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domingo, setembro 02, 2018

Teias de aranha que não acabam, figos muito doces, roupa lavada, guisadinho apurado, conchinhas ao vento.
[Ou seja: estou de volta ao campo]




De tal ordem foi que já aqui tenho uma bolha na mão, entre o polegar e o indicador. E a lida ainda vai a meio. Máquinas de roupa já foram três. Até a mantinha que está na cadeira de balouço, os panos que tenho sobre os sofás aqui da sala e as forras das almofadas foram.

Comecei por varrer lá fora, na estradinha empedrada que vem do portão até a casa, muita folha seca, mas estava calor de mais. Impossível. Um calor marroquino, seco e opressivo.

Vim, então, para dentro, a ver se dava conta das teias de aranha. Não há explicação. Tantas. Com uma vassoura ao alto, andei que tempos naquilo. Nos cantos, em volta dos candeeiros, entre os candeeiros e os cantos, nas clarabóias, por todo o lado. Acresce uma situação que só desajuda. Mantivemos o acabamento que a casa tinha quando a comprámos: rugoso, rústico. Já deveríamos ter acabado com isto há séculos mas de tal forma já nos habituámos que parece que desvirtuaríamos a sua genética se puséssemos as paredes lisas. Mas o que se passa é que tirar as teias de aranha nestas superficies é um castigo. Tem que ser muito ao de leve para ficarem agarradas à vassoura e não entranhadas por entre as rugosidades. E o engraçado é que (felizmente) mal se vêem as aranhas, só o lindo serviços que fazem na nossa ausência.


Só me apetecia dizer aquilo que aquela minha parente, pessoa cheia de finesse, que, um dia, quando chegámos à sua bela quinta nas faldas da serra 
-- uma quinta onde existe a casa grande, cheia de traça e graça, e depois mais quatro casas mais pequenas, em banda, uma para cada um dos filhos e respectivas famílias, e mais a grande casa de vidro de apoio à grande piscina e ao relvado gigante, casa essa que é composta por uma imensa sala quase toda envidraçada (e que tem, num canto, uma lareira e noutro um balcão onde os muitos homens da casa se juntam a beber refrescos) mais um pequena cozinha e uma casa de banho -- 
e estando nós a passar sob a extensa pérgola que faz sombra a uma mesa de madeira quilométrica com bancos igualmente quilométricos e vendo tudo pintalgado, me diz: 'Cabrões dos pássaros, cagam tudo'. A sério.  Loura e chique como só ela e sai-se-me com uma daquelas.
E se fosse só com essa... No meio da maior sofisticação, com a maior das naturalidades, intercalava um vernáculo que, no conjunto, me soava sempre a coisa hilariante.
Pois bem. Mentalmente, enquanto hoje andava de vassoura e despregar gigantes teias de aranha do tecto, ia dizendo: 'Cabronas das aranhas...enchem tudo de teias'. É que até nas casas de banho, senhores.


Depois varri parte da casa -- mas ainda nem metade foi --, sacudi tapetes, limpei o pó e apliquei aquele spray que repele o pó e trata a madeira. Quando o meu marido, regressado da sua labuta, entrou em casa, ficou arreliado, que não eram horas de andar a pôr porcarias nos móveis. Então abriu as portas de vidro, mantendo as portadas de madeira, de fora, fechadas (para não entrar o calor nem melgas) e ligou a ventoinha de pé alto, que roda, a meio caminho entre a sala de estar e a sala de jantar para espantar o cheiro. E eu que acho que aquele cheirinho até é bom.  


Ao fim do dia, já com a bolha na mão de tanto varrer e lavar, cansada e já o ar mais fresco, resolvi ir fazer uma caminhada. Comi uma barrigada de figos. Doces, doces, desfazendo-se em doçura na boca. Mas pouco andei, se uns dois quilómetros foi muito. Cansada. O calor retira-me energia. 

Para o jantar fiz uma coisa de que gosto muito. Mas, em mais uma manifestação prática do que é um casamento, adaptei-a para ser também ao gosto do meu marido. À vinda, passámos pelo supermercado. Trouxe peixes mas, no balcão das carnes, numa humilde caixinha entalada num canto, vi aquilo a que se chama cachola ou fressura ou lá o que é: os miúdos de porco (acho que fígado, pulmão, baço). Tudo partido aos bocadinhos. O meu marido abomina. Então trouxe também rojões.


