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quinta-feira, janeiro 09, 2020

Cenas com uma certa falta de vida lá dentro





Não há muito fui a um velório. Fui com umas amigas. Não gosto de ir sozinha a estas coisas. Como sou míope, de longe ou é gente que conheço bem e tiro de letra só pelos contornos ou tenho que me aproximar. Ora aproximar-me de quem não conheça ou dar de caras com o morto, isso não. Por isso, cravo sempre companhia ou colo-me a alguém mesmo que seja a hora que não me convém.

Mas, então, íamos as quatro, à noite, e, como sempre que se juntam quatro mulheres, conversávamos animadamente quase esquecidas do que ali nos levava. Fomos seguindo as tabuletas e uma delas, a mais expedita nestas coisas, tomou a dianteira. Além do mais tinha ali estado poucos meses antes num velório de pessoa também minha conhecida. Chegou à entrada, resolutamente abriu a porta e avançou. Destravadas, nós, as três restantes, avançámos atrás dela. Nisto ela estaca, faz marcha atrás e nós as três quase provocámos ali uma queda em monte à porta da capela mortuária.

Diz ela: 'Acho que não é aqui'. Fechou a porta. Ficámos as quatro a olhar umas para as outras. E ela: 'Não estou a perceber. Tenho a certeza que foi aqui que vim no outro dia. Não vi uma única pessoa conhecida. Não deve ser aqui'. 

Nenhuma das outras abriu a porta para conferir. Pelo contrário, arrepiámos caminho e fomos reler as tabuletas. Afinal havia outra capela, do outro lado. Lá fomos, conversando e contando coisas do outro tal velado. Quando nos aproximámos da outra capela vimos logo alguns conhecidos. Pronto, tínhamos acertado.

E eu, embora hoje isto não venha a propósito de nada, lembrei-me de quando morreu a mãe de um conhecido de ambos de longa data, de mim e desse tal outro que, coitado, também se foi recentemente. Família nortenha, escusei-me. Mas ele foi.

No dia seguinte, veio ter comigo. Vinha aparvalhado. Perguntou-me: 'Há quanto tempo o conhecemos?'. Referia-se ao nosso conhecido a quem tinha morrido a mãe. Eu puxei pela cabeça. 'Não sei bem. Para aí há uns vinte anos'. Ele concordou. 'Também acho. Vinte anos. Pois imagine: cheguei lá e pensei que me tinha enganado. Nem queira saber.' E eu, espantada com o estado de aparvalhamento dele: 'Então?'. E ele: 'Tudo monhés'. Não alcancei. 'Como...?'. E ele: 'Tou-lhe a dizer: o gajo é monhé'. Foi a minha vez de ficar de boca aberta. 'Mas como? Monhé como?'. E ele: 'Monhé como...? Ora. Monhé. O gajo é monhé. Chego lá e estava a capela cheia de monhés. Os irmãos, o pai, a família toda. Nunca espreito os mortos mas até fui espreitar a senhora. Escura, monhé'. Note-se que o meu amigo não era racista nem aquela forma de falar tinha qualquer significado depreciativo. Estava simplesmente aparvalhado, nem media bem o que dizia. E eu também fiquei: 'Mas como? Ele saíu a quem? Degenerou? É que não tem ares nenhuns...' E ele, 'Estive a noite toda a olhá-lo de soslaio. Repare que, depois de saber, a gente até consegue encontrar-lhe ares'. Depois disso já estive inúmeras vezes com ele e ainda não dei por isso. O outro disse-me: 'Se o vir de cima, vai ver que a cabeça dele é um bocado amarelada.' De facto, é um bocado acarecado mas nunca me lembrei de lhe espreitar para o totiço quando ele está sentado e eu de pé. Volta e meia, o que já morreu perguntava-me: 'Então? Já lhe encontrou os ares?' E como eu dizia que não, ele dizia: 'E a maneira de ser...? Não engana'. Mas também, por aí, não cheguei a lado nenhum. Até hoje não consegui perceber como é que de uma família de indianos sai um com outras cor de pele e outras feições. Na volta foi a defunta que pulou a cerca, coisa que manifestamente não interessa para nada.


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Juro que não sei porque é que me deu para recordar isto mas podem acreditar que é tudo verdadinha.

As fotografias são da dupla Suzie & Leo

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Estou com uma em mente pelo que me desculpem mas vou tentar dar-lhe corpo e, malcriadissimamente, não vou responder a comentários. Desculpam-me?