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domingo, abril 05, 2015

Renascer. A maravilha da natureza.








Estavam 30º e um sol de verão. As glicínias estão a rebentar com aquela energia própria deste tempo de ressurreição. Os cachos lilases já estão quase formados e eu, quando os vejo, sinto sempre aquela alegria enorme de quando se reencontra alguém que julgávamos perdido. Esgueiram-se pela azinheira, envolvem-se com o loendro, enroscam-se nos portões. O seu perfume é discreto mas, ao entardecer, nestes dias de calor, o ar fica mais doce, com aquela suavidade que vem dos seres requintadamente delicados.

À porta da casa, os lírios do campo também já apareceram. Apetece-me tocar-lhes, sentir a sua pele macia, quase transparente, uma transparência azul, irisada. Gostava de os poder tornar eternos mas depois penso que, se fossem eternos, talvez perdessem este seu lado etéreo, efémero, e talvez a sua graciosidade venha também disso, de a todo o momento sabermos que podem desaparecer.




Vendo-os de perto, percebemos que são de uma beleza quase insuportável. Fotografo-os rendida, como se não conseguisse compreender como é possível que da terra nasça um ser vivo tão incrivelmente perfeito.

Por todo o lado as flores despontam, azuis, amarelas, cor de rosa. Não sei o nome de muitas delas.




A minha mãe sabe, estas plantas são-lhe familiares, diz muitas vezes que a vegetação aqui é parecida com a da Arrábida. A ver se amanhã lhe pergunto qual o nome desta. Pensava que fosse sálvia mas fiz uma pesquisa e não me parece.

Aparecem por todo o lado, pés isolados junto ao tronco dos pinheiros ou em tufos no meio do tojo ou do alecrim ou, ainda, junto às figueiras.




E eu capto-as, como se fossem elegantes bailarinas, perfeitas, em frente de um cenário que se anula para as deixar brilhar.

Os pinheiros estão também numa euforia, lançam despudorados espigões dourados ao céu. Alegro-me, sei que isso corresponde à altura que vão ganhar, é de dar gosto ver como se desenvolvem de forma tão festiva.




Nestes dias de calor, o perfume dos pinheiros torna-se quase intenso mas é um intenso não agressivo, é suave, e, mais à frente, junto aos eucaliptos, o ar fica ainda mais perfumado, um cheiro tão bom a campo, a pureza, a bondade.

Quando aqui estou, tudo em mim é leveza, é disponibilidade para o encantamento. Maravilho-me com os caminhos cobertos de caruma, maravilho-me com as abelhas numa azáfama sobre o alecrim que é, por estes dias, uma manta florida, maravilho-me com o tom ocre das rochas, maravilho-me com o tomilho rasteiro e delicado, com o rosmaninho, com o ouro feérico das flores do tojo, maravilho-me com a luz dourada e com o desenho das sombras.

Peguei numa toalha turca macia e numa almofada e fui ler para um dos bancos de pedra que está sob o enorme pinheiro. Levei um livro. E senti-me imensamente feliz.




O chão está coberto de caruma, o muro tem desenhados os arabescos de sombra dos ramos do pinheiro, o calor aqui é suave, abrigado. Gosto tanto de aqui estar deitada, sentir o sol na minha pele. Dormir aqui é tão bom. Dormi. De facto, apenas li sobre a Biblioteca de Alexandria e Zenódoto, depois adormeci.

Sobre mim, lá bem alto, as ramagens do pinheiro. É como um tecto feito de céu e véus feitos de ramos de pinheiro. E pássaros. E como cantam...




Gosto de ali estar a ouvir os sons do campo: os pássaros, as abelhas, um cão que ladra ao longe, um sino que toca algures na serra ao fundo. Eu podia viver assim grande parte da minha vida, no campo, a ouvir os sons da natureza, a contemplar a beleza intocada.

Mas porque este domingo há outros afazeres, e vamos estar com os meus pais e a minha mãe vai poder estar outra vez divertida com as crianças, viemo-nos embora ao entardecer.

Na casa ao fundo da rua, os cavalos dourados passeavam devagar, felizes também.




