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sexta-feira, outubro 08, 2021

Um novo normal - dias com um cão dentro

 



O dia foi quase normal. Aliás, se calhar, não foi 'quase', foi 'mesmo' normal porque o meu normal agora é o meu 'novo' normal. E botem aspas nisto tudo. É bem verdade, Leitor, um cão muda a nossa vida. Pior ainda se for um cachorro que, na volta, quando veio era ainda mais cachorro do que julgávamos. Diz a médica veterinária que provavelmente tinha sido tirado da mãe há pouco tempo, se não antes do tempo, e que pode ter acontecido que o aparelho digestivo ainda nem estivesse plenamente desenvolvido, adaptado à vida sem a mama da mãe. Não o saberemos. O pastor foi evasivo, disse que achava que, que talvez fosse..., ou seja, na volta, nem dois meses teria.

Conclusão: diarreias e mais diarreias, algumas (para não dizer muitas) dentro de casa. Duas em dois tapetes de arraiolos distintos. Coisa fina, portanto.

Idas ao veterinários várias, rações e latinhas de comida para experimentar o que funciona melhor várias. Medicamentos, análises, sei lá. E eu sempre a fazer figas para que não fique internado como, por três vezes, me disseram que era uma hipótese. Nem quero pensar. 

Uns dias murchinho, quase só a dormir. Depois arrebita e vira a casa do avesso. A casa -- disse bem. De cão de guarda para ficar na rua, em menos de uma semana estava um cachorrinho de casa, coisa mais fofa, bonequinho mais querido da sua dona. 

Agora está mais gordinho e eu fico toda contente quando faz menos cocó, quando o cocó é menos mole ou quando o vejo a portar-se mal. 

E se tem andado a portar-se mal. Como é possível? Esperto que só visto. Digo-lhe: 'anda, vem com a dona'. E ele olha para mim, certamente para ver se é para levar a sério e, depois, quando me vê a ir, lá vem também. Digo-lhe: 'anda beber agüinha' e ele vem e vai beber água.

Quando se apanha sozinho, age por conta própria. Arrasta o saco da ração para o meio da casa, vira a sua cama de pernas para o ar, destrói o caixote de cartão que tínhamos posto a separar a cozinha da sala e aparece-nos deitado ao lado da cama. O meu marido diz que o gajo é escapista. E eu acho que ele é, sem tirar nem pôr, o cão das minhas histórias, o terrível e maroto cão da Princesa Margaret que aparecia sempre onde menos se esperava.

O pior é que também é do caneco. Anda o tempo todo a esgaravatar a terra e a comer tudo o que encontra. Pode ser que as diarreias venham também daí. Ontem, estava no acesso à garagem que é de pedra. Então saltou-lhe mesmo à frente um pinhão, acabado de cair. Num acto reflexo, meteu-o na boca. Quando vi, dei-lhe um grito e ele, antes que eu tentasse impedi-lo, fez um movimento brusco com a cabeça para trás, como quem engole um comprimido sem água. E lá foi o pinhão. 

Quando alguém tenta tirar-lhe alguma coisa da boca, dá sapatadas, rosna, arreganha o dente, tenta morder. Toda a gente se assusta com aquela violência. Dois quilos e tal de cão em que metade é pelo e ali está, destemido e armado em leão. 

Pois bem, antes de ontem, apanhei-o a arrancar uma coisa do chão e a comê-la. 

Já o apanhei com caroços de nêspera, na casa da minha mãe tâmaras velhas, e raízes e toda a espécie de porcarias. 

Mas, então, tentei tirar-lhe aquilo da boca. Supostamente, quando se porta mal, atina se lhe agarramos pelo cachaço como os pais lhes faziam. Então, zanguei-me e fui aplicar-lhe esse correctivo. Eis senão quando o pequeno capeta se virou e me ferrou a mão, de lado, abaixo do polegar. Senti uma dor e, instintivamente, tentei soltar a mão, elevando-a. Pois bem. Veio agarrado à mão. Ou seja, com os agudos dentinhos ferrados na minha incauta mão, voou a metro e tal do chão. Com a dor sacudi-o e ele, então, despenhou-se lá de cima, caindo redondo no chão. Como ali o piso é inclinado, rebolou. Pensei, assustada: não pode ser... matou-se. Afinal, levantou-se meio aturdido, sacudiu-se e ficou como novo. E eu com dois buracos na mão a escorrer sangue. Parece-vos normal? A mim não. Agora tenho aquela zona inchada, meio escura e com dois ferimentos. 

