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sábado, novembro 23, 2019

Obrigada pela dança



Do centro da terra, do alto dos montes, da curva dos rios, escorrendo da haste das flores, escondido no rasgão do tronco das árvores, no alto da cúpula mais altaneira, no ventre macio de uma mulher, no nome que se esconde de alguém que se esconde, na voz de quem, em silêncio, escreve ou diz um poema, no uivo do lobo na dobra da noite mais fria, no abraço quente de um homem apaixonado, nas palavras nascidas de lugar nenhum, no sussurro insano dos amantes, nas mais pequenas coisas, em tudo, se esconde o sentido do que somos. 

Não estendas a invisível linha do tempo sobre o solo nem a imagines sobre um céu azul e liso, não queiras decifrar a melodia que desponta entre palavras nem o obscuro segredo que se oculta na sombra das palavras. Não há significado ou solução ou, se há, são irrelevantes. O que importa não tem nome, não tem dimensão, não tem matéria. Tudo o que importa é efémero, misterioso, indizível. Tudo o que é importante pousa devagarinho sobre o teu coração e aninha-se na concha da tua mão e procura o amparo do teu abraço e procura o teu sorriso contido e lambe como um bicho sedento e louco o sal das lágrimas que escondes. Pode parecer o sopro do vento, a música da chuva, o som da tua ou da minha respiração, pode parecer a espuma de uma onda, um tronco deslizando sobre as águas, uma palavra deixada por aí, um passo de dança apenas imaginado, o rasto de um sonho, a carícia pela qual eu e o tu ansiamos.

E se tudo nasce de um acaso e é feito de nada e se tudo acaba tornando-se em nada, então não estranhes que festeje o breve instante entre o nada de antes e o nada de depois e respeite o eterno mistério do breve arco e de tudo.

Nem estranhes que me emocione com a elegância, a gentileza e a indescritível beleza de cada momento. Nem estranhes que me deslumbre com as sementes de infinito que se desvendam em vozes que nos chegam dos tempos da infinita luz. 


sexta-feira, abril 26, 2013

Onde se percebe que o realizado e virtuoso Dr. Sotto Aguiar afinal...


No texto a seguir a este falo do discurso tomba-cravos de Cavaco e da preocupação e estranheza que tudo isto me está a causar mas interrompo para, a seguir, falar da praia, de conchas translúcidas como asas que pousam sobre as palavras fantásticas de Clarice Lispector.

Mas isso é a seguir. Agora, aqui, a conversa é outra. Volto ao virtuoso Dr. Sotto Aguiar.


Música, por favor




Achamos que somos diferentes dos outros. Nós, um poço de virtudes, os outros, um manancial de imperdoáveis defeitos. E, se reconhecemos em nós, alguma pequena imperfeição, já nos apressamos a encontrar justificações. A família que não nos apoiou, uma mãe castradora, um pai ausente, irmãos invejosos, chefes autoritários e castradores, colegas desleais. Os outros. Sempre os outros.

Esta falta de isenção e objectividade tem estado na origem de muitas injustiças e muitas irresponsáveis desculpabilizações.

É que os outros somos também nós.

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Sotto Aguiar é um executivo de sucesso, é certo. Tem rendimentos elevados, tem poupanças sólidas, sabiamente divididas por várias instituições, dinheiro a salvo no estrangeiro, uma boa casa na cidade, outra no campo, outra na praia e tem, até, um apartamento em Inglaterra, onde os filhos vivem actualmente. No campo tem cavalos, na praia tem um barco.

No trabalho é reconhecido, elogiado, recompensado. Socialmente está perfeitamente integrado, quer através do desporto que pratica, o golfe, quer através dos grupos de reflexão de que faz parte, quer, ainda, da igreja de que é fiel seguidor. Aquilo de que publicamente se queixa é apenas da brutalidade de impostos que paga e da estupidez atávica deste governo. Sendo um liberal democrata, diz que nunca viu tanta estupidez em tão pouco tempo e defende, alto e bom som, o afastamento deste primeiro ministro. Tirando isso, a vida corre-lhe bem e sente-se um homem realizado.

E, no entanto.




E, no entanto, tanta perfeição também cansa. Sente falta de alguma irreverência, de alguma transgressão. Lembra-se de como era em miúdo, ele e os irmãos, ele e os amigos, as partidas, as noitadas. Nunca nada de transcendente mas, ainda assim, a ilusão de alguma aventura. Agora nada. Sempre chamado a mostrar como se faz, como se pensa, apresentado como um modelo, irrepreensível. Uma seca.

