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terça-feira, outubro 03, 2017

A grande vitória do PCP em Setúbal.
Perdão. Corrijo: a grande vitória da Maria das Dores em Setúbal.
E a grande derrota do PCP em Almada.
Perdão. Corrijo. O voto de confiança de Almada na Inês de Medeiros


Enquanto nas televisões e nos jornais todos se afobam a ver quem aparece com o comentário mais inteligente e todos têm explicações elaboradas para tudo o que aconteceu, eu, moça simplória, para tudo o que acontece tenho explicações simples.

A saber.

Setúbal.

Vitória do PCP coisa nenhuma. Vitória da Maria das Dores, isso sim. Por acaso, a Maria das Dores é do PCP mas podia ser do PS, do BE ou ser independente. Algures no tempo deu-lhe para ali e por ali se foi deixando ficar. Mas, cá para mim, é tão comunista como eu. Mas também não é grave porque, para o efeito, não faz grande diferença.


O que ela é é trabalhadora, empática, gosta de ter a cidade arranjada, vê-se obra. 

Em tempos passou por lá, por Setúbal, um burgesso, qualquer coisa Cáceres, não me lembro do nome do homem. Toda a gente abominava tal pessoa. Uma coisa na base do pato-bravo desqualificado que descaracterizou a cidade e deixou má memória.

Setúbal assolada por crises de desemprego, as fábricas a despejar gente para as ruas e, na autarquia, um matrafão que arrancava árvores, que empedrava tudo, que atafulhava a cidade do que a cidade não precisava.

Foi-se embora mas a fasquia inferior ficou bem definida. Uma coisa assim, jamais. De facto, a preocupação, ao votar, é que seja em alguém que seja o oposto dele. Depois dele, a malta só quer gente civilizada, de boas contas e boas maneiras, e capaz de sorrir.

Acontece que a Maria das Dores, pelo que se tem visto, é assim mesmo -- e, portanto, a milhas do tal bicho de má memória. E é bonita, bem arranjada, sorridente. Não sei como consegue ter sempre o cabelo tão bonito e ter tempo para aparecer sempre bem maquilhada e bem vestida. É agradável para a população ter uma presidente assim. E a cidade está bonita, cuidada, tem sido valorizada, e há eventos culturais, e ela tem sabido promovê-la e os turistas enchem a cidade, tornando-a vívida, alegre.

Portanto, sem pestanejar, as pessoas votam nela. E votariam se ela fosse de outro partido qualquer pois votam é nela. E era bom que o PCP percebesse isto. 

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Inês de Almada - a rive gauche a quem a merece


É o reverso do que aconteceu em Almada. As pessoas votavam no PCP porque, em regra, se admite que os comunistas são autarcas geralmente competentes e porque nunca tinha surgido candidatura alternativa com boa cara. De facto, os outros partidos sempre olharam para Almada como uma coutada comunista. Por isso, nunca lá punham ninguém de jeito. 

Desta vez o PS pôs a Inês de Medeiros. E ela é simpática, fala bem, olha-se para ela e espera-se que se porte bem, que traga uma maneira diferente de fazer política -- e o PS apresentou um bom programa. Portanto, uns eleitores, talvez aqueles mais conservadores, ainda se deixaram ficar -- mas os outros resolveram ver se é desta que aparece uma boa lufada de ar fresco. Tão simples quanto isto. 



E era bom que o PCP também o percebesse. Nem tanto a ver especialmente com o PS, nem com o efeito da Geringonça (que esvazie o papel do PCP) ou com qualquer outra razão metafísica.  Almada votou na Inês de Medeiros sobretudo porque existe saturação da pasmaceira comunista e uma vontade de ter orgulho na cidade em que se vive e de ver acontecer coisas novas (como a Isabela explica no seu blog).


A velha guarda que votava no PCP por razões ideológicas, recordando os duros tempos do fascismo, é cada vez menor. Agora, para quem não é dos tempos da 'longa noite fascista', das torturas de sono, das vidas clandestinas, etc, os comunistas são vistos como os da CGTP... e pouco mais. E, nas autarquias, são vistos como gente competente e honesta mas sem grande rasgo, sem asas, sem serem capazes de abrir caminhos de modernidade.


