontrado num certo Casino uma pessoa que ele talvez conhecesse, o tal. Só isso. A partir daí, através de perguntas inocentes, foi percebendo que algumas pequenas pontas pareciam ligeiramente soltas. Desconfiou que tivesse o vício do jogo. Pensou que só com o ordenado, não conseguiria fazer face a dias de infortúnio. Pensou que de algum lado haveria de vir o dinheiro. Penso que, no fundo, foi o faro do predador.

Mas mesmo em situações menos redutoras, agia de forma irredutível, tranquila, segura. Uma vez, numa acesa reunião, um dizia que não concordava, que não podia aceitar o que ele queria. Ele dizia que agradecia a sinceridade da opinião mas que se faria como estava a dizer. O outro, ao fim de alguma insistência, levantou o tom de voz e disse que, com ele, aquilo não se faria. A mesa estava cheia. Ele, impassível, disse O senhor doutor está enervado, talvez seja preferível sair para ver se consegue acalmar-se. O outro, desabituado de ser tratado dessa maneira, ainda por cima em público, respondeu secamente: Não preciso de ir lá para fora. Mas ficou corado, quase parecia um puto que tivesse levado um raspanete. Ele, tranquilo, disse-lhe, Como queira, senhor doutor, esteja à vontade, se sentir que precisa respirar ar fresco ou dar uma volta, esteja à vontade. O outro não piou mais.

Vi-o anular várias resistências sem levantar o tom de voz. De todas as vezes teve razão em fazê-lo mas a forma como o fazia, de facto fria e implacável, assustava. Ficava-se com a sensação de que podia matar alguém a sangue frio, sem se alterar. Geralmente, a seguir, prosseguia como se nada se tivesse passado. Era uma pessoa muito educada mas inexoravelmente distante.

E era um jogador destemido. Arriscava sem medo, com a convicção de que, estando a fazer o seu melhor, mesmo que errasse teria tentado dar o seu melhor. Quando pensava numa dessas jogadas arriscadas ouvia várias pessoas. Geralmente desaconselhavam-no, aconselhavam prudência. Ele ouvia em silêncio. Depois vínhamos a saber qual a sua decisão, geralmente a que tinha em mente desde o princípio.  

Era desconfiado, não o escondia e, por isso, temiam-no. Um amigo meu ficava nervoso sempre que ia falar com ele. Quando vinha de lá, muitas vezes ia ter comigo ou telefonava-me para desabafar: ‘Acho que passei… mas olha, foi mesmo à tangente. Filho da p…!’


Comigo não se passou isso: nunca senti que desconfiasse de mim, nunca o temi. Muitas vezes, a conversa acabava com ele a fazer-me confidências. Acabei por me tornar o seu braço direito. Eu confiava nele, ele confiava em mim. Sendo a pessoa mais racional que até hoje conheci, era, noutras circunstâncias, absolutamente crente na minha intuição. Perante movimentações de risco que eu lhe propunha, esperando eu que ele as dissecasse e as analisasse numa perspectiva racional, e eu queria que ele o fizesse para me fazer sentir segura, ele olhava para mim e perguntava-me ‘O que é que a sua intuição lhe diz?’ E se eu, por dentro meio assustada, lhe dizia que sentia que era de arriscar, ele concluía, ‘Então, força’.

Encontrava-o geralmente durante o dia mas quase parecia ao lusco-fusco. Corria quase completamente os estores, dizia que com muita luz não via muito bem, e geralmente só recebia uma pessoa de cada vez. Quando havia mais pessoas para a conversa, a coisa convertia-se em reunião e decorria noutra sala.

Uma vez, havia uma cena importante em curso. Ele chamou-me e disse-me qual a sua ideia. Achei coisa de envergadura, não sabia se tínhamos pedalada nem se os outros que ele queria envolver teriam peito para isso. Parecia-me um sonho impossível. Mas ele acreditava. Falou com todos, de facto aderiram, confiavam nele -- era, verdadeiramente, um lobo ou, melhor, aquilo a que se chama um falcão. Metemo-nos, pois, nessa aventura. Mas, como logo percebemos, os dados estavam viciados.

Lutou como um leão mesmo quando era mais do que óbvio que não poderíamos ganhar. No fim, quando a derrota se confirmou, tivemos um enorme desgosto, ele mais do que todos os outros. Apesar de não levantar a voz, quase parecia que, por dentro, rugia. Ou uivar em silêncio como um lobo revoltado, esfaimado.