Cozinhei assim:
num talcho espaçoso, pus azeite, duas cebolonas, louro, salsa, coentros, uns quatro ou cinco tomates e toda aquela carne e miudezas. Envolvi, pus um pouco de sal e mais um bocado de alecrim. Cozinhou durante um bocadão, acho que para cima de uma hora, em lume brando. Quando vi que estava tudo bem macio, juntei água e uma boa mão cheia de feijão-verde cortado aos bocados e mais uns dois tomates e mais uma cebola às rodelas grossas. Passado um bocado, juntei o arroz basmati. Quando estava quase sem água, desliguei. Ficou a apurar.  
Pois vos digo que sabia tão bem quanto cheirava. Ele comeu os rojões, eu as miudezas. Acompanhámos com salada de alface e tomate (temperados com azeite e com os nossos orégãos) e com vinho branco alentejano, bem fresquinho.

Falta-me dizer que agora, quando estamos lá fora, temos uma nova música no ar. Ao som dos pássaros junta-se agora o som leve e fresco das conchas batendo no vidro da garrafa que trouxémos de Lagos.

PS: Quanto a leituras, hoje o dia não rendeu muito. Estive a ler uma entrevista à Lydia Davis no 3º livro das Entrevistas da Paris Review, por sinal bem interessante -- parte da qual sobre tradução, sobre as opções que se lhe colocam quando traduz os diferentes autores -- mas com o meu proverbial défice de sono, adormeci e, portanto, não passei disso. Mas o que não me falta é tempo. Se bem que amanhã tenho mais limpezas para fazer e eu, quando me atiro à faxina, não descanso enquanto não deixo tudo num brinquinho, recendendo a limpeza e a frescura. Ah, é verdade, a ver se amanhã não me esqueço de vos mostrar os frasquinhos com os orégãos que sequei-

quinta-feira, junho 29, 2017

Conselhos aos novos -- ou nem por isso
(E isto nem tem especialmente a ver com a saída infeliz do Salvador Sobral lá no concerto)



Não gosto de dar conselhos. Opiniões, sim. Sou opinativa. Mas uma opinião é coisa que vale o que vale. Noutras circunstâncias, poderei achar outra coisa e lá vai a opinião ao ar.. Por isso, opino -- mas pouco aconselho. Sei lá o que é que os outros devem fazer? 

Se entra alguém para trabalhar comigo, não tenho paciência para conselhos, prelecções ou grandes enquadramentos. No outro dia tive uma conversa com alguém a quem perguntei se queria ficar a trabalhar comigo, alguém que estava a acabar um estágio. Se tanto, a conversa durou uns cinco minutos. Ele disse que sim, eu disse o que é que esperava dele e a coisa ficou arrumada. E o que eu disse que esperava dele é que fizesse sempre o que, na opinião dele, fosse o melhor possível, que tentasse aprender por ele mas, que, quando não soubesse, não tivesse acanhamento em dizer que não sabia ou que precisava de ajuda, e que tentasse ser, aos olhos dos outros, uma mais valia, alguém que trazia valor, que sabia maneiras diferentes de fazer as coisas. E pronto. 

E, ao fim de um dia, já eu estava a pedir-lhe que fizesse coisas que ele nunca tinha feito e que não sabia se sabia fazer. E hoje já o vi, sorridente, a cirandar e a fazer coisas. 

Não quero cá saber de horários*, de pontualidades*, de querer disponibilidades para além das razoáveis, não me ocorre falar de desafios, de tretas e de mais não sei o quê. Quanto muito, se me lembro, digo que devem ter uma vida equilibrada, que não devem abdicar de ter vida própria, que é bom que tenham gosto por fazer outras coisas. 

(*Porque a função tal não requer. Se fosse trabalhar numa loja ou num lugar de atendimento ao público ou num turno de uma fábrica, aí já a conversa seria outra. Obviamente.)


No outro dia, reuni-me com uma pessoa que trabalha comigo e que tem alguns problemas de relacionamento com um seu subordinado. Apesar de eu estar ali a tentar mediar o conflito, ali amesmo a conversa entre ambos azedou. Já estava, até, a achar graça a tanto ódio. O que lhes pedi foi que aprendessem a conviver com a maneira de ser um do outro e que se lembrassem sempre que devem andar bem dispostos, que não vale a pena aborrecerem-se por ninharias. E digo-lhes sempre que gosto de ver as pessoas que trabalham comigo a rir, gosto que me surpreendam com boas ideias, gosto que formem equipa. Pelo contrário, não suporto dramas.

