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quarta-feira, junho 21, 2017

E a vida continua


Bombeiro exausto no incêndio de Pedrógão
[Foto de Nuno Botelho no Expresso]




Os jornalistas perseguem agora os sobreviventes e ficam sem reacção quando as pessoas comprovam que a vida continua. A vida sempre continua. Numa aldeia que já tinha pouca gente e onde parte agora morreu, a senhora tratava da sua vida e dizia à repórter de arribação que a ver se, para a próxima, não era pior já que desta tinha escapado. E ria, o ar saudável da floresta no sorriso franco.

Adele com os bombeiros de Chelsea a seguir ao incêndio da Grenfell Tower


Mais à frente, apenas por um momento o senhor se foi abaixo porque, de resto, continuou na sua lida, saudando a sorte que o tinha protegido.

Por muitos dias os jornalistas, tristes aves que gostam de se alimentar de carniça, procurarão por aquelas estradas mortas a lágrima persistente, o homem que chora amparado pelos vizinhos enquanto o carro funerário leva o seu familiar, a recordação sofrida, o idoso que dirá que nunca viu nada assim. Talvez tenham que percorrer muitos quilómetros já que a maioria dirá que já muitas vezes viu as serras num braseiro, chamas de um lado e do outro, nunca tanto como agora, é certo, que desta vez parecia que o demónio andava à solta, vomitando chispas -- mas que a vida continua. E sorriso na cara, enxada na mão, cesto de hortaliças na outra. E a idosa abrigar-se-á na paragem da carreira porque gosta de estar ali a ver quem passa, a paragem é quase a sala de estar da aldeia, e sorrirá com a própria ousadia.

Um dos looks do Royal Ascot deste quente mês de Junho
(um look que eu perfilharia de gosto)

A vida continua. 

Pode a Judite de Sousa afivelar um ar comedido e entredentes insistir na demissão da ministra, pode tentar não ouvir o que António Costa tem de sério a dizer, sugerindo-lhe culpas a eito ou apelando à falta de confiança na equipa que tenta dominar a besta, que a vida continua -- e das pífias intervenções dela e de outros que tais nada sobrará para além do registo do definhamento do jornalismo em Portugal.


Pedrógão, Penela, Rabaçal, Góis.

Aqueles lugares são lindos e quem por aqui me acompanha há algum tempo lembrar-se-á dos meus passeios por estes lugares maravilhosos que agora ardem, o fogo desvairado tudo consumindo à sua passagem, mas que irão renascer, verdes, viçosos, atraindo de novo as flores, os animais, as sombras graciosas.

Escola temporária para acolher crianças Rohingya (perseguidos em Myanmar)


Pode ter falhado alguma coisa. Em situações anómalas é normal que o que está pensado para situações normais apresente falhas. Seria desejável que nada disto tivesse acontecido e que a mãe natureza não tivesse sido malvada. As alterações climáticas têm tradução em factos concretos, não são mera fantasia. E não tenho dúvidas de que, por todo o lado, há coisas a melhorar. Sempre há. Melhor coordenação,  mais meios. Mesmo quando tudo corre bem, é sempre possível melhorar. Mas o que há a fazer é mais, muito mais do que sacrificar cordeiros na praça pública, sejam os cordeiros os técnicos da Protecção Civil, do IPMA, dos Bombeiros, da GNR, dos Operadores de Comunicações, das Autarquias, etc. O que há a fazer é imenso e requer muitas competências, muitos responsáveis, muita coordenação, muito planeamento, muita resiliência para meter mãos a um trabalho árduo, inglório, invisível, impopular. Não é coisa para as Judites de Sousa ou outras aves que tais irem depenicar para terem com que abrir telejornais ou alimentarem ad nauseam debates e trocas de galhardetes entre ignorantes cuja conversa é paga a metro.


Mulheres chinesas a fazerem ioga entre campos em flor (em Jiangsu)


Organizar um país e mudar as possessivas mentalidades (de quem é capaz de rachar a cabeça ao vizinho por uma disputa incompreensível numa extrema da horta), expropriar terras abandonadas, promover a troca entre proprietários, valorizá-las justamente, planear a sua utilização, etc, aldeia a aldeia, serra  a serra, estabelecer jurisdição, afectar recursos a tão invisível e moroso trabalho, delimitar áreas de actuação entre o poder local e o poder central -- tudo isto, como num outro post já o referi, é trabalho de sapa, de persistência. Trabalho para muitos anos.

Uma das praias onde gostaria de voltar: a maravilhosa praia de Saint Malo


E, enquanto isso se fizer, a vida vai continuar. Chorar-se-ão os familiares tão horrivelmente perdidos, lamentar-se-á a casa tão amorosamente reconstruída (como a do Mário, cuja carta hoje me chegou), sofrer-se-ão os pesadelos que voltarão recorrentemente durante muitas noites. Chegarão apoios para a reconstrução, para a reflorestação. E a vida continuará.