Resolveu avançar para os tribunais. Dissemos-lhe que estávamos com ele. Estávamos.
Mas eu alertei: Se fizer isso, será certamente destituído. Respondeu-me que não acreditava que o fizessem, que era um cidadão livre, que podia fazer o que quisesse na sua vida privada sem que isso interferisse na sua vida profissional. Homem conservador, lembrou-me a mim, cujo coração sempre bateu mais à esquerda, Vivemos em democracia, miúda.
Avançou (avançámos) em força para os tribunais. Gastei algum dinheiro nisso mas ele muito mais, muito mais do que qualquer um dos outros. Não quis acordos, queria mesmo a reparação do erro. Por vezes parecia querer sangue, de tão revoltado que estava. Mas sempre educado, aspecto sereno, voz baixa. Sentia que estava com a razão e, quando assim era, só estava habituado a ganhar. Várias vezes lhe dei o meu apoio mas dizendo-lhe que achava que o corredor se estava a estreitar, que talvez fosse preferível desistir, aceitar um acordo ou desistir mesmo. Que não, que não era pessoa de se ficar pelo caminho.


Um dia, algum tempo depois, estranhei que não quisesse falar comigo durante o dia como habitualmente. Chamou-me ao fim do dia, a escuridão era quase total. Disse-me em voz baixa: Fui destituído. Tinha razão.

Fez-se silêncio. Durante um bocado, não fui capaz de dizer nada. Depois disse-lhe que me estava a lembrar de O Velho e o Mar. Ele fez que sim com a cabeça, que percebia a analogia, mas que não poderia ter feito outra coisa. Não sei o que lhe disse a seguir mas lembro-me do que ele me respondeu: Sinto que as suas palavras são um abraço. Nesse dia fiquei muito triste, senti que um capítulo importante da minha vida estava a chegar ao fim.

Foi-se embora.  Tinha (e tem) as suas próprias empresas e muitos bens. Nada daquilo ali lhe fazia falta. Estava lá porque gostava daquilo, porque tinha ambições muito legítimas, porque, de certa forma, tinha um sonho (que eu partilhava). Nessa altura perdi muitas das minhas ilusões. O país estava, de facto, votado ao empobrecimento a troco do favorecimento de uns quantos eleitos.

Já lá vão uns anos.

Deixou para trás alguns inimigos (alguns, ainda agora, com uma antipatia e rejeição tão fundas como na altura, o que é o costume quando se está perante pessoas carismáticas), muito poucos amigos e muitos, muitos admiradores. Eu, tendo conhecido, antes dele, pessoas extraordinárias, depois dele poucas mais conheci com a visão, capacidade de liderança, determinação e coragem que lhe reconhecia.

Um dia, tempos depois, num almoço, contei-lhe, Vou ser avó. Olhou para mim incrédulo, O quê, miúda…? A sério…?. Estava emocionado. Tantas guerras, tantas situações complicadas pelas quais o vi passar e sempre impassível, frio, e foi preciso saber que eu, a miúda, ia ser avó para o ver de lágrimas nos olhos. Tenho para mim que foi a constatação de que o tempo passa, de que a vida continua, de que aquele sonho de tempos antes haveria de ser esquecido, que de tão longínquo e de tão utópico que já parecia, haveria por não ser lembrado por ninguém, talvez nem pelos próprios que o viveram.

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O Velho e o Mar começou por ser um livro de Hemingway
(depois foi filme, animação, metáfora, etc)
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Os desenhos são da autoria da polaca Justyna Stoszek excepto o penúltimo, mais colorido, que é da autoria de Dimitra Milan (que tem apenas 16 anos). Lá em cima Kenny Wheeler & John Taylor interpretam Fordor.
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E, para uma coisa mais actual e para uns números a la Monty Phyton ou para uma padaraia muuuuuuiiito especial (a propósito da participação do José Eduardo Martins num debate da SIC) queiram, por favor, descer um pouco mais.

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quinta-feira, novembro 19, 2015

A música nas palavras. Fatal. Pura e simples.


“The rhythm of music has been the biggest influence on my writing – it’s not Wordsworth, it’s Ray Charles.” Michael Ondaatje, one of Canada’s most influential authors, explains how music and writing are so connected that they must sometimes be separated. 

Ondaatje is influenced by music to such a degree that when he writes, he has to do so without music, as it affects the rhythm of the sentences too much. Words and sentences create their own rhythm, their own music: “The pacing of a paragraph or a long, long sentence that takes up over a page is closer to music than anything else I know.” 

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Os moços tão bonitos me doem,
impertinentes como limões novos.
Eu pareço uma actriz em decadência,
mas, como sei disso, o que sou
é uma mulher com um radar poderoso.
Por isso, quando eles não me vêem
como se me dissessem: acomoda-te no teu galho,
eu penso: bonitos como potros. Não me servem.
Vou esperar que ganhem indecisão. E espero.
Quando cuidam que não,
estão todos no meu bolso.