São dóceis os cavalos, belos e dignos. Por vezes, à noite, ouço-os correndo na estrada e esse som arrepia-me, há qualquer coisa de misterioso no som de cavalos correndo na noite.

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Agora, ao escrever, lembrei-me da magnífica entrevista que Sebastião Salgado concedeu a Jorge Calado e que apareceu na revista E (do Expresso) da semana passada a propósito da exposição Génesis que vai abrir a 10 de Abril na Cordoaria Nacional em Lisboa - e que, como ali se diz, é uma 'declaração de amor à natureza'.


Transcrevo um pouco:

Somos uma espécie que não merece viver. Destruímos muitas outras espécies, estamos a estragar o planeta. A nossa espécie será aniquilada pelos próprios actos que provocou. Mas descobri que as outras espécies são tão importantes como a minha, que as formigas são tão ou mais importantes no planeta que o ser humano; as baleias e os gaviões também. Estou dentro de uma escala de espécies, pertenço ao grupo dos animais. Que a minha espécie desapareça, não provoca nenhuma mudança má no planeta; pelo contrário, o planeta será reconstruído de uma outra forma, provavelmente melhor. Os dinossauros – outra espécie dominante e agressiva – durante 150 milhões de anos e desapareceram. (…) o planeta é muito sábio e é capaz de se refazer. Eu não acredito em Deus, sou ateu. Mas acredito numa ordem geral das coisas. Acredito que a inteligência que se desenvolveu nestes biliões de anos de evolução é uma inteligência maior e que a evolução é uma coisa fabulosa. (…)

Ao concentrarmo-nos nos centros urbanos, ao vivermos nas cidades, já nos retirámos do planeta. Não conhecemos mais os pássaros ou as árvores, não sabemos distinguir uma ave macho de uma ave fêmea, ignoramos o ciclo da vida.


Gaivota sobre o Tejo, Lisboa logo ali

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Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas


[excerto de 'Estilo' de Herberto Helder e que faz parte do belo artigo de Ana Cristina Leonardo também da revista do Expresso da semana passada]


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As fotografias foram feitas este sábado - de tarde as do campo in heaven; de manhãzinha, a última no Ginjal.

A música é Veni Creator Spiritus - Hildegard von Bingen

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Permitam que vos diga que, descendo, encontrarão coelhões da páscoa, avozinhas maltratadas, religiões e humor à mistura.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.
E que seja o início de um período de ressurreição, de esperança, de vida nova.

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domingo, fevereiro 17, 2013

50 obras de arte que toda a gente deve ver, segundo o Expresso - e algumas das muitas que, em meu entender, ficaram de fora (... e mais mil ficariam sempre)


O caderno Actual do Expresso dá destaque este sábado às 50 obras de arte que toda a gente deve ver. Opinam Celso Martins, Jorge Calado e José Luís Porfírio.

Muito subjectiva é a empreitada e é de louvar quem com ela não se intimida. Se eu tentar eleger as de que mais gostei até hoje fico bloqueada, nem tento. Sei que cometeria muitas injustiças. A minha memória é traiçoeira.

Vejo a que eles escolheram e revejo-me em algumas mas sinto que há qualquer coisa de redutor numa selecção deste tipo. Nem sei se faz sentido fazer estas selecções. Séculos de arte, e tantas disciplinas que a arte tem, como é possível esquecer tanta beleza, tanta inquietação ou harmonia e seleccionar apenas cinquenta obras?

Por exemplo,

  • onde as mãos, a catedral, a pureza, a simplicidade, a perfeição e o silêncio de Rodin?





  • onde a pulsão do sangue e os abismos do carne, o descaramento do desejo e a tragédia de Caravaggio?




  • onde a ingenuidade das cores, o calor ou a noite, o deslumbramento de Van Gogh, a sua peculiar visão?





  • onde o génio sem limites, a desmesura, a imaginação de outro mundo de Gaudi?





  • onde o abandono dos corpos, a beleza rente ao coração, a quietude de Jeanne vista por Modigliani?





  • onde o carinho da lua, as flores para a bem amada, os pássaros imprevistos, a ternura encantatória de Chagall?





  • onde a truculência, a ironia, a irreverência, a provocação de Magritte?





