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quinta-feira, maio 28, 2020

A força e beleza dos laços invisíveis que nos unem





Nem em tudo somos estúpidos. Há coisas em que somos extraordinários.

As voltas que damos aos tombos e tropeços em cima da  história -- passos absurdos, passos atrás, passos para o lado e para baixo, passos sem nexo. E, no entanto, por vezes, quase sem querer, aproveitando uma ideia que tinha um outro propósito e fazendo-a voar noutra direcção e, indo ela voando por aí, vai que, sem se saber bem como, abre uma porta e nessa porta nasce uma outra forma de viver. Esta coisa da internet é assim.

Há gente a arrancar fronteiras da terra ou a inventá-las a ferro e fogo, gente a empurrar esfomeados a pontapé, outros a deixar afogar gente amontoada em casquinhas de noz, há gente mentirosa ou que já perdeu até a noção do conceito, há gente idiota que acredita que a terra é plana ou que acredita que há uns deuses pirosos cujos pastores gritam e fazem milagres ao vivo, deuses esses que criaram o ser humano sem passar por evolução coisa nenhuma, gente que mata e esfola, que vive de negócios de sangue. Há gente parva, há gente má, há gente bronca.

Mas depois, inexplicavelmente, há gente inteligente, gente que gosta de equações e da singeleza das leis matemáticas, que gosta de poesia e epistolografia, que sabe de engenharia, que sabe transformar palavras em zeros e uns e desses zeros e uns consegue que renasçam poemas, histórias, músicas.

Há gente a quem devemos novas vidas e novas formas de viver a vida. Há gente a quem nunca agradeceremos o suficiente. 

Hoje, ao fim da tarde, ao sol dourado do belo sunset, eu e a minha filha constatávamos como os dias aqui, in heaven, correm depressa.

Vivemos intensamente cada dia mas, pensando bem, nunca é nada de mais, os meninos felizes da vida, nós apaziguados e na boa, trabalhando, cozinhando, o meu marido, no intervalo da sua actividade, limpando o mato, nós estendendo roupa ao sol -- sem sentirmos falta da vida que antes era a nossa. Nem temos vontade de a ela voltarmos. E, no entanto, apesar de não vermos vivalma que não nós, não nos sentimos isolados. Não estamos isolados.

Por exemplo, agora. Estou aqui escrevendo palavras que, de imediato, se soltam pelos ares, procurando novas leituras, novos espaços, palavras que vão aconchegar-se sob o olhar de quem me lê. E, ao mesmo tempo, até mim chegam-me outras palavras, aforismos, cartinhas, graças, curiosidades, abraços, risos. Um mundo inteiro à mão de cada um. Eterno milagre.

Um merdinhas de nada, um coisinha nenhuma, um enojadinho sem vida própria fechou o mundo em casa, limpou o ar, mudou hábitos, pôs os aviões em terra, fechou fábricas e repartições, atirou com muita gente para a inactividade e desemprego, matou e assustou muita gente. Uma pouca vergonha em que ainda custa a acreditar. Mas, apesar disso, a malta manteve-se unida, descobriu novas solidariedades, percebeu que assim, em isolamento, pode chegar mais longe do que com as pernas e com os aviões, percebeu que o afecto está dentro de nós e não no que nos é exterior. E percebeu que por muitos quilómetros e muitos meses que separem os que se amam, há sementes que germinam incessantemente dentro de nós mantendo a seiva de que a vida se alimenta.

Por vezes emociono-me. Como lá acima disse, há situações que me levam a crer que há estúpidos por todo o lado e que a humanidade não tem salvação. Mas há outras em que, não estando eu à espera, sou surpreendida por mais uma prova de que o impensável é possível e que, se isso é assim, então quantos mais novos mundos desconhecidos estão por aí, por descobrir...?

O vídeo lá de cima é disso exemplo. O palco passou ser a própria casa, o laço que une os músicos é a vontade de estarem unidos, a harmonia e força que testemunhamos é o bocado da sua vida que generosamente nos emtregam. São novos tempos e novas formas de os atravessarmos. E nesta descoberta há muita beleza. E a beleza é geralmente o ventre fecundo da felicidade por vir.

Eu, pelo menos, acredito nisso e essa crença é, para mim, um bom alimento.

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Pinturas de John Humphreys Johnston

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E um belo dia a todos!

sábado, abril 04, 2020

Não sei sobre o que escrever. Muito menos sei que título dar a uma conversa à toa.





Não vou falar do meu dia.