Uma outra miúda que trabalha agora comigo veio de outra empresa e estava em risco de ficar desempregada. Tive a intuição, nem sei porquê -- já que a tinha visto apenas uma única vez e de raspão -- que era a pessoa que eu estava a precisar para uma determinada função. Foi contactada. Aceitou vir fazer uma coisa que nunca tinha feito na vida, um salto quântico nas suas funções. O lado negativo é que \trabalha um bocado longe de casa. Mas é só ela estar mais estabilizada na função, e vou passar a facilitar que fique a trabalhar em casa sempre que lhe der jeito. Mas anda motivadíssima. Diz: eu digo a toda a gente que a minha vida deu cá uma volta... E deu. E mais dará ainda, que já ando a ver se daqui por uns meses a mando para uma formação que a vai dar deixar com uma outra visão das coisas. E atiro-a para a frente, levo-a a reuniões onde nunca na vida ela pensou participar. Mas não lhe dei um único conselho. Puxo é por ela, empurro-a para a frente, deixo que vença o medo. Volta e meia diz-me que tem medo de não conseguir. Respondo: vai conseguir porque não tem outro remédio. Ela ri-se.

Uma outra a quem ando também a dar idêntico tratamento de choque, dizia a mesma coisa: estou com medo de não conseguir. E eu disse-lhe: tem que conseguir pois dependo de si. Tem que me ajudar e as duas vamos conseguir. Ela riu-se e disse: espero que sim, vou fazer por isso. Claro que vai. 

Mal de mim se não tiver a trabalhar comigo gente audaciosa, corajosa, solidária. Mas que não sejam apertadinhos, tipo marrãozinho, cheios de nove horas. Gosto de gente que ri enquanto fala, gosto de gente que confessa, enquanto ri de forma inocente, que tem medo. Também eu tenho medo. Medo que me falhem quando eu precisar. 


E também não gosto de receber conselhos. 

Tenho um colega que é o meu oposto. Eu nunca tomo apontamentos, não tenho dossiers (físicos) ou pastas (informáticas, digamos assim) -- a minha caixa de correio ou 'os meus documentos' é tudo na base do tudo ao molhe e fé em deus. Quando quero encontrar alguma coisa, faço uma pesquisa por palavras ou emissor ou destinatário. Também nunca arquivo nada. Portanto, qualquer destas cenas (caixa de correio, documentos, etc) tem milhares de coisas sempre à vista. Esse meu colega, pelo contrário, não apenas tem mil pastas, mil sub-divisões, mil caderninhos, como se orgulha do seu poder de arrumação e passa a vida a aconselhar toda a gente a seguir o seu método. Se eu lhe digo que vivo bem no meio do caos, ele olha-me com desconcerto.

Identicamente, raramente presto atenção a conselhos de livros, músicas ou filmes. Pode é acontecer que considere algumas pessoas, raras, como de inquestionável bom gosto e que, aconselhem o que aconselharem, eu siga cegamente. Ou podem algumas pessoas que mal conheço recomendarem alguns livros e, pela forma como se exprimem, me deixarem verdadeiramente curiosa. Já aconteceu isso em relação a livros que leitores (e agora estou a pensar, em concreto, numa leitora) me recomendaram e que, de facto, me agradaram bastante. Mas, tirando esses casos excepcionais, o que me recomendam entra por um ouvido e sai por outro.


Também não gosto especialmente de aconselhar livros ou músicas ou filmes. Não me parece inteligente fazê-lo. Apenas de vez em quanto o faço, e é quando me parecem de qualidade inequívoca e que podem agradar transversalmente. E, no entanto, sei por experiência própria que aquilo que, para mim, está acima de qualquer subjectividade se espeta na parede à primeira tentativa. Por exemplo, gosto mesmo muito do filme O amante de Lady Chatterley e, no entanto, o meu marido acha o filme longo demais e não vê nele nada de trascendente. Portanto, não vale a pena.