A mulher, também ela, saturada de tanta boa vida, saturada de andar sempre de boa cara, saturados uns do outro. Mal se falam mas acha que nem é por nada, talvez apenas por falta de terem o que dizer, e mal se tocam, o carinho e o afecto já fossilizados. Os contactos quase se resumem as questões funcionais, questões cuja decisão compete a ambos, ou, então, a uma tentativa de disfarçar perante terceiros ou, mesmo, perante os filhos, a falta de chama.

Contudo, continua a gostar dela. Não a trocaria por ninguém, ela é a mulher da sua vida, conhece-a como se conhece a si próprio, sabe o que ela pensa, sabe o que ela sente. Tem ideia que isto talvez seja apenas uma fase normal num casamento (uma fase que tarda em passar). Além do mais, não quereria desestabilizar a harmonia familiar, o ambiente em que quer que os filhos se desenvolvam (e isto apesar dos filhos já não viverem com eles e de já terem mais que idade para perceber situações deste tipo).

Mas porque também não é agradável esta convivência surda e apática, Sotto Aguiar prefere chegar tarde a casa para não ter que enfrentar aqueles fins de dia de pesado silêncio. Não tem paciência para ler, não tem paciência para tanto debate político na televisão, não tem paciência para nada. Ela também anda a chegar tarde, provavelmente pelas mesmas razões, mas apanha-a a olhá-lo de lado como se desconfiada, e ele sem paciência também já para isso.




Gostava de ter com quem conversar, quem se interessasse pelos seus problemas, quem lhe fizesse um mimo, quem se aconchegasse nele. Mas, infelizmente, isso não acontece. Por isso, as noites e o fim de semana em casa são, na verdade, uma seca, uma grande seca, um grande vazio.

Mas, como é sabido, a natureza é avessa ao vazio.

Desde que a Drª Sá Borges, a quem toda a gente trata por Drª Sá ou, simplemente, Sá, entrou, vinda de outra empresa - uma contratação de luxo - e já lá vão alguns anos, Sotto Aguiar sentiu qualquer coisa. Uma rivalidade, talvez. Ou uma embirração. Ou vontade de a apanhar em falso, talvez. Ou uma certa insegurança, é capaz de ser isso. Muito senhora de si, ela, muito intransigente. Muito eficiente. Mas tudo como que envolto numa simpatia que ele acha que é forçada. Mas talvez não seja forçada, talvez ela seja mesmo assim, uma sonsa que disfarça uma certa dose de malvadez. Ou não. Não sabe bem. O que sabe é que, em suma, é uma grande chata. Mas, ao mesmo tempo, contendo um permanente desafio em si mesma. Mulheres bonitas e inteligentes não deixam ninguém indiferente, desculpa-se ele perante si próprio.

Mas ela nunca facilitou. É frequente quase desautorizá-lo em público com os seus apartes, com as suas correcções – embora, com aquele ar de boa pessoa, disfarce as alfinetadas com um sorriso angélico, transbordante de inofensivo charme (e ele sabe que isso só evidencia que é bastante inteligente, na verdade uma adversária temível).

Anos de picardias disfarçadas de sã camaradagem. De vez em quando, contudo, a coisa estalava e os desentendimentos ficavam à vista. Não raramente, quando discutiam, os colaboradores ouviam as vozes que se elevavam, a irritação. Quando se separavam, ele furioso, em silêncio jurando vingança, ela, superior, sorrindo como se nem tivesse percebido a situação desagradável e ele, com isso, ainda mais furioso, a ranger entredentes, ainda as pagas, não perdes pela demora, a vingança serve-se fria, espera pela pancada.

Não raras vezes, quando se reunia a sós com ela e a conversa e as divergências subiam de tom, aquele perfume, aqueles olhos, aqueles lábios, aquelas pernas, aquele decote começavam a fazer o seu caminho rumo aos domínios mais escusos do seu inconsciente. Não o demonstrava, anos de tarimba, e continuava a discutir, a desmontar raciocínios, a tentar vencê-la, mas, enquanto isso, sentia a involuntária reacção do seu corpo. E pensava, que ela não me tope, caraças. Ia ser a grande vitória dela, porra. Mas ela nunca o percebia. Vive para o trabalho, não tem mundo, bonita mas uma santinha, nem lhe deve passar pela cabeça uma coisa destas, tranquilizava-se ele.

E, no entanto.


*

Sotto Aguiar é, aqui, Pierce Brosnan. A música é What other guy de Adam Cohen.

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Relembro que, se continuarem a descer, abaixo deste, há o texto que escrevi há pouco sobre as comemorações do 25 de Abril, sobre a minha ida à praia e sobre o livro que estou a ler, crónicas de Clarice Lispector.