Só uma coisa: é que, no meio da trabalheira, me lembrei de convocar a família para uma vídeoconferência. Como em cada casa há mais que um computador, os dos adultos e o iPad dos meninos -- que na escola já o usam e agora por maioria de razão -- receberam todos convocatória. E, então, foi uma alegria. Na casa do meu filho, os meninos estavam felizes, cada um em seu sítio, conversando uns com os outros por esta via e aparecendo, de surpresa aos outros, para mutuamente se surpreenderem. O primeiro meeting foi a seguir ao almoço mas houve confusão pois um dos da minha filha estava a ir para as aulas. Mas a menina apareceu toda aperaltada. Adorei vê-la. Disse-lhe: 'Mas estás tão bonita, com uma roupa tão bonita...'. Ela, coquette, disfarçando: 'Não, não, nada, apeteceu-me foi pôr umas collants, há muito tempo que não usava...'. Ouvi o pai a dizer: 'Foi, foi...'. O meu marido segredou: 'Não digas nada, não a envergonhes'. A posteriori, tive que lhe explicar que a alegria de perceber que os outros reparam em como nos arranjámos bem às vezes parece timidez. Mas, por baixo do que parece timidez, está a alegria, a motivação para uma próxima vez.


Ao fim da tarde já estávamos todos. O que em tempos era, aqui, por mim, chamado de ex-bebé e que agora já é um menino crescido com nove anos estava a fazer um lego que lhe oferecemos e que os tios encomendaram, por nós, recorrendo à glovo. Gostou do presente. Estava já resignada à ideia de não podermos oferecer-lhe um presentinho, quando os tios se lembraram desta alternativa. Assim, quando ele até estava conformado com a ideia de que, face às circunstâncias, não poderia ter presentes, o meu menino mais querido recebeu vários. Aliás, do lado da mãe, também. É que mal ela pressentiu que isto poderia acontecer, ainda a porca não tinha começado a torcer o rabo, foi logo a correr, num fim de dia, e preveniu-se com o qb para lhe organizar uma festinha e ter presente para o seu 'bichinho'. Entretanto, o menino do meio queria era combinar jogar o fortnite com os primos. Ela mostrou-nos o trabalho que tinha feito de tarde e que me pareceu um cogumelo cheio de brilhantes e que, afinal, era uma menina, creio que com brilhantes no cabelo. O bebé andava à aventura, descobrindo os irmãos, perguntando coisas, radiante da vida. O mais crescido de todos, está cada vez mais um pré-adolescente. Ainda hoje, ao vê-lo numa fotografia de costas, até tive que ampliar, já me parecia um rapazinho crescido, outro que não ele. Meu amor mais lindo.
Foi ele que me baptizou como Tá. Era bebé, ainda não falava e quando eu lá ia a casa, ria, brincava e dizia tá, tá, tá. Um dia a minha filha disse: eu acho que a tá és tu. Não achei, achei que era apenas alegria. Mas, à medida que foi crescendo e dizendo as primeiras palavras, foi ficando cada vez mais claro que a Tá era mesmo eu. E era. E ainda hoje sou.

Momentos bons. Aos poucos vamo-nos habituando a apreciar os sucedâneos, como se estivéssemos a descobrir outras formas de expressar o afecto. 

E esteve sol. Não um sol exuberante mas, antes, aquele solzinho manso que nos faz brilhar os olhos e o coração. Depois do cinzento e do frio que me custou na alma, um dia suave, morninho, aprazível.

Tive reuniões na rua. Via-me no monitor do computador com o cabelo luzindo ao sol, o rosto atravessado pela luz. Do outro lado, ouviram os passarinhos. Senti-me melhor, consegui trazer um pouco do encantamento do lugar para dentro de situações que de encantamento têm raspas.


Na parte da manhã, só me despachei do trabalho bem depois da uma e, antes do meeting familiar das duas, tinha que almoçar e telefonar à minha mãe pelo que foi de raspão que, antes de fazer a chamada, vi os números. Vi o número absoluto dos novos casos e mentalmente calculei que não devia chegar aos 10%. Fiquei contente. Em número absoluto são muitos, os casos difíceis vão surgindo, cada vez mais, os que não resistem também. Mas, se conseguirmos continuar assim, regredindo na percentagem, estaremos a ir no bom caminho e talvez consigamos evitar chegar ao desespero mais absoluto em que, por exemplo, se vive em algumas regiões de Espanha ou Itália. Mas, ainda assim, vai ser muito mau. Quem está mal, está mal durante muito tempo. É daqueles casos em que a matemática também ajuda. Neste caso é a teoria das filas de espera que entra em cena. Neste caso há mais doentes a chegarem aos cuidados intensivos do que a sair deles. Desenvolve-se o efeito de acumulação que, neste caso, tem a particularidade de estarmos a falar de pessoas a precisarem de assistência para respirar e de os que lá estão não darem o lugar a outros senão ao fim de muito tempo (a menos que morram antes, claro). É, pois, fácil modelizar a situação para calcular de quantos ventiladores se vai precisar tal como é fácil perceber que, por muitos que haja, serão sempre poucos.

Caneco. Não queria falar nisto.


Queria falar noutra coisa.