Muito menos gosto de me armar em moralista, em beata sempre pronta para a censura, em zeladora de bons costumes, tesoura em punho para cortar qualquer palavra mal dita. Uma coisa é ficar furiosa com a mediocridade de alguns políticos, pagos para serem os nossos representantes e zelarem pelo bem do seu país, e a quem vejo a fazerem burrices, a fazerem com que o país ande para trás ou se enterre. Aí a minha indignação fala mais alto pois acho que o dever de todos é olhar pelo bem de todos, em especial pelos que têm menos voz.

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E vem isto a propósito dos vídeos que vos mostro abaixo. Lydia Davis, escritora, Wim Wenders, cineasta, Norman Foster, arquitecto, Marina Abramovic, performer -- aconselham jovens. Gosto de ouvi-los mas não me imagino a ser capaz de fazer o mesmo. Talvez, quanto muito, dissesse: façam o que vos der na bolha, ousem, inovem, sejam corajosos -- e sejam felizes. Mas, lá está, isso sou eu. 












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As fotografias são da autoria de Lillian Bassman (a 1ª), Sheila Metzner (as duas seguintes) e Stéfanie Renoma (a última).

Lá em cima Agnes Obel interpreta Just so.

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P.S. a propósito de conselhos aos mais novos

Meio mundo anda para aí a dar conselhos ao Salvador Sobral. Eu, pelas razões já acima tão bastamente explanadas, sobre aquela tal palermice dita por ele no concerto de angariação de fundos para as vítimas do incêndio de Pedrógão, pouco tenho a dizer. 


diz que vai mandar um peido

Acho que, em iguais circunstâncias, eu jamais diria tal coisa. Mas eu não sou ele. Também admito que um puto de 27 anos, a passar por exeperiências tão reviravolteantes como aquelas pelas quais o Salvador tem passado nos últimos meses, possa andar um bocado desacertado das ideias, confundindo, no meio do barulho das luzes, um grande espectáculo com uma noite de copos entre amigos. Mas, tirando isso, nada mais a dizer. Não me parece caso para fazer um caso pois saídas infelizes toda a gente as tem e o melhor é seguir em frente e pôr uma pedra sobre o assunto. 


Portanto, conselhos para o Salvador: zero. Ou apenas umas banalidades: não se deixe engolir pelas solicitações, pela agenda, pelo mediatismo -- antes que fique passado da cabeça.

Conselhos para quem aconselha o Salvador: não percam tempo a ligar às palermices que volta e meia lhe saem, valorizem antes o que ele diz de acertado e, sobretudo, ao que ele canta e à forma como canta. O rapaz tem muita pinta. 

E ponto. 

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Um dia muito feliz a todos os que estão aqui comigo.

Espero que se sintam bem na minha companhia. Eu gosto de vos sentir aí. E gosto de pensar que, volta e meia, sorriem com o que eu digo.

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sábado, maio 25, 2013

Lydia Davis, Man Booker International Prize 2013: o reconhecimento da diferença, do desconcertante, da não linearidade da escrita



Lydia Davis quando era mais jovem e tinha uns olhos claros muito invasivos


Lydia Davis nasceu nos Estados Unidos em 1947. Está quase a fazer 66 anos e vive em Nova Iorque. É tradutora, ensaista e, sobretudo, novelista. Isto de dizer que é sobretudo novelista deve-se a ter sido por esta sua faceta, pelos seus peculiares pequenos contos, que ganhou o Man Booker International Prize 2013.

Devo dizer que acho o que ela escreve muito desconcertante. Por vezes são pequenas histórias mas, a maioria, são apontamentos, aforismos, ou coisas meio poéticas, ou piadas, ou, simplesmente, doideiras. É a anti-erudita por excelência. Ou melhor, até pode ser que seja erudita mas disfarça muito bem. Não sei definir melhor. Acho que nem faz sentido tentar definir. Só estou aqui a puxar pela cabeça para escrever isto para tentar que, quem nunca tenha lido nada dela, possa ficar com uma ideia.

O livro que tenho aqui comigo e que tem mais de 600 páginas é daqueles livros que abro, leio umas páginas, salteio, aterro onde aterrar, leio um pouco mais. Fecho. Tempo depois repito. Tenho sempre curiosidade em perceber o que vai sair dali. Talvez seja esse o seu maior mérito: a imprevisibilidade. Escuso de dizer que gosto pois a mim atrai-me sempre o que é assim, diferente, inesperado - e bem escrito.