['Fatal' de Adélia Prado in 'Bagagem']
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Muito gostaria que me visitassem também no meu outro blog, o Ginjal, onde hoje vou com a Maria Bethânia desfiando palavras que seguem a luz dos Poemas de Amor do Antigo Egipto.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.
Que se sintam felizes é o que vos desejo.
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segunda-feira, abril 20, 2015

Umberto Eco rodeado de livros, signos e segredos








Rodeia-o a sua biblioteca. Está toda aqui.

Sobretudo aqui – perto de 30 mil volumes – mas também na minha casa de campo. E no meu escritório na universidade e num pequeno apartamento em Paris… Todos juntos devem ser à volta de 50 mil. (…)

Há por aí muita gente estúpida que quando entra no meu apartamento exclama: ‘Oh, tantos livros! Leu-os todos?'


O que responde?

Há três respostas. A primeira é: ‘Li muitos mais’. A segunda é: ‘Não li nenhum, senão porque os guardaria?’. E a terceira é: ‘Não, mas tenho de os ler na próxima semana’. Uma biblioteca não é um repositório dos livros que já lemos. É também o lugar onde guardamos os livros que iremos ler.


Então, tem a ver com o futuro?

Tem a ver com o futuro. Uma biblioteca é um mistério. Há livros que nunca tínhamos lido e um dia dizemos: ‘Deveria lê-lo’. E quando o abrimos percebemos que sabemos tudo sobre ele. O que aconteceu? Existe uma explicação mágica segundo a qual, ao tocarmos um livro, o espírito de todos os livros viaja para a nossa mente. Outra explicação é: pensávamos que não o tínhamos lido, mas ao longo de 30 anos fomo-lo abrindo e lendo partes dele. Existe ainda outra: pelo meio, acabámos por ler imensos livros que falam desse livro. É uma das surpresas que a biblioteca pode reservar. No meu caso, tenho muito boa memória. Sei onde está cada livro, mas se alguém da família encontrar um que deixei num determinado sítio e o mudar de lugar é uma tragédia. Perco-o para sempre.

(...)


Porque tem tantos livros sobre ocultismo?

Sou fascinado por eles, mais do que por livros 'sérios'. Peguemos num autor como Athanasius Kircher, um jesuíta do século XVII que escreveu imensos livros sobre todos os assuntos. À excepção do primeiro, muito difícil de encontrar, tenho-os todos. São livros maravilhosamente ilustrados, porque falam de coisas que o autor nunca viu e teve de inventar. As mentiras são mais fascinantes do que a verdade. A 'Ilíada' é mais atraente do que uma reportagem no Iraque. Não é por acaso que me dediquei à semiótica, a teoria e filosofia dos signos. O que torna os signos interessantes não é servirem para dizer a verdade, mas poderem ser usados para mentir ou falar de coisas que nunca vimos. Uma linguagem revela a sua importância quando é usada para referir coisas que não estão lá. Na minha colecção não vai encontrar Galileu, mas sim Ptolomeu, porque estava errado.

(...)

'A harmonia não está na extensão do fôlego, mas na regularidade com que se respira'. Num texto o ritmo é essencial?

Respirar é essencial. Ler o texto, lê-lo em voz alta, muitas vezes, para controlar o ritmo. O ritmo muda de livro para livro. Os meus romances anteriores, de 500 páginas, são como sinfonias de Mahler, enquanto este último, 'Número Zero', é como o jazz. Por vezes digo aos meus tradutores: 'Estás a explicar demasiado e a perder o ritmo'.

(...)


[Excertos de uma entrevista de Luciana Leiderfarb a Umberto Eco, publicada na revista E do Expresso de sábado passado]

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Já agora,

Signs & Secrets: The Worlds of Umberto Eco



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Para quem consiga tempo:

The Library as a Model for Culture: Preserving, Filtering, Deleting & Recovering


 This is a lecture by renowned Italian author and scholar Umberto Eco, which he delivered at the Yale University Art Gallery on Friday, Oct. 18, 2013.




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A música lá é Pure & Simple - John Taylor

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Permitam que vos convide a descer até ao post a seguir para verem como as flores e as árvores estão em festa in heaven. 

Mais abaixo ainda mostro alguns rostos das ruas de Lisboa. Tudo ao som de Sara Serpa.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira. 
E que estes dias sejam dias de paz, harmonia, afecto. 
E saúde (e dinheiro para os trocos, claro).

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segunda-feira, janeiro 05, 2015

É Stoner um livro inexoravelmente triste sobre um obscuro professor, um homem tristonho e fracassado que perde quase tudo ao longo de uma vida repleta de desilusões? Eu acho que não, acho que é muito mais do que isso.