A minha mãe hoje dizia-me: 'Antes do 25 de Abril, o PCP ainda se justificava. Agora hoje...? Não. Já não se justifica'. E, no entanto, votou na Maria das Dores. Chamei-lhe a atenção para a contradição. Mas ela confirmou o que eu já sabia: 'Não. Não votei no PCP. Votei foi nela'. Tal como em Almada votaram na Inês de Medeiros.


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segunda-feira, janeiro 09, 2017

A Gorda e El amor brujo
-- e tanta gente dormindo ao relento nesta noite tão fria





Dormi. Gosto de sentir o sono a chegar. Depois fiquei a meio caminho, não a dormir mas incapaz de acordar. Mais tarde, já acordada, peguei na Gorda e vim de gosto, com ela ao colo, sabendo das suas histórias. As suas mamas são grandes e pesadas, o seu cabelo é fino, a sua vida não tem sido fácil. Talvez se não tivesse sido gorda a sua vida tivesse sido diferente -- mas isso é coisa que nunca se saberá. 

Não sei o que vê ela no David. Um fraco. Ela cheia de convicções, com uma cabeça cheia de vontades e com uma sensualidade que se apanha à mão e ele tão hesitante, tão rente à normalidade. Mas, bem sei, são coisas que não obedecem a um manual. Há paixões que nascem sabe-se lá como, instalam-se quando juraríamos que não teriam terreno fértil, e, mesmo quando sujeitas a rudes golpes, deixam-se ficar, parece que adormecem, que se esfumam. Mas não, renascem ao mínimo novo sopro. Renascem sempre com igual força, ignorando mágoas passadas, escamoteando improbabilidades futuras. Paixões à rédea solta são bicho quase impossível de domar. Sei disso. E a Gorda que o diga. Toma decisões, põe-nas em prática, percorre caminhos envolta noutros braços, dá o corpo à tentativa de maternidade, ousa, luta. Contudo, é a esperança de voltar a ter o seu David que lhe dá razão para continuar a viver.

Mas a Gorda não é apenas a mulher que procura uma vida normal. É também a jovem que percorre colégios, a casa da avó, de tias e primas, é a mulher que carrega o peso de uns pais que transportam uma vida que deixaram para trás, é a filha única, sem mais família e com as posses limitadas de uma professora, que arca com o peso do envelhecimento dos pais, é a mulher que um dia resolve desfazer-se de parte do estômago, perder quarenta quilos, voltar a ter formas de mulher.

Bonita, com uns belos olhos, uma boca bem desenhada, formas acolhedoras, a Gorda não nos esconde os seus sentimentos, os seus cansaços, a sua vontade de liberdade e o seu medo de solidão.

Eu, que gosto da grande literatura, não posso dizer que encontre ali construções verbais que me deixem em estado de encantamento. Mas encontro aquela escrita muito bem cerzida, de uma honestidade desarmante, que prende do princípio ao fim, como se a pele, a respiração e o sangue da mulher que a escreve estivessem inteiros ali. Talvez se sinta ali um livro de memórias, um diário, um registo confessional, íntimo, -- ou talvez desperte em nós vontade de que ela, a Gorda bonita, seja feliz. Ou tudo isto misturado na dose certa.

(Um dia ainda perco a vergonha e vou mesmo pedir-lhe um pratinho de marmelada).


Não apenas gosto muito de ler o que Isabela Figueiredo escreve como acho que deve ser uma boa pessoa, uma mulher muito genuína. E A Gorda é, sem dúvida, um livro a não perder. Aqui fica, pois, a minha recomendação.


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Depois saímos e estava muito frio. Voltei atrás para vestir um casaco mais forte, para pôr uma écharpe de lã. E levei o meu chapéu de feltro castanho claro com uma fita em ouro velho que a minha filha me ofereceu pelo natal. Assim, já o frio sabe bem. Passeámos no meio de multidões sorridentes, faladoras, perfumadas.

Pelo meio, omnipresentes, pares de polícias. Por todo o lado também carrinhas da polícia. De vez em quando, sobrevoando-nos, um helicóptero. Por vezes o ruidoso bicho voador pára, fica ali, ameaçador. Ninguém estranha. Só nós não percebemos o que se passa. Depois, acabamos por deixar de prestar atenção a isso, talvez seja esta a nova forma da normalidade.