  • onde a pureza das linhas, a violência da dor, a beleza pura (ou impura) de Mapplethorpe?






  • onde inocência, a perversão, a alegria, a denúncia, a inteireza de Paula Rego?





  •  .....


E mil, muitas mil obras mais estarão sempre de fora porque infinita é a beleza e a forma como se manifesta.

*

Desejo-vos meus Caros Leitores, um domingo muito bom.

domingo, janeiro 06, 2013

Nos 40 anos do Expresso o meu singelo tributo, nomeando alguns dos seus colaboradores que leio com mais atenção - Clara Ferreira Alves, Pedro Mexia, António, Miguel Sousa Tavares, Nicolau Santos, Jorge Calado (e pela crónica desta semana, Luís Pedro Nunes)


Leio o Expresso desde que me comecei a interessar pelo mundo. E há tantos anos isso foi que já me tornei uma viciada. Já aqui o referi muitas vezes: sábado em que não consiga lê-lo, já me parece um sábado incompleto. Na minha vida não sou dada a grandes rotinas mas ler o Expresso é uma coisa que tem já a ver com o meu equilíbrio interior (seja lá o que isso for).

Posso não concordar com algumas coisas, podem irritar-me alguns cronistas (o Henrique Raposo e o Rui Ramos estão entre os que mais me arreliam), mas tenho que percorrer todos os recantos com uma disciplina que eu própria tenho alguma dificuldade em compreender. Só depois de o ter lido, tenho a certeza que o mundo continua a girar à velocidade certa e na sua devida rota. Pancadas, cada maluco tem as suas.

Hoje o Expresso faz 40 anos e eu sinto-me no dever de lhe prestar tributo.

Para tal, andei a fotografar a edição deste sábado para que aqui fique registada. Passeei-o aqui in heaven.



Expresso 40 anos sobre uma rocha sobre o qual nasce o musgo.
A capa da Revista é espelhada, reflectindo o que esteja à sua frente.
Aqui espelha o céu e a grevíliea robusta que um dia morreu quebrada por um vento forte e que, um ano depois, para nossa alegria, ressuscitou, bela e vigorosa.



De seguida, mostro alguns dos autores cujos artigos leio sempre e em quem reconheço criatividade, qualidade, vigor, rigor expositivo, cultura.

A ordem não segue nenhuma hierarquia de preferências.


Clara Ferreira Alves é uma delas. Desde sempre acompanho as suas opiniões e entrevistas (... e o seu visual, em especial o seu corte e cor de cabelo - do negro azeviche ao louro platinado, passando pelo ruivo). A sua escrita é fluente, o seu estilo é muito consistente, os temas que escolhe para as suas crónicas são relevantes, as entrevistas que faz são sempre excelentes. 



Clara Ferreira Alves, aqui sobre uma sóbria mas fofa cama de folhas de azinheira e bolotas: ou na sua Pluma Caprichosa ou noutros espaços é sempre criativa, culta, frontal, tem uma escrita segura e bem articulada e não se ensaia nada para dizer o que pensa



A seguir, Pedro Mexia. Gosto muito do que escreve. Por vezes arrelio-me com o tom pessimista, desencantado. A sua melancolia, que é literariamente interessante, por vezes cansa-me, especialmente por ser descrita por um homem ainda jovem, inteligente, com uma vida de oportunidades pela frente. Mas isso não esmorece a admiração que sinto por aquilo que escreve, seja no Fraco Consolo, seja nas entrevistas ou na crítica literária. É contido na escrita mas, não obstante, transparece sempre uma emoção que passa para quem o lê. Os temas que escolhe são interessantes e, não obedecendo a nenhuma lógica pré-definida, contêm sempre um elemento de surpresa para o leitor o que, em jornalismo, é importante.



Pedro Mexia, aqui sobre cama de caruma do meu grande pinheiro e encostado a uma cariátide de Modigliani, para dividir com ela a carga do mundo que é demasiado pesado para ser carregado por um homem só: versátil, bem informado, trabalhador, perfeito na escrita



A seguir, António, o cartoonista que acompanha os tempos, com sentido de actualidade, graça, atenção aos pormenores. Descobrir o cartoon de cada edição é parte do prazer de abrir o Expresso no caderno principal. Nesta edição é o Relvas, a preto e branco, out of the box.



