Cedo começámos a fazer festas que incluiam sessões dançantes. Formou-se um grupo que durante anos se manteve unido e, por uns motivos ou por outros, o que interessava era que houvesse pretexto para dançar. Vários rapazes vieram a dar engenheiros e, talvez por vocação, desde miúdos, havia iluminação especial e instalação sonora a acompanhar a selecção musical. Coisa a preceito. Alguns de nós morávamos em moradias que tinham garagens, outros em grandes andares nos quais parte da casa era transformada em discoteca.
Havia um, franzino, apagado, que era muito atilado, filho de figura institucional da cidade, homem distante e austero, e de uma mãe também muito senhora, pais mais velhos do que a maioria dos pais, que viviam numa moradia antiga, solarenga. Contudo, na mais pura contradição dos termos, não apenas arranjou uma namorada mais alta, mais forte e muito mais desempoeirada que ele como organizava as mais desopilantes festas. Em casa da namorada dele, minha grande e divertida amiga, filha muito mais nova de três irmãos, as festas também era à solta. Se a mãe dele ainda aparecia para nos receber e cuidava de arranjar belos lanchinhos para os amigos do filho, aos pais dela nunca conheci. Conhecia os irmãos mas os pais não estavam nem aí. Foi através dela que vieram os primeiros ensinamentos sexuais, os quais ela colhia junto de irmãos e primos.
Outra era a minha melhor amiga. Eram também três irmãos e vários primos. O pai era um bon vivant e a mãe, triste pelo comportamento do marido e cansada pela agitação da miudeza, também se refugiava na sua marquise ensolarada ou numa estufa que havia no jardim e deixava-nos na maior largueza.
Portanto, quase todos os fins de semana havia festa. A partir do que hoje é o décimo ano passámos também a ter os convívios no liceu, supostamente para angariarmos dinheiro para a excursão de finalistas.
Havia um, franzino, apagado, que era muito atilado, filho de figura institucional da cidade, homem distante e austero, e de uma mãe também muito senhora, pais mais velhos do que a maioria dos pais, que viviam numa moradia antiga, solarenga. Contudo, na mais pura contradição dos termos, não apenas arranjou uma namorada mais alta, mais forte e muito mais desempoeirada que ele como organizava as mais desopilantes festas. Em casa da namorada dele, minha grande e divertida amiga, filha muito mais nova de três irmãos, as festas também era à solta. Se a mãe dele ainda aparecia para nos receber e cuidava de arranjar belos lanchinhos para os amigos do filho, aos pais dela nunca conheci. Conhecia os irmãos mas os pais não estavam nem aí. Foi através dela que vieram os primeiros ensinamentos sexuais, os quais ela colhia junto de irmãos e primos.
Outra era a minha melhor amiga. Eram também três irmãos e vários primos. O pai era um bon vivant e a mãe, triste pelo comportamento do marido e cansada pela agitação da miudeza, também se refugiava na sua marquise ensolarada ou numa estufa que havia no jardim e deixava-nos na maior largueza.
Portanto, quase todos os fins de semana havia festa. A partir do que hoje é o décimo ano passámos também a ter os convívios no liceu, supostamente para angariarmos dinheiro para a excursão de finalistas.
Entre nós, havia vários casais. Eu estava apaixonada por um enfant terrible e ele por mim mas, já o disse várias vezes, éramos tão temperamentais que grande parte do tempo estávamos arreliados, eu a fazer-lhe ciúmes como vingança por achar que ele não me cortejava o suficiente, ele zangado comigo por eu supostamente andar a dar atenção ou a achar graça a outros. Mas, seja como for, éramos empolgados namorados, e de tal forma que nos chamavam o Romeu e a Julieta. A seguir chegou outro que cantava e fazia poemas para mim, deixando o legítimo desvairado. E, entre um e outro, eu não tinha mãos a medir -- emocionalmente falando, claro. Mas isto para dizer que, durante as festas, eu tinha sempre par para dançar. Claro que dançávamos em grupo e sozinhos mas o grande apelo era dançarmos a par, slowzinhos bons, abraçadinhos, a sentirmos como o nosso corpo tinha vontade própria. E mal a música começava, logo um ou outro me vinha buscar para dançar.