Já quase não há iluminações de natal. As gigantes árvores de natal luminosas estão apagadas. Mas a festa parece continuar.

Jantámos numa esplanada, num praça muito bonita. Os aquecedores de rua, os candeeiros, a forma como as mesas estão dispostas, tudo contribui para que seja muito agradável.

A cerveja gelada soube muito bem e o resto também.

Quando estávamos quase a acabar o bom jantar, reparei que, mais lá à frente, se estava a formar uma fila de gente. Gente ruidosa. Muitos. Dezenas. Intrigada, sem conseguir perceber, peguei na máquina fotográfica e dei-lhe zoom. Pareceu-me que eram os sem-abrigo que dormem nas caixas de cartão do outro lado que estavam a ir buscar comida. Via-os com sacos e caixas. Uma meia hora depois a fila foi-se desfazendo. Quando acabámos de jantar, passámos relativamente perto das arcadas do outro lado. Dezenas de pessoas. Muitas a enfiarem-se nos abrigos feitos de cartão. Mais à frente, em cima de canteiros em largos movimentados, edredons, mantas, cartões. Mais gente a dormir ao relento. Sempre os houve mas multiplicaram-se desde a última vez em que por aqui andámos.

As outras pessoas passam ou estão sentadas por ali, ignorando-os, como se aquelas pobres pessoas sem casa fizesse parte da paisagem.

Este mundo está a andar às arrecuas. Não consigo aceitar isto sem que se me gelem as minhas impotentes mãos.

Mas faço por não pensar nisto. Enquanto por aqui ando, estes meus pensamentos são fúteis, inúteis. Esqueço-os.


Muito frio. Apesar do que se vê por todo o lado, é agradável andar a passear à noite, sentindo o frio. O meu marido tira do bolso um gorro. Com a gola subida e o gorro enterrado fica muito bem, gosto de o ver assim. Tem um ar quase subversivo que me agrada. 

Depois penso que um chocolate quente é que era. Ele não quer, não aprecia coisas doces. Compramos, então, só para mim. A empregada da loja pergunta que mais. Digo que é só o chocolate e ela admira-se. Venho então pela rua, encasacada, com o meu chapéu de feltro quentinho, com um copo de chocolate espesso, bem quente. E sabe-me tão bem. Bebo-o aos golinhos gulosos, devagar, porque está muito quente e para que renda mais.


Mais à frente, os donos desta livraria de rua, meio alfarrabista, recolhem, com vagar, as mesas com livros. Parecem não sentir o frio.

Logo a seguir alinham-se cabeleiras coloridas. Se calhar é porque um dia destes vai ser, outra vez, carnaval. Tenho sempre vontade de trazer uma. Já, noutras vezes, estive para trazer uma. Aliás, já uma vez trouxe uma cabeleira ruiva, ondulada, comprida. Mas é quase normal, não fora tão avermelhada e tão brilhante e quase pareceria cabelo de verdade. Não dá pica usá-la.

São as lilases ou azuis turquesas que mais me atraem. Talvez seja desta. O meu marido vai achar um disparate. Claro que é um disparate. Mas há coisa mais disparatada do que nunca fazer disparates?


Depois, já tarde, regressámos. Não sei de notícias. Presumo que as televisões continuem a recordar Soares e fazem bem. Também acho bem que se fale dele com alegria, a rir, recordando a sua valentia descarada, a sua capacidade de ver para além do imediato, a formidável displicência que vinha da sua absoluta confiança na sua intuição e na sua alegria de ir experientando as surpresas da vida.

Tirando isto não sei que mais diga. Vou ver se espreito os jornais online a ver o que aconteceu no mundo. E vou ver os blogues aqui ao lado onde há gente que escreve tão bem e sobre temas tão interessantes.

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Talvez até já.

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sexta-feira, dezembro 09, 2016

O sereno devenir in heaven




Esta quinta-feira deveria ser o Dia da Mãe. Durante anos pensei que dia 8 de Dezembro era dia feriado por ser Dia da Mãe. Isto antes de mercantilizarem o dia da mãe. Afinal é por ser dia da Imaculada Conceição -- fui agora confirmar.