António aqui sobre cama de alecrim para que o Relvas não empeste o ambiente: António capta a essência dos retratados, capta o tema dominante, capta o humor subjacente a todas as situações


Luís Pedro Nunes nem sempre justifica a leitura, já que por vezes é fútil para além da conta, frequentemente fala de irrelevâncias sem história. Mas, ainda assim, gosto de passar os olhos sobre o que escreve. E nesta edição surpreendeu-me. Mostrou ter textura, tessitura, dimensão para além do espírito superficial que de que parece revestir-se. Uma bela crónica, das melhores que tenho lido sobre os tempos de chumbo que atravessamos.



Luís Pedro Nunes aqui sobre as cinzas do fogo da véspera, cinzas deitadas sobre folhas mortas: para acentuar o tema dos '40 dias depois de hoje', dias de cinza, de agonia



Agora Miguel Sousa Tavares, leitura sempre forte, dura, viril (se faz sentido falar assim). Com oportunidade, bem informado, expondo as suas ideias de forma metódica e clara, Miguel Sousa Tavares é um homem livre, uma voz que fala alto e que denuncia, sem medo, aquilo que acha que é de denunciar. Lê-lo nestas crónicas é recordar que é bem o filho de seus pais, ambos pessoas de convicções e de voz livre.



Miguel Sousa Tavares aqui sobre cama de de berberis, arbusto de pequenas flores subtis cujos ramos estão cobetos de picos: assim a sua escrita com alguns apontamentos de suavidade poética sobre prosa persistentemente áspera



A seguir Nicolau Santos. Expõe bem, explica em termos simples questões que, se quisesse, poderia enfeitar com terminologia arrevezada, louva o que é de louvar, aponta o dedo ao que é de criticar. E comete a ousadia de enxertar a meio do seu artigo semanal um poema e, mais, dá-lhe lugar de destaque. É curiosamente no Caderno de Economia e a meio de um artigo sobre economia que é possível ler, todas as semanas, no Expresso, um poema completo. Até por isso, honra lhe seja feita.



Nicolau Santos aqui sobre cama de cedro porque a poesia e a economia (quando é honesta) rima bem com o aroma puro dos cedros, porque gosta de citar casos positivos e isso rima com esperança e com verde.



Finalmente e seguramente não por ser o de menor relevância, Jorge Calado. É o que se pode chamar um valor seguro. É a cultura, a arte, o bom gosto, o sentido de justiça, a visão landscape, o saber, a honestidade - aprende-se sempre muito com Jorge Calado, seja nas suas críticas, seja na sua tabela Periódica.



Jorge Calado aqui sobre cama de musgo, um musgo macio, precioso, e também junto à grevílea renascida:  uma escrita despretensiosa, conhecimentos abrangentes e diversos, um gosto e opiniões acima de quezílias, provincianismos. Jorge Calado é um renascentista.



Não falo de Fernando Madrinha, João Garcia, Pedro Adão e Silva, Daniel Oliveira, cujas opiniões igualmente sigo com atenção, apenas porque há neles alguma previsibilidade que não encontro nos outros - e a imprevisibilidade é parte da poção mágica que transforma os bons em especiais.

Não falo de Henrique Monteiro porque é algo aleatório, parece-me influenciável, deixa-se levar na onda da opinião dominante. Não o acho particularmente perspicaz. Mas tem graça, especialmente quando escreve como Comendador Marques de Correia.

Não falo também do director, Ricardo Costa, porque tem uma forma de escrever que frequentemente me provoca alguma irritação. Fala como se estivesse a descobrir a pólvora, como se visse sempre alguma coisa que ninguém, antes, viu. Cita-se muito a ele próprio a tem tendência a escrever como se fosse o Zandinga. Talvez seja um bom director mas, como cronista, tem ainda muito que aprender. Tem, sobretudo, que adquirir alguma humildade, coisa que, parecendo que não, dará algum jeito a quem se expõe escrevendo num jornal de referência como o Expresso. 

Seja como for, 40 anos é uma idade que deve orgulhar os donos do jornal e quem lá trabalha ou trabalhou.