Eram outros tempos. Hoje já nada disto faz sentido. Mas, na altura, apesar da nossa liberdade e de estarmos ali por nossa conta, havia o costume de serem os rapazes a irem 'buscar' as raparigas. E havia geralmente duas ou três raparigas que ficavam para o fim. A mim custava-me muito isso. Muitas vezes, estávamos todos a dançar e elas ali sentadas ou encostadas e uns dois ou três rapazes, feitos mongas, de roda da música ou das luzes ou a arranjarem desculpa para não as irem buscar. Doía-me ver como elas ficavam a disfarçar, tentando fingir que não se importavam. Muitas vezes eu pegava naqueles panhonhas e ia eu levá-los até elas. Tirava-me a alegria olhar para elas e pensar que deveriam sentir-se peças sobrantes. Naqueles dias de zanga entre mim e o meu grande e tumultuoso amor, acontecia ele estar amuado e não me vir buscar; e os outros, sem saberem se o campo estava livre, hesitavam e eu, por breves momentos, sentia o que seria a sensação de ficar a sobrar. Nunca sobrava pois, na perspectiva de algum outro se antecipar, ele chegava-se à frente e, se esperava demais, era eu que tomava a dianteira e desafiava algum outro.
Eram outros tempos. Hoje já nada disto faz sentido. Mas, na altura, apesar da nossa liberdade e de estarmos ali por nossa conta, havia o costume de serem os rapazes a irem 'buscar' as raparigas. E havia geralmente duas ou três raparigas que ficavam para o fim. A mim custava-me muito isso. Muitas vezes, estávamos todos a dançar e elas ali sentadas ou encostadas e uns dois ou três rapazes, feitos mongas, de roda da música ou das luzes ou a arranjarem desculpa para não as irem buscar. Doía-me ver como elas ficavam a disfarçar, tentando fingir que não se importavam. Muitas vezes eu pegava naqueles panhonhas e ia eu levá-los até elas. Tirava-me a alegria olhar para elas e pensar que deveriam sentir-se peças sobrantes. Naqueles dias de zanga entre mim e o meu grande e tumultuoso amor, acontecia ele estar amuado e não me vir buscar; e os outros, sem saberem se o campo estava livre, hesitavam e eu, por breves momentos, sentia o que seria a sensação de ficar a sobrar. Nunca sobrava pois, na perspectiva de algum outro se antecipar, ele chegava-se à frente e, se esperava demais, era eu que tomava a dianteira e desafiava algum outro.
No entanto, apesar de ter sido grande namoradeira e de ter sempre um belo grupo de amigos, nunca prescindi do meu tempo. Mesmo nesses tempos de grande euforia adolescente, à noite, depois de estar com os meus pais na sala a vermos televisão, eu ia para o meu quarto e lia até tarde. Precisava de estar sozinha. Sempre precisei de silêncio, sossego, tempo meu, alguma solidão. Mas era solidão voluntária e isso faz toda a diferença.
Uma outra recordação: não gosto de tomar refeições fora sozinha. Lembro-me de quando andava na faculdade. O primeiro ano foi uma seca. Gente marrona, pouco dada a festas, a distrações. Uma tremenda desilusão, aqueles primeiros meses na faculdade. Andando o meu namorado noutra faculdade, quando não conseguia almoçar comigo -- e não tendo eu ainda arranjado amigos novos -- quando ia almoçar na cantina, acontecia-me estar sozinha. Detestava. Felizmente havia sempre alguém que se juntava e eu acabava sempre por ter companhia. Aliás, foi assim que arranjei um grande amigo, alguém que vinha de um outro mundo, que me trazia vivências para mim totalmente desconhecidas. Passava horas à conversa com ele. Horas. Ouvia-o fascinada. Vivia numa residência, tinha muito pouco dinheiro, pouca roupa e nitidamente roupa pobre, os pais tinham uma pequena mercearia no interior do país, tinha uma irmãzinha pequena de quem gostava imenso e a quem comprava presentinhos para levar quando ia a casa de visita. Emocionava-se quando falava da menina. Tinha uma fotografia dela na carteira, uma menina loura como ele e, como ele, com aquele ar saudável da província. E depois havia aqueles estudantes africanos, negros retintos, com corpos extraordinários, e que tinham uma simpatia desconcertante por mim. E eu achava-lhes graça, achava graça ao que eles gostavam do meu cabelo, achava graça à sua inocência ao virem oferecer-me iogurtes como se fossem presentes valiosos. Por isso, por um ou outro motivo, eu acabava sempre rodeada de gente divertida ou curiosa, a ouvir histórias que me pareciam exóticas.
Mas via pessoas solitárias, sozinhas, a olharem para o vazio. Se por vezes tentava aproximar-me, notava que eram pessoas que tinham alguma dificuldade em interagir. Não me parecia que gostassem simplesmente de estar sozinhas mas, pelo menos parecia-me, não sabiam bem como interagir, faltava-lhes naturalidade. Ficava com a sensação que sentiam alguma timidez, algum embaraço por não terem companhia, mas conviver não era natural para elas.