Andei parte do dia a sentir que era sábado. Depois lembrei-me que não. Dia de Nossa Senhora. Lembrei-me das Anunciações da Maria Teresa Horta. O melhor livro do ano. Mais plausível a jovem Maria de Maria Teresa Horta que as outras histórias da catequese. Desliguei-me de vez dos ensinamentos católicos quando, aos oito anos, projectaram um filme lá na nossa escola. Era a história da perseguição brutal a Cristo, toda a violência que culminou na cruz. Depois a ressurreição. Lembro-me que pensei que nada daquilo tinha jeito, nem a história nem estarem a mostrar aquilo a nós, crianças pequenas.


Era uma escola particular, muito protegida. A catequese era quase uma actividade curricular. Íamos à catequese e eu detestava, tudo aquilo me passava ao lado. Não havia racionalidade nem beleza naquelas histórias. E a ideia do pecado sempre muito presente. E a confissão. Um absurdo. Eu, que tinha tanta facilidade em aprender, não fixava nada daquilo, nada daquilo me interessava. Lembro-me que às vezes a minha mãe me perguntava o que tinha aprendido e eu não fazia nem ideia. A algumas pessoas deve acontecer isso em relação à matemática ou à física. A mim era com a catequese.

E nem consigo lembrar-me de quem era a catequista. Nem me lembro se a catequista ia à escola ou se éramos nós que íamos à capela. Varreu-se-me tudo. Só me lembro que aquilo era, para mim, um castigo.

Fiz a primeira comunhão e a comunhão solene. Mas, no meu íntimo, sabia que aquilo era uma coisa que me era completamente alheia. 

Nunca gostei de ir à missa, nunca senti que pertencesse àquele mundo. Apenas me lembro, e com agrado, do cheiro a rosinhas de Maio por alturas da minha primeira comunhão ou, no ano antes, em que fui de anjinho na procissão.
Já o contei e até já tive vontade de mostrar: a fotografia em que estou assim de branco, vestido até aos pés, grandes asas, uma fita com flores brancas a segurar o cabelo comprido que ondulava ao sol e eu a rir, feliz, é talvez das minhas fotografias preferidas. 
Gostava do cheiro das flores e dos cânticos, a Capela do Bairro iluminada, toda florida, jarras com grandes ramos de gipsofilas e rosinhas brancas, o sol a entrar, coado pelos vitrais, e as pessoas a cantarem. Disso eu gostava.


Do resto não. Esqueci tudo. Nada sei de evangelhos, de histórias biblícas. Nada. A igreja católica, com os seus métodos, destruíu qualquer possibilidade de eu me alguma vez me tornar devota ou fiel. Na escola e, mais tarde, no liceu ou na universidade, o meu santo nunca cruzou com os santos de gente beata, sempre todos muito apertadinhos, muito cheios de nove horas, gente que sempre me pareceu sem rasgo, sem visão, sem condescendência ou generosidade.

Os anos foram passando e fui continuando a conhecer gente ligada à igreja. Muitos têm tentado puxar por mim, acham que tenho uma alma religiosa. Não sei se tenho, se não. Mas, se não consigo alinhar-me em nada, muito menos poderia alinhar-me numa coisa tão pessoal. Uma pessoa quando se filia num movimento desapessoa-se, perde liberdade e eu perder a minha liberdade é deixar de ser eu. 

Mas vem a isto a propósito de esta sexta feira ter sido feriado religioso, dia de Nossa Senhora mas, se bem percebo, não por ter sido uma corajosa mãe de um filho rebelde, que perdeu a vida por uma nobre causa, mas por, supostamente, ter engravidado por obra e graça. Se fosse pela verdade histórica eu talvez desse importância ao dia. Mas tirar a humanidade a Maria, fazê-la mãe virgem (talvez por se pretender associar o acto sexual a um acto reprovável), isso a mim não me diz nada. Mas, seja como for, é boa ideia ser dia feriado e eu não sou esquisita quanto aos motivos.