Desejo-lhes muitos anos de vida e que consigam renascer muitas vezes, que nos consigam surpreender e corresponder às nossas exigências.


Uma pequena flor in heaven para todos os que trabalham no Expresso e, em especial, para aqueles que nomeei como os meus preferidos

(Reparem, por favor, na leveza, na perfeição, na subtileza, na beleza desta flor - que o vosso trabalho possa ser sempre assim)


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Gostaria ainda de vos convidar a virem comigo até à minha outra casa, o Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras evocam um amor do passado a propósito de um poema de José Bento. A música é um outro momento feliz, dois pianos para Mozart: Filipe Melo e Luiza Dedisin

(|)

E, aqui chegados, quero ainda desejar-vos uma bela semana, a começar já por esta segunda feira.


domingo, agosto 19, 2012

A grande festa do ego e o bordel das subjectividades de António Guerreiro; os anjos, os bosões e a picada no dedo de Jorge Calado e, imaginem, a propósito disto, a grafologia como forma de conhecermos melhor quem somos


Música, por favor



Ernst Bloch - Prayer for cello and piano
Dimitri Ferschtman/cello; Mila Baslawskaja/piano


*


Eu
Id, Ego, Superego, ....


Escreve esta semana António Guerreiro, na rúbrica 'Ao pé da letra' do caderno Actual do Expresso, que 'até os jornais mais sóbrios se tornaram permeáveis a esta grande festa do ego que se tornou um bordel de subjectividades'. E, continua, dizendo que 'o discurso universal, que foi outrora representado por uma figura desaparecida, a do intelectual (...), deu lugar à grande parada carnavalesca dos "Eus" que gritam, saltam e se atropelam.'

Talvez. 

É um facto que os jornalistas tanto aparecem como jornalistas, como comentadores, como bloggers, como animadores de debates, como escritores, como dando entrevistas por serem algumas das coisas anteriores. Ora, com esta múltipla exposição, como evitar que haja como elemento unificador o 'eu'?

E, se constato esta múltipla exposição, não o faço de forma censória pois que cada um se multiplique ou se divida como gosta e como pode, é coisa que não me incomoda nem a mim e que não vejo como há-de incomodar alguém (para além dos próprios).

E, de resto, mesmo que ainda encontrássemos jornalistas intelectuais, não encontraríamos nenhum que estivesse acima da condição humana de ser quem é, conseguindo escrever como se estivesse a ser portador de uma palavra que lhe tivesse sido soprada por um invisível outrem.

Por muito isenta que uma pessoa seja, é sempre ela que ali está. Pode disfarçar, usando artifícios linguísticos, fazendo de conta que não é o próprio a relatar ou a ter aquela opinião mas, sim, um ser independente, uma criatura sem identidade. Pode fazê-lo mas, mesmo na forma como o faz, está a marca do seu 'eu'. Por isso, parece-me uma falsa questão a de António Guerreiro.

E, além do mais, se o próprio não sabe nem de que matéria é feito como pode ter pretensões a poder falar acima de si próprio?

*



Quando falo que nenhum de nós conhece a matéria de que é feito não estou a usar uma expressão à toa, estou mesmo a querer dizer isto: não sabemos sequer de que matéria somos feitos. Se queremos saber coisas simples (como está o nosso estômago, as nossas articulações, etc) temos que nos fazer radiografar, analisar, espreitar com câmaras introduzidas dentro de nós.

E isto para saber as coisas simples. Porque, para se saber as coisas mais complicadas, têm os cientistas, em imensos, soterrados e bunkerizados túneis, que acelerar as partículas de que a matéria é feita, analisando depois, através da mais sofisticada tecnologia, o rasto que elas deixam. E o curioso é que estas coisas complexas que apenas poucos conseguem testemunhar são afinal as mais simples, as mais ínfimas de todas as coisas, são as partículas elementares, as mais pequenas e indivisíveis partículas de que tudo é feito.

No mesmo Actual, podemos ler o curioso artigo de Jorge Calado na sua sempre interessante 'A tabela periódica'. Fala ele do bosão de Higgs, a intrigante partícula de Deus, como ficou a ser conhecida - depois de ser apenas a goddamn particle (o estupor da partícula, digamos assim). Termina ele o seu artigo dizendo que 'meteu-se a mão num enorme monte de palha e sentiu-se uma picada' e que espera 'que seja a proverbial agulha'.