No post abaixo, a propósito das respostas que José Sócrates enviou à TVI sobre aquilo de que é acusado todos os dias nos jornais (aparentemente veiculando informações oriundas da acusação), falo da importância que, para mim, têm as opiniões de Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa - esses dois macacos de rabo pelado que há anos o andam a passear pelas cadeiras de comentadores das televisões, com o objectivo de irem levando a água ao seu moinho - que este fim de semana opinaram, de cátedra, sobre o assunto. 

Mais abaixo ainda, mostro o vídeo que mostra o excerto de um programa de televisão no qual uma historiadora elege o Homem do Ano 2014: 'Um Homem sem Qualidades', alguém que infelizmente conhecemos bem demais. Rigorosamente a não perder.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra. Muito outra.


Se estiverem de acordo, vamos com Between Moons pelas mãos de John Taylor




Ao ler grande parte das frases de referência que anunciam o livro Stoner de John Williams ou mesmo a sinopse da contracapa - das quais extraí as expressões que compõem o título deste texto - parti para a sua leitura um bocado de pé atrás. Ou seja, se a coisa ia ser uma deprimente sucessão de factos anódinos de um personagem sem história talvez não tivesse grande paciência para me aguentar até ao fim.

No entanto, a rápida leitura salteada e transversal que fiz agarrou-me de forma inequívoca e essa é a luz verde de que preciso: era para avançar.

E avancei.

E, tendo-me aproximado deste livro (inicialmente publicado em 1965 e logo caído no esquecimento até que, quase 50 anos depois, uma escritora francesa o traduziu e o fez renascer), a minha opinião não é essa. Não acho que Stoner seja um homem infeliz, submerso pela pouca sorte, apagado e dramaticamente frustrado. De facto, Stoner teve uma vida idêntica à de quase todas as pessoas que conheço.

Personagens com vidas fulgurantes, sucessivos picos de sucessos, grandes contendas e vitórias retumbantes encontram-se geralmente na literatura, no teatro ou no cinema - não na vida real. Mesmo as grandes celebridades da história (seja na governação, no estrelato, seja onde for) têm frequentemente igualmente grandes insucessos a nível familiar, dramas domésticos ou derrotas inesperadas.

Se eu pensar em quase todas as pessoas cujas vidas relativamente conheço, vejo nelas momentos de frustração pessoal ou profissional, apatias que se arrastam na monotonia dos anos, desmotivações que se vão tentando colmatar por outras vias, etc. Claro que há também as pessoas que vão levando a sua vida com aparente regularidade, harmonia, em paz, na companhia dos seus. Mas, sabendo bem do que se passa dentro da vida dessas pessoas, quantas vezes não vemos que há sempre presente a sensação de que se podia fazer muito mais, de que tudo seria diferente para melhor se isto, aquilo ou o outro não tivesse acontecido, ou a pena por a sorte não ter bafejado numa dada altura em que tanto jeito teria dado?

Stoner é, assim, um homem normal. Oriundo de um meio desfavorecido e rural, de uma família pobre, é alguém habituado a resistir as intempéries da vida. É resiliente, trabalhador, humilde, digno. Como antes aceitava sem se queixar a dureza do trabalho físico, continuou, vida fora, a aceitar com rijeza todos os contratempos que lhe vão aparecendo. Não verga, não desespera. Enfrenta, de coluna vertebral direita, todos os escolhos e agruras com que se vai deparando.

Tanta gente que eu conheço assim. Vidas familiares difíceis, pouco afecto em casa, pouco reconhecimento no trabalho, chefes ou colegas mesquinhos - e, no entanto, lá vão vivendo com dignidade as suas vidas, um dia após o outro.

Vivendo uma vida conjugal desprovida de sintonia e intimidade, Stoner conhece um dia uma mulher que o faz apaixonar-se e que sente por ele igual paixão. Tal como todos os amantes pensam, num primeiro andamento, que vão poder viver uma história de amor ímpar e só deles, também Stoner e Katherine se entregam ao deleite de um amor que pensam ser inaugural.

E, como sempre acontece, chegou a altura em que ou assumiam às claras ou se sujeitavam a retaliações. E, também como geralmente acontece na vida real, Stoner e Katherine resolveram continuar as suas vidas, separados, e guardar no coração e na memória aquele infinito amor.

Depois da separação de Katherine, Stoner envelheceu, perdeu aquela energia que o fazia correr e vibrar, mas continuou a viver a sua vida de sempre, com igual inteireza.

Contudo, apesar de o livro relatar, com mestria, a vida de um homem normal, há qualquer coisa de arrebatador na escrita que nos puxa, página atrás de página, como se estivéssemos a seguir a vida de um aventureiro. E, no entanto, o que nós acompanhamos ali, de perto, é a interioridade de um homem normal e bom. Nós sofremos quando ele é prejudicado, nós sentimo-nos felizes quando ele experimenta a felicidade.