Hoje o dia, como já mostrei, foi passado in heaven. Dia tranquilíssimo, sem televisão, sem notícias. É certo que agora à noite estive a escolher as fotografias pré-selecionadas, uma a uma, a marcar quantas de cada para depois a dar a este, àquele e ao outro. Ao todo, as impressões ultrapassam as setecentas. Concordo: se calhar exagero mesmo. Mas, poderia escolher só uma dúzia, por exemplo, seleccionando apenas de entre as dos dois últimos meses? Se calhar, faria mais sentido. O problema é que não sei ser moderada.

Em algumas entrevistas de emprego, o entrevistador pergunta: qual o seu principal defeito? Geralmente, os candidatos, que já sabem que esta pergunta é um must a que dificilmente escaparão, já levam a resposta engatilhada. Dizem que é a teimosia pois sabem que, numa certa perspectiva, isso pode ser uma qualidade. Se eu entrevisto pessoas não pergunto nada disso, quero é perceber como é a pessoa, se é boa onda, se tem vida própria, se vai trabalhar bem em equipa. A última coisa que quero é um cromo, um obcecado, um chato.

Se a mim alguma vez me tivessem feito essa pergunta, eu seria sincera: que tenho muitos defeitos, todos difíceis de controlar e que um deles é ser imoderada. Certamente não seria seleccionada. Ou, com um bocado de sorte, o entrevistador perceberia que ser-se imoderada, também numa certa perspectiva, pode ter algumas vantagens. Agora ia escrever 'por exemplo' mas estaquei, não consigo lembrar-me de nenhuma. Mas tem vantagens, tenho a certeza que sim.


Bem.

Acho que, quando comecei a escrever isto, tinha alguma em mente. Mas pus-me para aqui a ouvir música, a divagar, e perdi o rumo à conversa.

Talvez quisesse apenas dizer que, depois de andar a passear pelo campo e a fotografar os cogumelos que rebentam por todo o lado e o orvalho e as belas cores de outono e o musgo no chão e a rocha húmida, negra, vim para casa. A salamandra a aquecer a casa, o cheiro bom do azinho, as cores quentes da casa. Quando cheguei levava uma echarpe de lã que a minha mãe me deu mas depois, com o calorzinho bom, tirei-a.

Continuei a ler A Gorda. Há uma humanidade sem filtros que nos aproxima da autora. Ao contrário de Elena Ferrante que esconde a identidade para que a obra seja independente de quem a escreve, Isabela Figueiredo coloca-se inteira nos livros que escreve.


É muito bom estar enovelada, aninhada, em paz, a ler, sentindo o tempo a correr devagar. O lento devir.


À noite, fomos comer um gelado. Gosto sempre de comer gelados mas, não sei porquê, ainda mais no tempo frio. Comi um cone de chocolate fondant. Soube-me muito bem. Ia à procura de chocolate negro com laranja mas não havia. Uma vez comi um gelado de uma fruta de que nunca tinha ouvido o nome e que me disseram ser umas laranjinhas pequeninas. Era mesmo bom. Nunca mais lá apanhei desse. Também nunca mais me consegui lembrar do nome.

E agora acho que está na hora de vos deixar em paz que isto vai longuíssimo. Parece-me que é noite de sábado mas, afinal, o dia que se segue é de trabalho. Felizmente é sexta-feira. E eu ando com uma vontade de passear... Saio do trabalho à noite, vejo as luzes da cidade, tendinhas a vender não sei o quê, movimento nas ruas, e só me apetece largar o carro e pôr-me a pé, misturada com quem passa, com quem não tem pressa de chegar a casa, e pôr-me a fotografar, eu feita turista acidental. Tomara poder tirar uns dias de férias e ir à descoberta de um lugar qualquer. Estou mesmo a precisar.

E já estava outra vez a divagar, credo. Peço desculpa por esta seca que vos dei. Só visto.

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As fotografias foram feitas in heaven
Lavinia Meijer interpreta Divenire de Ludovico Einaudi. 

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domingo, julho 29, 2012

A lua que, aqui in heaven, aparece branca e suave quando o céu ainda está azul diurno; as minhas pedras que guardam este templo e os meus livros em férias


Para vos acompanhar na leitura do texto, música, por favor

Dead Combo e Camané - Ouvi o texto muito ao longe

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Um sábado tranquilíssimo. Sono solto, calor, descanso, leituras, telefonemas, fotografias, culinária (dia de choquinhos cozidos com tinta para o almoço), pequenos passos em volta já que o repouso teve que voltar. É isto o lazer. O verão no campo. 