Caso queiram continuar ainda um pouco mais na minha companhia (há gostos para tudo, não é?), convido-vos a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa onde, hoje, pela mão de Manuel Alegre (who else no 25 de Abril?)  me interrogo sobre o início (e o fim) de todas as coisas. A música que se lhe segue é ainda uma grande interpretação de Chick Corea.


*

Por hoje, é isto. E já é sexta feira. 
E o que vos desejo, meus Caros Leitores, é que seja, para vós, um grande dia.
E que tenham saúde, alegria e esperança.

quinta-feira, agosto 09, 2012

Homens, mulheres, piropos, seduções, ambiguidades


Like a man


Adam Cohen - (o filho de seu pai) em Like a Man

*

Nesta fase pós-operatória em que me encontro, tenho que fazer recuperação e, de preferência, em piscina. Assim, fui à procura de uma nesta cidade abrasada, nestes dias de um calor que nos desfaz. Mas, por esta altura, as piscinas fecham para manutenção pelo que não foi fácil descobrir uma que me conviesse.

Finalmente lá a descobri e foi um prazer voltar a poder nadar. Sou bicho de água e se há coisa de que gosto é de estar dentro de água, mergulhar, flutuar, passear-me dentro de água. No entanto, dada a escassez, a piscina estava lotada demais para o meu gosto.




Mergulhei e quando abri os olhos ao meu lado, mas mesmo ao meu lado, estava uma outra mulher. Nadava junto a mim e, não fosse eu saber que não estava numa piscina a fazer natação sincronizada, quase julgaria que os céus tinham despejado ali uma mana gémea para nadar quase colada a mim, repetindo os meus movimentos. Só lhe faltava a mola no nariz. Impudica, quase inconveniente, por pouco não se enlaçava em mim.

Maçada com aquela insólita situação, saí da água e fui-me embora, decidindo que a recuperação, a partir de agora, será feita em seco.

Mas fiquei aguada. Tinha-me mentalizado para uma boa hora de molho, para sentir o meu corpo envolto em água. Não há carícia mais suave do que a da água num corpo nu.

Então, antes de, à tardinha, me dirigir directamente a uma vernissage para a qual tinha sido convidada, vernissage seguida de jantar e soirée dançante, meti-me no carro e, com esforço, conduzi até uma praia praticamente desconhecida. Ninguém. É certo que a noite quase caía mas tanto calor e aquela praia vazia. Tive vontade de me despir toda, de ir nadar nua naquele mar tão convidativo. No entanto, manda a mais elementar prudência que alguns cuidados sejam mantidos. E assim limitei-me a despir a saia.




De resto, mantive tudo e ainda acrescentei uma capeline que, para um just in case, trago sempre no carro e que bem jeito já me tem dado. A minha pele é branca e com este sol, apesar da hora tardia, há que não expor muita superfície de corpo. Aliás, não estando a prever este desvio de rota, nem protector solar tinha levado. E, assim, com as minhas meias de seda preta, cinto de ligas, luvas altas e capeline (noir aussi, what else?) lá passeei pela beira de água, aspirando a maresia que tanto me inspira. 

A quem nunca tenha experimentado a extraordinária sensação de passear numa quase noite de verão, numa praia deserta, quando a aragem se torna suave, quando o ar que se aspira não é salgado mas sim estranhamente doce, digo que é coisa que não se deve perder.

Mas tão encantada estava que acabei por me molhar mais do que devia e, assim, dali acabei por não ir directamente para a festa. A noite podia esperar. Voltei a casa, sentindo-me purificada, baptizada de novo.

Despi-me, tomei um duche para não ir com areia ou salpicos de mar. E, claro, com esse estado de espírito já não fazia sentido ir vestida in black. Tinha que ser branco, virgem.

Quando estou com pressa e não tenho uma ideia bem definida, é um saltar de vestidos do roupeiro que não vos digo nada. A chaise longue que tenho no meio do quarto de vestir fica pejada, pejada de roupa.