E sentimos que, lendo-o, passamos a conhecer melhor a natureza humana. Ou talvez não seja uma questão de conhecer mas de analisar, de pensar sobre os acasos que vão determinando a vida das pessoas.

Mas Stoner não é um homem desgraçado ou sequer conscientemente infeliz. Stoner tem um amor que o conduz ao longo da sua vida, desde o dia em que, numa aula, imprevistamente, descobre aquilo que o vai mover até ao fim: o amor pela literatura. De forma determinada, como homem rural que sempre será, Stoner estuda, trabalha, aplica-se e, mesmo perante grandes ameaças e no meio de sérios conflitos, não verga. A pureza dos princípios, a ética na academia e o amor à literatura nunca soçobram às mãos de Stoner. Não o faz de forma épica mas sim despojada. Mas a verdade é que, envolvida emocionalmente com ele, nunca deixei de sentir orgulho na sua íntegra forma de ser.

Ora quantas pessoas podem gabar-se de se se manterem sempre tão íntegras, sejam quais forem as circunstâncias? Quantas mantêm um tão grande e puro amor àquilo em que trabalham?

O resto, o dormir num sofá da marquise, o mal poder falar com a filha, a frieza cortante da mulher, o ódio que um colega parece mover-lhe, tudo são escolhos, contratempos de maior ou menor importância. Stoner suporta-os sem se deter em angústias existenciais. É a vida, apenas isso.


E que eu fale desta forma de Stoner, uma pessoa que não existe, que não passa de um personagem literário, diz bem da qualidade da escrita de John Williams (1922-1994), o seu autor, um homem igualmente com raízes no meio agrícola, igualmente doutorado em Literatura Inglesa, igualmente professor de literatura. John Williams escreveu quatro romances e estava a escrever o quinto quando se foi.



John Williams, autor de Stoner

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Comecei este post com a ideia de escrever uma breve introdução para, a seguir, transcrever alguns excertos do livro mas, uma vez mais, o tempo não me permite: alonguei-me com a introdução e agora já é tarde para me pôr armada em copista. A ver se amanhã não sou desviada dos meus propósitos porque gostava que os meus Leitores que não têm o livro pudessem ficar com uma vaga ideia do estilo.

Capa da edição portuguesa de Stoner, uma edição D. Quixote, Leya, tradução de Tânia Ganho

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Permitam que relembre que, indo por aí abaixo, poderão encontrar os outros dois posts da safra de hoje: um sobre a opinião das vizinhas militantes Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes a propósito das respostas de José Sócrates à TVI, e outro sobre a forma como Raquel Varela vê Passos Coelho (e que qualquer pessoa de tino subscreve, penso eu).

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira.

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segunda-feira, dezembro 29, 2014

Grandes livros. Grandes Hotéis. Mais alguns dos meus livros de 2014 e locais onde eu não me importaria nada de os ter comigo. E, porque de castelos, palácios e hotéis vos vou também falar, quero estar em boa companhia: 'Uma noite com Kylián'


No post abaixo falei-vos do filme 3 Corações que fui ver este domingo, um bom filme que não encaixa nos filmes saison, apalermados e banais. 

Mais abaixo ainda, encontrarão dois post de humor, de um humor tristemente actual.

Mas tudo isto é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.


Se ontem falei de livros que li em 2014 e os fiz acompanhar por magníficas bibliotecas, hoje continuo com leituras deste ano que está prestes a findar, mas mudo de cenário. Saio do labirinto infinito das bibliotecas para me entregar a outros tipos de prazeres: vou procurar locais onde eu gostaria de estar tranquilamente, vendo a paisagem, degustando o conforto, lendo um livro.

[Deixo informação de ordem prática para os happy few que se possam dar ao desfrute da verdadeira qualidade de vida (telefone, preços, etc) e poderão reparar que há para quase todas as bolsas - excepto, claro, para quem vive honestamente em Portugal mas, enfim, deixemos isso para lá, que isso é uma pieguice e estamos mais do que avisados de que devemos deixar de ser piegas].

Adiante, pois.

Mas, para começar, se não se importam, vamos com música. 