Hoje de tarde, a lua num céu límpido e, à direita, a minha grande e protectora azinheira


E há a lua que se desenha num céu límpido ainda a noite vem longe. A lua em quarto crescente, boa para nascerem crianças. Quando os meus filhos estavam para nascer eu olhava a lua e, de noite, quando estava lua cheia, levantava a roupa para que o luar os iluminasse, gostava de sentir o luar na minha barriga enorme. Nasceram também no verão, estava muito calor e eu estava muito feliz, adorei estar grávida, adorava senti-los dentro de mim. Durante muito tempo senti saudades desses movimentos largos de quando eles já eram grande e se ajeitavam dentro de mim. Ainda sinto, mas são umas saudades de uma realidade já longínqua. 

Para além desta lua branca, esboçada num céu muito azul, há também as cigarras, os pássaros vagarosos, as lagartixas que se escondem, e há as sombras sobre os muros, e o cheiro de um dia quente, e um cão que ladra lá bem ao longe. 

E há as minhas pedras que eu olho como se fossem habitantes deste local, habitantes com tantos direitos como eu, seres de outros tempos.



As minhas amadas pedras que saíram do interior da terra. Estão trabalhadas pelo tempo.
Olho-as como animais ou seres do início dos tempos, guardiãs deste lugar sagrado


Hoje, de tarde, resolvi juntar os livros que reservei para estas férias, os que ainda tenho para ler ou para completar ou consultar, colocá-los sobre uma pedra para vos mostrar. (E depois vou transcrever, ao acaso, uma pequena passagem de cada um, para vos transmitir um 'cheirinho').



As minhas leituras em férias, aqui sobre uma das grandes pedras assentes no chão cheio de folhas


Reparei que me esqueci de juntar o 'A menina é filha de quem?' da Rita Ferro mas talvez seja porque já o li ou, se não é por isso, que venha o Freud e explique.

Passo então a dizer quais são:


> 'Memória breve de Ferreira de Castro' de Papiniano Carlos, editora Húmus


E assim Zéquinha foi forçado a rumar para o interior da Amazónia.

Aqui no Seringal Paraíso, na margem do rio Madeira, consumiu a adolescência em duros trabalhos, miséria, imensa fome, abjecta escravidão. E ainda um medo medonho das flechas envenenadas, mortais, dos índios Parintintins.

Aqui passou, suportou, três anos que jamais esqueceria.

E regressou a Belém do Pará, onde foi empregado de armazém, colador de cartazes, moço de bordo num barco de cabotagem.

*

> 'A praia' de Cesare Pavese, editora Ulisseia, tradução do italiano por Ana Tomás


Mirei-o pelo canto do olho, com má vontade e curiosidade. Berti é daqueles que vão à escola porque os mandam e, quando falamos observam a nossa boca com olhos intumescidos e entediados. Naquele momento, nu e bronzeado, abraçava os joelhos e sorria, inquieto. Veio-me à cabeça a possibilidade de serem, porventura, estes os rapazes mais perspicazes.

*

> 'O retorno' de Dulce Maria Cardoso, editora Tinta da China


O avião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que ele diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos.

*

> 'Caderno de memórias coloniais' de Isabela Figueiredo, editora Angelus Novus


Manuel deixou o seu coração em África. Também conheço quem lá tenha deixado dois automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas, três machambas, bem como a conta no Banco Nacional Ultramarino, já convertida em meticais.

Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta.

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> 'A submissa' de Fiódor Dostoievski, editora Arbor Litterae, tradução do russo António Pescada


Sim, aquele rosto meigo tornava-se cada vez mais insolente. Acreditem, eu tornava-me repugnante para ela, isso estudei-o bem. Mas que ela tinha arrebatamentos que a faziam sair de si, disso não havia dúvida. Como era possível, por exemplo, saída de tanta lama e tanta miséria, depois de ter andado a lavar o chão, começar de súbito a troçar da nossa pobreza? Compreendam: não havia pobreza, havia economia, mas naquilo que era preciso até havia luxo, nas roupas por exemplo, na limpeza. Eu sempre pensei, mesmo antes, que a limpeza do homem seduzia a mulher.