E a brincadeira preferida é mordiscar-me os pés. Salta e corre e eu acho que ri enquanto me mordisca e eu tento escapar, ou correndo, ou sentando-me numa cadeira e colocando os pés em cima de uma cadeira para ele não os alcançar. Hoje, para evitar o desacato, que aquilo arranha e dói, calcei umas meias e substituí as havaianas por uns chinelos que não são de enfiar no dedo. Pois, o safado, ao ver que não tinha a perna ao vivo para se divertir, desatou a latir, a dar gritinhos, todo num frenesim. E puxava e repuxava as meias, uma coisa de não dar descanso.

Estou a ensiná-lo a ficar na cozinha e terraço da cozinha para ver se me deixa trabalhar.

Agora à noite, vindo do veterinário, vim aqui à sala ver o computador, a ver se havia caso. Pois, o danadinho esgueirou-se, deitou-se no chão para receber festa, e, passado um segundo, estava a querer roer os pés do sofá e, pior, o cabo eléctrico. 

E ainda não contei qual a brincadeira preferida: tentar arrancar as franjas das carpetes de arraiolos. Passo-me. Tento convencê-lo a entreter-se com uma corda com franjas que vendem nas lojas para animais mas o brinquedo não oferece os mesmos desafios que dar conta de coisas a sério.

E, note-se, esta sexta-feira faz quinze dias, apenas quinze dias, que vive connosco e, no entanto, os ensarilhanços em que já nos meteu e as peripécias e gracinhas que faz. Acorda-me quase de madrugada, obriga-me a cuidados, faz-me rir, enternece-me.

Portanto, como poderão constatar, este é o meu novo normal. 

Ainda assim, deu-me um daqueles apetites. 
Acho que não estou grávida, que isto é mesmo só gula. Outro bebé agora não vinha a calhar, já basta este mais novo que por aqui anda a dar-me cabo do juízo. 
Então, desviámo-nos -- no meio de uma Lisboa com um trânsito bem assanhado -- para eu ir comer um geladão. Ainda por cima não havia kumquat nem gianduja, os meus preferidos: foi arroz doce e rum com passas, mistura que veio a revelar-se bem virtuosa.

Chegámos de noite. E, porque esta sexta-feira vai ser uma friday à maneira, estive até há pouco a recuperar objectos e ornamentos indispensáveis à minha existência em certos ambientes e contextos. Uma dessas coisas foi a minha aliança. Desde meados de Março do ano passado que não a usava. O relógio também. Sempre que saio, quando dou por mim estou de mãos e braços nus. E gosto assim. São outros tempos pelo que é natural que haja outros hábitos. Mas esta sexta-feira é um dia dos velhos tempos. E eu, nestas coisas, dou muita atenção aos pormenores.

Tirando isso, neste meu dia, pouco mais digno de registo. O que houve foi, para falar curto e grosso, mais do mesmo.

O nobel da literatura foi, de novo, para alguém em quem nunca antes tinha ouvido falar pelo que agora aqui também nada posso dizer. Gostei de vê-lo e ouvi-lo, na televisão, a contar como soube da notícia. É bom quando a gente vê alguém que forçosamente há-de ter algum valor a agir na plena consciência da sua condição efémera e insignificante. Se há coisa chata nesta vida é ter que aturar gente que se acha importante e que se revela inconsciente da sua condição de passageira acidental.

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De Asaf Avidan, Les bal des folles. Peças de cerâmica de Keiko Masumoto

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Peço desculpa por andar a não responder a comentários mas vocês sabem lá o que isto tem sido...

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Desejo-vos uma happy sexta-feira

Tudo de bom: saúde, vida nova, esperança e alegria