Até que lá me acertei com um Dior. Acho que era excessivo para a ocasião mas tenho dias assim, toda eu um excesso. Sabia, claro que sabia, que ia ser olhada de viés, mas quero lá eu saber disso. Até porque se os olhares de viés forem masculinos são (geralmente) muito bem vindos. Discretos, educados, mas, por favor, que existam. E, se acompanhados por um piropo, e se o piropo for dito com inteligência, charme, aparente contenção, tanto melhor. E, se o homem for inteligente e saudavelmente sedutor e, se a mulher estiver para aí virada, até se perdoará algum instante de indiscrição, algum inteligentemente disfarçado toque de mal contido desejo. Tudo dentro dos limites da decência, bien sûr. A menos que a mulher permita e aprecie algum laivo de indecência. Tudo depende das circunstâncias e dos actores. Mas mulher que se dress to impress sentir-se-á magoada se não notar, nos outros, o efeito da produção. Homens apáticos, indiferentes, que - perante uma mulher que notoriamente gosta de seduzir e ser seduzida - se mantenham estupidamente inalterados, continuando a conversar assepticamente e seguindo no seu universo paralelo (isto é, sem qualquer intersecção com o universo da mulher, nem sequer a intersecção do olhar), fazem a mulher sentir-se invisível, desinteressante, nula. E isso é imperdoável.




E, portanto, blanche, vestida com um suavíssimo Dior, lá me apresentei. Bem, não, o vestido não é bem branco, talvez um pérola, mas um pérola muito claro, luminoso. Poderá parecer-vos quente para a noite que esteve mas não. É levíssimo, poroso, e o ar circula livremente em volta do corpo. 

O meu amor, que já estava apreensivo com a demora (... não sei o que é feito do telemóvel pelo que nem o avisei de que ia chegar mais tarde), quando me viu, mal disfarçou a vontade de rir. 

Ia fazer-lhe um ar ameaçador para que nem ousasse dizer qualquer coisa de depreciativo mas corrigi a intenção e dirigi-lhe, antes, um olhar de desafio, de convite.

Viémos de cisne branco...?, sentindo-se incentivado, não resistiu, com aquele ar gozão que me tira do sério.  Não lhe respondi. Entre dentes, continuou, sussurrando, Mais logo tenho que ter o trabalho de te depenar antes de te ... Mas, aí, atalhei, Olha lá! ...E não é cisne nenhum, que ideia! Estava a sentir-me virginal a apeteceu-me vir com este vestido multi-usos. Assim, com ele completo, quase podia ser uma noiva mas, daqui a nada, quando for para dançar, tiro a parte de baixo e fica um vestidinho curto e, mais logo, quando sairmos, se estiver frio, como maravilhoso cavalheiro que és, colocar-me-ás essa mesma parte sobre os ombros, pois funciona também como capa. 

E afastei-me rapidamente antes que ele continuasse. As inconveniências ficariam para mais tarde e, inspirada como estava, já estava a imaginar os piropos que lhe iria arrancar.

Cumprimentei os anfitriões, os restantes convidados, fiz a usual small talk, ouvi elogios, uns sinceros outros nem tanto e senti sobre a minha toilette olhares surpreendidos, censores, incrédulos. 

Decorrido algum tempo, dirigi-me aos aposentos privados para retirar a parte de baixo do vestido que já me estava a aquecer demasiado, especialmente as pernas. 

Quando estava naquela manobra, dobrada, ouço uma inesperada voz, uma voz quase murmurada,  Precisa de ajuda? Estou habituada a lidar com toilettes complicadas, posso ajudá-la a ver-se livre disso. Quer? ... Posso?

Olhei e nem queria acreditar. Entre portas, uma mulher que já tinha visto de longe, também num inconfundível Dior, com uma venda que usava quase como uma máscara, dirigia-se a mim numa pose e num tom de voz muito dúbios, ou melhor, nada dúbios.




Fiquei sem palavras. Mas que era aquilo, senhores...? Ela ali, armada em femme fatale, boquinha de rosa, certamente um Rouge Dior. Pensei, mas querem lá ver...? Só me faltava agora uma destas...

E, então, ouço-a dizer, em voz baixa, insinuante, toda ela sinuosa: Que calor. Hoje, na piscina, sem roupa, estávamos bem melhor, não estávamos...?

Saí de lá quase a correr, com a parte de baixo do vestido meia solta, toda eu ofegante, quase assustada. O meu amor, quando me viu, percebeu que qualquer coisa de extraordinário se tinha passado mas, por mais que insistisse, não lhe contei. Por um lado, havia de gozar até ao fim da vida, nunca mais se havia de calar, e, por outro, a situação ainda era capaz de lhe despertar alguma ideia peregrina.

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As fotografias são de Patrick Demarchelier (nascido em França em 1943), fotógrafo de excepção com trabalhos fantásticos para as principais marcas e revistas de moda. As duas últimas aqui publicadas pertencem, efectivamente, a campanhas Dior.


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E tenham, Caros Leitores, uma quinta-feira em grande estilo. Na piscina, na praia ou no campo, sozinhos ou acompanhados, o que vos desejo é que se sintam bem e se divirtam.