Acompanhar-nos-á o Peter Erskine Trio (John Taylor no piano) com Amber Waves 






Castello Di Santa Santa Eurasia, Italia
Colonnata - Lavender bedroom

When Evgeny Lebedev found this 12th-century castle in Umbria, he was determined to open a hotel here. The only problem? It was utterly dilapidated. Cue a restoration by the architect Domenico Minchilli and the interior designer Martyn Lawrence Bullard. They scoured the world for the finest Umbrian Renaissance art and furniture; local artisans produced ironwork to 17th-century designs. The result is like a time warp – open fires, rustic food and views over rolling hills towards Florence make for Medici levels of splendour. This is a place to escape the world: loll on your draped four-poster or wander across olive groves to a state-of-the-art pool, gym and hammam. [via Harpar's Bazaar]

(+39 075 857 0083), from about $5,400 a night for exclusive hire
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Apesar dos amigos, vivo isolada. Não estou feliz nem em paz, antes envolta numa dormência melhor do que todas as alternativas. É então que começo a aperceber-me das tentativas dos outros para se aproximarem, mas não posso corresponder-lhes sem trair o desfasamento brutal em que vivo. Não obstante, avançam. Vejo-os como inimigos que tentam acostar de todas as formas possíveis para me expor e sugar. Quando afugento os barcos aterram os helicópteros, quando despisto os aviões emergem os submarinos, numa marcação cerrada. Por fim, na impossibilidade de me livrar de todas as ameaças, cedo e sucumbo, oferecendo aos outros o espectáculo desta minha dificuldade. As ameaças são caricatas: é um filho a pedir apoio ou uma editora a lembrar-me um prazo ou alguém a desafiar-me para um cinema. Na minha mente alucinada, tudo é dramatizado como uma perseguição. Quando, finalmente, conseguem vencer a minha resistência, encontram-me bem, e há até quem se deixe contagiar pela minha energia arrebatadora. Na verdade, tenho tanto medo que descubram esta lama em que vivo que passo ao outro extremo.


Rita Ferro in Veneza pode esperar, Diário I


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Castello Di Santa Santa Eurasia, Italia
Collonatta- exterior
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Só se sentia liberta quando ficava sozinha,
sem o destino, a desgraça, o abismo dos outros pesando nos seus ombros de menina vulnerável, pequena sibila contra quem se volta sempre a lâmina afiada do próprio dom de adivinhar o impossível.
E eram as noites em claro que passava escutando os astros e as demoradas tardes de mar ou à beira do rio que a salvavam. Sentada nas suas pedras duras e escorregadias, quentes, lisas e macias, que lhe reequilibravam o corpo frágil de menina arredia, pés descalços que mergulhava até aos tornezelos fininhos, a molhar a bainha da saia e em seguida a ponta do bibe apertado na cintura,
por um laço de borboleta,
duro de goma seca pelo ferro de passar, que as mulheres abriam levantando a parte de cima, a fim de soprar as brasas que refulgiam como rubis por entre o cinzento vulcânico das cinzas.

 Maria Teresa Horta in Meninas


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Balfour Castle, Orkney islands

As temperatures plunge in the Highlands, where better to curl up by an open fire with a dram of sloe gin than the world’s most northerly castle hotel? Nestled on the Orkney island of Shapinsay – a private launch, Reggie, transports guests from the mainland – this 19th-century Baronial pile has Gothic turrets from which to survey the grounds and islands beyond. Its five-star rooms boast giant, cloud-like beds, and bathrooms lined with De Gournay painted silk. Chef Jean-Baptiste Bady makes clever use of the kitchen garden, surrounding shores and game-filled woods in his quest to win Orkney’s first Michelin star. Those who venture out can shoot, fish, birdwatch or hike across the wild beauty of the island, but with Balfour’s enchanted world offering a spa, billiards- and cinema-rooms, and even a golf simulator to hand, there’s really no need to leave.  [via Harpar's Bazaar]
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(01856 711282), from $6,700 a night for exclusive hire 
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Tive de passar seguramente várias vezes a borracha sobre as linhas suaves so seu rosto de mulher de vinte anos antes de redescobrir o rosto ácido, anguloso, ainda infantil de Carla, a adolescente que estivera na origem da nossa crise conjugal de havia uns anos. E decerto também, foi só depois de a reconhecer que, fulminada, reconheci os brincos que ela usava, os brincos da avó de Mario, os meus brincos.

Pendendo-lhe dos lobos das orelhas, realçavam-lhe a graça do pescoço, iluminavam-lhe o sorriso tornando-o mais brilhante ainda, enquanto o meu marido, diante da montra, a abraçava pela cintura com um gesto de proprietário feliz, ao mesmo tempo que ela lhe pousava nas costas um braço nu.

O tempo pareceu dilatar-se. Atravessei a rua com grandes passadas firmes, sem sentir a mais pequena vontade de chorar, de gritar ou de exigir explicações, mas apenas um desejo negro de destruição.