E assim, por um ou outro motivo, sempre havia pessoas desirmanadas, sozinhas, ar vagamente perdido.
E assim, por um ou outro motivo, sempre havia pessoas desirmanadas, sozinhas, ar vagamente perdido.
Hoje tudo isto seria impossível: ou porque já não é assim que funciona ou porque todos os instantes são preenchidos com o telemóvel ou com o tablet ou computador. Em qualquer circunstância em que alguém está sozinho, salvo raras excepções, está a ver ou a interagir com um destes dispositivos. Será o horror ao vazio, à solidão, será a necessidade absoluta e permanente de parecer acompanhado, a interagir com 'amigos'. Estar simplesmente a olhar para ontem é coisa que já não existe.
Mesmo em reuniões, tenho colegas que estão com o computador ligado e sempre a verem qualquer coisa, a escreverem. Dir-se-ia que têm assuntos urgentes a tratar, dir-se-ia que gostam de passar a imagem de alguém a quem os outros ou as circunstâncias não dão tréguas. Mas, sempre que vejo o que fazem, constato que estão simplesmente a manter-se ocupados com tretas que poderiam esperar: ou mails banais ou notícias.
Mesmo em sociedade ou em família o que não faltam são pessoas que, a meio do convívio, estão a ver o que outros postam no facebook ou no instagram, colocando comentários ou smiles. Parece que há a obsessão pela conexão, pelo preenchimento total de cada instante. Na paragem de autocarro, na mesa do restaurante, na sala de espera, na fila de supermercado, mesmo enquanto andam, são raras as pessoas que não estão a ver o telemóvel. No outro dia, alguém estava com ar muito compenetrado, muito atarefado. Quando vi que estava a fazer um jogo de cartas, fiquei estupefacta. Dá ideia que ninguém quer ser apanhado em flagrante delito de solidão.
Mesmo em sociedade ou em família o que não faltam são pessoas que, a meio do convívio, estão a ver o que outros postam no facebook ou no instagram, colocando comentários ou smiles. Parece que há a obsessão pela conexão, pelo preenchimento total de cada instante. Na paragem de autocarro, na mesa do restaurante, na sala de espera, na fila de supermercado, mesmo enquanto andam, são raras as pessoas que não estão a ver o telemóvel. No outro dia, alguém estava com ar muito compenetrado, muito atarefado. Quando vi que estava a fazer um jogo de cartas, fiquei estupefacta. Dá ideia que ninguém quer ser apanhado em flagrante delito de solidão.
E se hoje estou a recordar cenas minhas ou a referir estes temas é porque li um artigo que achei interessante e cuja leitura recomendo a quem consiga entender-se com a língua francesa.
(...) ce serait «pour ne pas entendre. Ne pas entendre le vertige qui nous saisit lorsque l’on pense ! Ne pas être seul, c’est ne pas avoir à négocier avec nos peurs, notre culpabilité et notre responsabilité. La solitude impose une posture de lucidité, la lumière crue. Ne dit-on pas "Ne reste pas seul" dans une période délicate ? Être seul est une épreuve métaphysique. Or, nous vivons une période si angoissante que beaucoup ne peuvent plus supporter cette épreuve. Et puis, la solitude n’est pas très instagrammable ! Sauf si on ajoute un plaid, un livre, un chat et un thé chaud !» (...)
São os tempos que vivemos. Vivermos sem internet disponível em todo o lado já nos pareceria coisa insuportável, própria de desertos e inóspitas lonjuras, ou, então, hábito dos ctónicos, esses seres misteriosos dos quais descendo e que só hoje fiquei a saber que têm este intrigante nome.
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Cá para mim as fotografias que aqui hoje coloquei não têm muito que ver com isto mas também não sei porque haveriam de ter. São da autoria de Terry O'Neill e grande parte delas obtive-as no The Guardian. E vêm ao som do violoncelo de Yo-Yo Ma e da voz de Alison Krauss que tentam aqui introduzir o tema do Natal que, parecendo que não, já por aí anda nas iluminações, nas montras e por todos esses novos lugares de culto.
Era para ter optado pela Janis Joplin que, para sempre, associarei a essas dias iniciáticos da minha adolescência mas depois reconsiderei: afinal o tema deste post não é sobre essas eternas tardes dançantes mas, sim, sobre um dos grandes males dos tempos presentes, o pavor da solidão -- e, vá lá saber porquê, apeteceu-me condimentar as minhas palavras com um cheirinho a natal.
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E a si, a si em especial, desejo uma feliz terça-feira.