Las Cuevas de Mármol  entre o Chile e a Argentina, onde apenas se vai por barco.
As cores da água mudam ao longo do ano

A vida continua. O mundo é diverso. Incêndios, inundações, tornados, suaves brisas, neves, majestosos horizontes onde o sol nasce, onde o sol se põe, Cidades e florestas, rios e grutas, mares e gentes e bichos e árvores e flores e pedras. 

Há que amar a natureza, respeitá-la, honrar a vida, amar a beleza de tudo, há que perceber as coisas a fundo, dar tempo ao tempo, recusar a cultura do efémero, do imediato, da superficialidade, há que pugnar pela verdade, pelo rigor, pela qualidade. Há que aprender alguma coisa com as grandes lições com que a natureza tenta ensinar os insignificantes homens.

Estas casas onde vivem monjes e freiras na província de Sichuan na China faz parte da Academia Budista Larung Gar, agora lugar de conflito


E a vida continua. Ainda bem que continua. Na sua extraordinária diversidade e beleza, a vida continua.

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Vida e Morte -- Rumi



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A primeira foto é do Expresso e as duas últimas são do National Geographic.
As restantes são fotografias do dia do The Guardian


A soprano Hana Blažíková com o Ensemble Tourbillon interpretam 'Il Goder un bel sembiante” de Pietro Baldassare

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Um dia feliz a todos quantos, aí desse lado, me fazem companhia

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quarta-feira, abril 26, 2017

Desenha-me





Desenha-me. Olha para mim e vê o que se esconde debaixo da minha pele. Olha os meus olhos. Vê se há lagos dentro de mim. Se os descobrires, percorre as minhas margens, mergulha nas minhas águas. Olha o vagar com que as minhas pálpebras se movem, as pestanas. Olha-as. São, talvez, ramos que as árvores que se debruçam nas margens entregam para que as encontres, os meus braços chamando por ti. Olha para mim de outra maneira. Cobre-me de verde. Vê se há em mim montanhas imensas, mistérios silenciosos, o aconchego dos leopardos, varandins, mares, lonjuras, horizontes só teus. Espreita bem. Descobre-me.

Desenha-me. A minha boca. Olha bem para ela. Passa os teus dedos devagar nos meus lábios. Sente a pele, sente a macieza vermelha e húmida que se esconde do olhar esperando que os teus dedos ou os teus lábios ou a tua língua a procurem. Olha como os meus lábios se abrem com o riso, como se mordem com a impaciência da espera. Sente o meu sabor.

Desenha-me. Afasta o cabelo da minha testa, olha-me bem. Afasta o cabelo do meu pescoço. Observa a curva da nuca. Vê como o sol se refecte na minha pele. Aproxima-te. Vê a tua sombra em mim. Olha como deixo que te aproximes. Toca a minha pele. Passa a tua mão pelo meu braço, pelas minhas costas, pelos meus seios, pela curva do meu ventre. Baixa-te. Espreita-me. 

Desenha-me. Fala devagar palavras que venham de dentro de ti, inventa palavras para mim. Olha-me nos olhos, toca-me, cobre-me com a música do teu olhar, cobre-me com a doce toada das tuas palavras. Olha como fecho os meus olhos para melhor sentir a tua presença. Chega-te a mim. Cheira-me. Diz que cheiro a erva fresca, a laranjas, à aragem que faz dançar os pinheiros, ao fundo do mar. Cobre-me com o perfume das flores, com o canto dos pássaros, com o calor do teu corpo.

Desenha-me. Diz-me que sabes de mim o que eu não sei, inventa-me, pinta-me de azul ou de mar ou de cor de fogo e depois deixa que a luz da tarde tinja os meus cabelos, deixa que se saiba que arde em mim a chama da saudade, ah como me arde esta saudade, deixa que as palavras voem em volta de mim e da tua mão que me pinta, deixa à vista de todos o pássaro inventado que em mim canta e grita e, como um louco, ri sem parar, deixa à vista o meu coração que não sabe esconder-se ou parar de sonhar. Diz-me. Diz-me devagar o que sabes de mim, diz-me devagar que me queres.

Diz-me. Conta-me como me vês. Desenha-me. Com cores. Apenas com traços. Apenas com palavras.

Ou não.

Deixa. Não digas nada. Não faças nada. Não me desenhes.
(Eu já sei como me vês).

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É assim

Tilda Swinton diz 'Like This' de 'The Essential Rumi' 


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Hung in Time: John Berger desenha Tilda Swinton



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As imagens mostram trabalhos respectivamente de John William Waterhouse e Leonardo da Vinci

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E aceitem o meu convite e queiram continuar a descer

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