*

> 'Crucifixion' da Phaidon



Craigie Aitchison, oil on canvas, 1997-8, private colection


The small dog which appears in this and many others crucifixions by Craigie Aitchison puts one in mind of Psalm 22, the opening words of which are quoted by Christ on the cross. The Psalm continues: ' Dogs have surrounded me; a band of evil men has encircled me, they have pierced my hands and my feet... they divide my garments among them and cast lots of my clothing'

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> 'A Europa desencantada - para uma mitologia europeia' de Eduardo Lourenço, editora Gradiva


Construir a Europa por irresistível pressão das forças económicas e uma lógica que é hoje planetária, como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme ninguém. Uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tem condicionado o seu destino, contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua sublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade.

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> 'Tempo da Música, Música do Tempo' de Eduardo Lourenço, editora Gradiva



Beethoven, 3ª Sinfonia, dir. Karajan


Karajan dirigindo a 3ª de Beethoven. Como se a orquestra executasse para ele, médium, foco absorvente das vagas da orquestra, e só seu invisível senhor.

Conduz de olhos fechados, como de cor, vivendo no sentido de Baudelaire a música que nasce simultaneamente dos seus dedos e dos músicos. Espectáculo prodigiosamente romântico como se Beethoven ressuscitasse. Sinfonia Heróica? Je veux bien. É de uma melancolia pavorosamente terna, viagem no labirinto da solitude de um ardente coração, o 2º movimento.

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> 'Nova reunião, 23 livros de poesia' de Carlos Drummond de Andrade, edições BestBolso


                     O poeta
                     declina de toda responsabilidade
                     na marcha do mundo capitalista
                     e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
                     promete ajudar
                     a destruí-lo
                     como uma pedreira, uma floresta
                     um verme

*

> 'O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor' de Ruy Belo, editora Assírio & Alvim


                      És e renasces como a pura linha do amanhecer
                      e como o sol primeiro és incandescente
                      rosado de repente e logo a pouco
                      e pouco cada vez mais rubro e mais intenso
                      até à amarela gema de ovo que é o sol ao pôr-se
                      Quanto eu não dava deus por sempre te ouvir rir
                      riso tão fresco como tilintar de loiça
                      Não confies em mim mulher mas desconfio haver de amar-te
                      até ao fim do mundo

*

> 'Amor livre e outras histórias' de Ali Smith, editora Quetzal, tradução de Helder Moura Pereira


Quando estivemos juntas da primeira vez passávamos a vida a ter sexo. A única coisa de que me lembro em relação a esse tempo é que tínhamos sexo, lembro-me como uma névoa de onde ocasionalmente os pormenores emergem com tal precisão que se transformam em farpas, uma névoa de nós duas na cama ou de mim a encostar-me a ti contra o irradiador ou a correr os cortinados da sala da frente ao meio-dia e a voltar para o sofá, tu recostada nele a abrires a camisa, eu a desapertar os botões dos teus jeans da Chelsea Girl. 


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Agora, que estou a acabar de escrever, são quase 3 da manhã e o vento entra pela chaminé da salamandra, fazendo com que a sua porta de ferro bata conforme lá fora ele sopra. Estou ainda a ouvir Beethoven e o som do vento nas árvores e o da porta da salamandra, misturam-se com os acordes da música. Gosto, fica um som agradável, são os sons da minha casa nesta noite ventosa de verão.

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Isto saíu longo (espero que não tenha muitas gralhas porque, dado o adiantado da hora, já não me apetece reler uma coisa tão comprida) e só por despudor vos posso ainda convidar a fazer uma visita ao meu Ginjal e Lisboa. Há algum tempo que o não actualizava. Hoje as minhas palavras movem-se saudosas em torno de um poema de carlos Drummond de Andrade e ao som de Jordi Savall. Se ainda estiverem para me aturar mais um pouco, gostaria de vos ter também por lá.

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E, com isto, daqui a nada é uma bela manhã de domingo.
Espero que seja um bom dia para vocês!