Na juventude, Lydia foi casada durante quatro anos com Paul Auster, de quem tem um filho. Não foi coisa que tivesse corrido bem. Passaram a dar-se melhor depois de terem acabado a relação. Ambos partiram para outra, vieram novos filhos, a vida seguiu e seguiu bem.

Paul Auster fala do conturbado breve período em que foram casados no seu livro de memórias, Diário de Inverno. Transcrevo um pouco. Não se espantem com a forma como Auster se exprime - como o Jorge Jesus ou o Ronaldo também se exprimem (hi.... a heresia que estou a escrever...), quando falando deles próprios, dizem 'tu foste' em vez de dizerem 'eu fui'. Enfim. Conhecessem eles este livro e já poderiam dizer, todos armados em eruditos, que, ao falarem, adoptam 'o estilo Paul Auster' - a ver se mais alguém gozava com eles...:).



Paul Auster quando era mais novo
(e quase gémeo separado à nascença do Cunhal em novo, especialmente nos olhos)


No dia 6 de Outubro de 1974, cerca de dois meses do teu regresso, casaste-te com a tua namorada. Uma pequena cerimónia realizada no teu apartamento, seguida de uma festa oferecida por um amigo que vivia perto de ti, um apartamento muito maior do que o teu. Considerando as frequentes mudanças de opinião que desde o início vos afligiram, as constantes vindas e idas, os casos com outras pessoas, os rompimentos e reatamentos que se sucediam com a regularidade das mudanças de estação, a ideia de que qualquer de vocês tenha admitido casar-se parece-te agora fruto de um capricho delirante. No mínimo estavam a correr um risco enorme, pondo em jogo a vossa amizade e as vossas ambições literárias, para transformar o casamento em algo diferente do que já tinham experimentado juntos, mas perderam a aposta, ambos a perderam porque estavam condenados a perdê-la, e por isso só conseguiram que durasse quatro anos, casando em outubro de 1974 e separando-se em novembro de 1978. Ambos tinham vinte e sete anos quando deram o nó, idade suficiente para saberem o que vos esperava, mas ao mesmo tempo nenhum de vocês era nada que se parecesse com um adulto, no fundo continuavam a ser dois adolescentes, e a verdade nua e crua era que não tinham a mínima hipóteses.



Pintura de Edward Hopper -
que retrata bem o ambiente descrito acima, no texto de Auster, e em alguns  textos de Lydia Davis


A palavra escrita, então, a Lydia Davis:

O Outro

Ela muda qualquer em casa para aborrecer o outro, e o outro aborrece-se e torna a mudá-la, e ela muda outra coisa da casa para aborrecer o outro, e o outro aborrece-se e torna a mudá-la, e então ela conta a outras pessoas o que se passa, e as outras pessoas acham graça, mas o outro também ouve e não acha graça nenhuma, mas nada pode fazer para o mudar.



Mulher olhando a rua pela janela - ainda a pintura de Edward Hopper


Um estranho impulso


Olhei da minha janela lá para baixo, para a rua. O sol brilhava e os lojistas tinham saído para apanhar sol e ficarem a ver as pessoas a passar. Mas porque é que os lojistas tapavam os ouvidos? E porque é que as pessoas lá na rua corriam como se fossem perseguidas por um terrível espectro? Logo tudo voltou ao normal: o incidente não fora mais do que um momento de loucura durante o qual as pessoas não conseguiam suportar a frustração das suas vidas e cederam a um impulso estranho.


E, agora, a palavra dita por Lydia Davis que, para além de escrever, é também professora de escrita criativa (e que é Membro da American Academy of Arts and Sciences e que, para além deste prémio, já recebeu inúmeros outros).




***

Ambos os pequenos contos de Lydia Davis acima transcritos fazem parte do livro 'Contos Completos' da Relógio d'Água numa tradução de Miguel Serras Pereira e Manuel Resende.

Abaixo, no post a seguir a este, há um vídeo muito divertido e, não é para assustar, mas deve merecer alguma reflexão por parte de quem se prepara para dar uma facadinha no matrimónio, que o que aconteceu àquele pode acontecer a qualquer um. Imagine que a coisa se passa num 9º andar, por exemplo...


***

E, por hoje, nada mais. tenham, meus Caros Leitores, um belo fim de semana!