Elena Ferrante in Crónicas do Mal de Amor


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Cap Rocat, Espanha

Cut into the cliffs of a private peninsula on Majorca’s Bay of Palma, a golden castle-cum-hotel welcomes guests. The sandstone walls and crenellations of this former fortress teeter above more than a mile of secluded coastline. The castle opened to the public in 2010 after a refurbishment by Claudia Schiffer’s personal architect, Antonio Obrador. The 24 spacious and stylish bedrooms carry reminders of the building’s past: there are bullets for door handles, and gun carriages reworked as coffee tables; the original gunpowder bunker is now a magical events space. You’ll also find a glittering saltwater swimming pool overlooking the bay, along with an endless supply of fresh seafood..  [via Harpar's Bazaar]

(+34 971 747 878), from about  $535 a suite a night B&B.
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"De acordo, as nossas cidades e os seus princípios estão a tornar-se famosas no mundo - comentou o irmão - mais que não seja pelas orgias, os escândalos, as obscenidades,"

"Ah, há um pormenor de que me estava a esquecer", disse Lucrécia. "Na obra a que assistimos, quase no proscénio actuavam crianças que, no culminar das pantomimas grotescas mais grosseiras, se limitavam a olhar perturbadas. Depois puxavam, fazendo-a deslizar, a longa tela que fazia de pano de boca, quase a apagar aquele mundo obsceno e cruel que os actores tinham mostrado até então. Erguia-se de imediato um canto, quase de história infantil, e as crianças começavam a dançar, a abraçar-se e a fazer gestos afectuosos e puríssimos na sua ternura. E foi ali que nos revi a nós, em pequenos, quando vivíamos todos na mesma casa e brincávamos à família."


Dario Fo in A Filha do Papa


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China Tower, Devon

The Landmark Trust’s newly refurbished China Tower was built by Lady Louisa Rolle as a surprise birthday gift for her husband, the first Baron Rolle, in 1839. This octagonal Gothic revivalist folly stands among conifers atop a knoll with sweeping coastal views. On four storeys, China Tower sleeps four guests comfortably. Perfect for acting out your favourite folk-tale fantasy.  [via Harpar's Bazaar]

(01628 825925), from £265 for four nights mid-week; from $600 for three nights over a weekend.
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Uma noite com Kylián




COMPAÑÍA NACIONAL DE DANZA
Director Artístico: José Carlos Martínez
COREOGRAFÍA: Jiri Kylián

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Permitam que relembre: para saberem sobre o filme 3 Corações que vi este domingo e que recomendo, e para se rirem com duas piadas muito oportunas, deverão percorrer os três posts seguintes.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira.

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domingo, dezembro 28, 2014

Grandes Bibliotecas do Mundo, Grandes Escritores do Mundo. Alguns dos meus livros de 2014, algumas das bibliotecas onde gostava de me perder. E dancemos. Fica no singelo.


No post abaixo, partilhei um vídeo em que, em pouco mais de um minuto, se diz tudo o que de importante há a saber sobre o verdadeiro motor da dívida dos países: o lado sinistro da Banca descrito em meia dúzia de palavras.

Mas isso é mais abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra.

Bibliotecas, terra de perdição, memórias maravilhosas, sonhos longínquos, labirintos onde ainda quererei perder-me. Apenas algumas das mais belas.

E livros que me acompanham, aqui junto a mim, presenças materiais que toco e leio de quando em vez. Apenas alguns. 

Se estiverem de acordo, vamos com música, uma música muito límpida.


John Taylor - Middle Age Music




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Biblioteca Joanina, Coimbra




Portugal’s João the Magnanimous astonished the rector of the University of Coimbra by telling him that his request for help towards library facilities was too modest; the lavish result was financed with gold reserves that had been recently discovered in Brazil. - THE TELEGRAPH



E quando a professora afirmava, com indiscutível autoridade, "O nosso país tem tudo" ou "Salazar é a Grande Luz", eu e os outros, tenros de idade, facilmente impressionáveis, sentíamos uma satisfação igual à que sentem os ricos e os protegidos.

Por sobre essa grandeza do tamanho havia a da História, Portugal nascera do conselho que Deus, em boa disposição, dera num dia de 1139 a Afonso Henriques, o primeiro rei. E desde então, cada vez que, por descuido ou boa-fé, o país se encontrava à beira do desastre, a intervenção divina nunca se tinha feito esperar, o Senhor aparecendo pessoalmente aos reis ou, como em 1917, delegando Nossa Senhora de Fátima para proteger Portugal, e através dele o Mundo, contra o dragão comunista.