Antes, explicava ele que 'dois fermiões não podem ocupar o mesmo estado (quântico), mas dois (ou mais) bosões podem'. E, com o seu sentido de humor apurado, remata Jorge Calado que 'esta é a resposta à questão levantada por São Tomás de Aquino de saber se dois anjos podem pousar simultaneamente na mesma nuvem'

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Las tres esfinges de Bikini, pintura de Salvador Dal


E volto, ainda que muito brevemente, à questão da identidade, juntando-a agora à questão de não nos conhecermos sequer a nós próprios.

De todos os mistérios da vida, o desconhecimento de nós próprios é talvez um dos mais fascinantes. Como somos? Porque somos assim? Como agimos? Como somos perante os outros?

Isto sempre me interessou e leio tudo o que apanho sobre o tema e que esteja à altura da minha compreensão. António Damásio e muitos outros que agora não vêm ao caso têm alimentado a minha curiosidade.

Mas não é só a ciência que aplaca a minha vontade de saber mais sobre este assunto.

Desde há algum tempo que a grafologia me despertava interesse. A grafologia estuda a personalidade, o carácter ou o comportamento das pessoas a partir da sua escrita à mão. Assim, frequentei um curso ministrado pelo Dr. Alberto Vaz Silva no Centro Nacional de Cultura. O curso foi interessantíssimo e aprendi imenso pois ele é uma pessoa culta, um bom conversador, uma pessoa com uma vida riquíssima e com vastos conhecimentos sobre a matéria. O curso era frequentado maioritariamente frequentado por psicólogos, professores e até um juiz. Eu devia ser a única pessoa que ali estava apenas pelo prazer de aprender, sem qualquer intenção de utilizar os conhecimentos na prática. No entanto, apesar de me reconhecer como uma simples iniciada, por piada, tenho ousado fazer várias análises e, curiosamente, os analisados reconhecem-se naquilo que sobre eles tenho referido. Por vezes acontecem surpresas mas, depois de analisados os comportamentos, geralmente acabamos por concordar com a análise feita.

As análises grafológicas debruçam-se sobre a pressão na escrita, a inclinação da letra e das linhas, as margens, a junção das letras, o espaço entre palavras e entre linhas, a assinatura e a sua localização, a própria forma das letras, etc (mas, note-se, a caligrafia não é, nem de longe, o mais importante).

Uma das caracterizações básicas que se fazem a partir das primeiras impressões da escrita tem a ver com os temperamentos (colérico, sanguíneo, fleumático, melancólico). No interessante blogue A Matéria dos Livros, já anteriormente aqui referido, a sua autora faz uma caracterização dos quatro principais tipos de temperamentos. Num comentário que ali coloquei, referi muito sumariamente como é relativamente simples, a partir de uma análise até imediatista, traçar um rápido retrato comportamental do indivíduo cuja escrita se analisa.

Mas a análise permite ir mais além: permite detectar traços de imaturidade, ou de ligação excessiva aos pais ou à família em geral, ou ao passado, ou ver distúrbios graves, ou ver uma ausência de respeito pelos outros, ou uma introversão excessiva, ou um temperamento apaixonado ou criativo, ou uma tendência para a mentira, ou uma ambivalência extrema, ou o gosto em aprender ou, pelo contrário, um espírito fechado, etc.

É interessantíssimo. A grafologia é um mundo vasto e muito aliciante.

E uma coisa muito curiosa na escrita é que não controlamos a forma como escrevemos (a menos que o façamos deliberadamente para tentar ocultar a nossa identidade - e mesmo assim é muito difícil, e deixaremos, seguramente, 'rastos') pois a forma como escrevemos revela-nos e nós somos o que somos ainda que não o saibamos.



Carta de Fernando Pessoa a Ofélia
Nota: Tal era o desdobramento de personalidades de Fernando Pessoa
que, nele, a escrita era mesmo variável consoante os heterónimos que usava
*

E, por hoje, é isto. É isto e é, sobretudo, desejar-vos um belíssimo domingo.