J. Rentes de Carvalho in A Flor e a Foice


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Biblioteca do Palácio de Mafra



Since its opening in 1771, the Mafra Palace Library has been home to a colony of tiny bats; they roost behind the cases in winter, and in the orchard outside in the summer, swooping in during the night to eat insects which would otherwise damage the books. - THE TELEGRAPH



Quando o leitor estiver a ler esta carta as favas já terão sido plantadas numa leira mesmo aqui ao lado. Fizemo-lo precipitadamente no final da semana passada porque a meteorologia anunciava chuvadas torrenciais e, ficando tudo empapado de água, o tractor não poderia arrastar a frese que misturava as favas de semente com a terra. É claro que as favas já deviam ter sido plantadas há um mês. Toda a gente sabe que a fava se planta "entre os Santos", quer dizer, entre o dia de Todos-os-Santos, 1 de Novembro, e o dia de S. Martinho, 11 desse mesmo mês. Toda a gente sabe mas já ninguém o faz. Todos procuram adiar o plantio tanto quanto possível porque "isto agora é assim", como dizem os mais velhos, ou seja, porque agora é frequente haver ainda geada sobre os campos na época tradicional de floração das favas, Abril, e a geada mataria as plantas. Foi a ameaça de chuva a cair durante vários dias que obrigou a plantar imediatamente.


Paulo Varela Gomes in Ouro e Cinza


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Library Parabola, a sala de leitura da British Library



Library Parabola is the reading room of the British Library and is said to be the birthplace of the Communist Manifesto - THE TELEGRAPH



Na biblioteca da universidade vagueava por entre as estantes, por entre os milhares de livros, inspirando o odor bafiento a couro, tecido e papel ressequidos como se fosse um exótico incenso. Por vezes parava, tirava um volume de uma prateleira e segurava-o um instante com as suas mãos grandes, que eram tomadas por um formigueiro perante essa sensação ainda nova da lombada, da capa cartonada e das folhas de papel que se lhe ofereciam sem resistência. Depois, folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, os seus dedos hirtos virando as páginas cuidadosamente, com medo de, desajeitados, rasgarem e destruírem aquilo que tinham descoberto com tanto esforço.

Stoner não tinha amigos e, pela primeira vez na vida, tomou consciência da solidão.


John Williams in Stoner


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The Theological Hall, Strahov Abbey, Praga, República Checa




The Rococo ceiling of the Theological Hall at Strahov Abbey was added 40 years after the room was initially completed; the masonry vaulting offered a degree of protection from fire – a huge problem in medieval and Renaissance libraries as coal or wood fires were used for heating.- THE TELEGRAPH



E entregara-se a ele, totalmente.

Dera-lhe tudo, de boa vontade e com pleno consentimento, sentindo a alegria de dar tudo o que se tem a quem se ama... Dar... e nunca mais ver o que tinha visto no primeiro encontro depois de ter voltado dos campos de batalha: um Olivier frágil, trémulo, como um cavalo doente; um Olivier esfomeado e sedento, um homem todo marcado pela morte e pela violência nos campos de batalha.

Madeleine era o pão. E disse para ele: "Come-me!" Entregara-se toda, o seu corpo como pão devorado por um homem esfomeado, sentindo os lábios a arder e o corpo todo aberto. 


Jean Giono in O grande rebanho

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Admont Abbey Library





The books in the abbey's original collection were rebound in white at enormous expense  to match the rest of the decorative scheme. The bronze sculptures are actually made from wood. - THE TELEGRAPH



O segredo tem, aqui, realmente o seu domínio activo. O potentado, que dele se serve, conhece-o exactamente e sabe muito bem avaliá-lo em função da sua importância no momento. Sabe aquilo que está espiando, quando quer obter alguma coisa, e sabe quem, entre os seus auxiliares, emprega para espiar. Tem muitos segredos, pois quer muita coisa, e reúne-os num sistema em que se acautelam uns aos outros. Confia a um isto, a outro, aquilo, e zela para que eles nunca se possam juntar.

Todo aquele que sabe alguma coisa é vigiado por um outro que nunca sabe, porém, aquilo que efectivamente vigia no outro.


Elias Canetti in Massa e Poder


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Rijksmuseum Research Library, Amsterdam





Livro a livro, dia a dia, verso a verso
se teceu de mais noite o que antes fora dia.
Mas antes de morrer olha o que foi disperso
de tudo o que amaste e que a ti te fazia.

Olha os dias de inverno quando eras tão novo
que nem frio nem morte se lembravam de ti.
As montanhas à roda e um grito de novo
a nascer do olhar e do amor que não vi.

O peso da memória? Não, antes leveza
de uma cidade viva só nesta glória
que chamo quem conheça a cantar na certeza
que vivemos os anos por detrás da História.


Luís Filipe Castro Mendes in A Misericórdia dos Mercados


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E a dança, os corpos em festa: Fica no Singelo de Clara Andermatt





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Permitam que relembre: já a seguir há um vídeo curtíssimo mas muito objectivo na descrição de quem está nos bastidores a provocar dívida e a controlar quem cai na armadilha.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo.

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