Mas a esta hora estou a ver o Governo Sombra e, uma vez mais, aprecio a sensatez e a honestidade intelectual de Pedro Mexia e a estupidez insanável de João Miguel Tavares. Agora acha que o governo vai ter que dizer em que data é que se vai poder abandonar o distanciamento social. Como se o governo devesse ser mentiroso e estúpido só para lhe agradar. Só um mentecapto pode pensar assim, caraças. E eu a única coisa com que me espanto é por alguém o convidar para emitir opinião. E não apenas o convidam como lhe pagam. Gente, certamente, ainda mais burra que ele.

E, já agora que voltei a descambar para este tema tão incontornável, deixem que expresse a minha estranheza por não ver sinais de solidariedade e compaixão por parte da Igreja. Não digo que não haja, digo apenas que não vejo. Esperaria que os cardeais e bispos anunciassem que os mosteiros e demais edifícios habitáveis tinham sido cedidos para alojar idosos de lares onde surgem casos ou, de futuro, se não houver lugar para albergar infectados ou doentes em recuperação mas ainda contagiosos. Assim como esperaria que a Igreja tivesse já anunciado que padres, freiras, diáconos, acólitos, beatos e demais fiéis tinham sido alocados ao cuidado de idosos isolados em casa, ao cuidado dos sem abrigo e de todos que sejam vítimas indefesas desta droga virulenta. Mas não ouvi ainda nada disso. Não sei o que se passa. Agora que missas e outros ajuntamentos estão fora de questão (e presumo que nem façam grande falta), não estaria na altura dos devotos receberem formação e mostrarem que existem para abnegadamente servir os outros? Mas, na volta, está bem, está.


Bem. Digo que não quero falar nisto e, mal me distraio, aqui estou caída. É que queria era falar do post tão bonito do Steve McCurry, do qual retirei as fotografias e as citações abaixo que aqui partilho convosco: Proud, Strong, Unshakeable: Portraits of Resilence
  • The world breaks everyone, and afterward, some are strong at the broken places – Ernest Hemingway
  • Resilience is the ability to overcome adversity, cope with setbacks, and persevere in the face of  trauma and deprivation.
  • The greatest glory in living lies not in never falling, but in rising every time we fall. – Nelson Mandela
  • The bamboo that bends is stronger than the oak that resists. – provérbio japonês
E queria falar disto porque sinceramente acredito que, no meio da adversidade, da saudade, do medo, do sofrimento, do desespero, das dificuldades e da falta de alento, é necessário que, de dentro de nós, se levante a força que todos temos, uma força mesmo que desconhecida, se levante a esperança, se levante a persistência. Haveremos de chegar a dias melhores. É respirar fundo, olhar pela janela, procurar uma ideia que traga paz e beleza, levantar a cabeça, esperar que melhores dias cheguem -- e acreditar. 


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Um bom sábado. Saúde.

quarta-feira, novembro 07, 2018

Fatal




Fatal. Fatal como o destino. 

Nem mais nem menos. Isto mesmo. E os muito novos que me desculpem. E os muito velhos também, se a indecisão já passar da conta. É que tudo tem que estar no ponto certo. Sou exigente, se calhar um pouco niquenta, na volta ponho defeito onde outros vêem petisco. Mas é o que sou. Dourar a pílula para quê? Não sou perfeita. Orgulhosamente imperfeita, confesso.

E digo isto porque, se me ponho a querer definir, os requisitos parecem demais e parece que contraditórios. Mas são mesmo assim. Especifico. Pelo menos, tento. Comigo nem prato muito cheio, muito vulgar, tempero pouco cuidado, nem coisinha pouca, arte infantil, pratinho vazio com um salpico ao canto e uma ervinha a enfeitar. Não, nada disso. Tem que ter sabor inusitado e muito bom, tem que atrair o olhar, tem que ser na conta certa. E tem que ter beleza, graça, sabedoria, singeleza e malandrice, tem que saber pensar, surpreender-me com as suas metáforas, tem que usar a palavra como se fosse uma espada afiada porém delicada, como se fosse uma flor, um véu, um beijo, uma vénia, uma armadilha, um abraço, um ponto no infinito, um abismo, um afago, um desafio, uma imprevisão, um enlevo. E tem que olhar, saber olhar é muito importante, e, olhando-me, tem que saber desvendar-me. Mas não abusar da descoberta. Tem que ser capaz de guardar segredo. Mesmo que, um a um, vá desocultando os mistérios, tem que deles guardar segredo. E deve ser capaz de ouvir com reverência a música mais pura, o canto mais divino. E deve gostar de árvores, muito. Tanto ou mais do que eu. E tem que saber percorrer a minha pele. Com o olhar, com a mão, com a sua pele. E tem que apreciar os silêncios e tem que respeitar os meus vagares. 

Portanto, não é qualquer um. Não senhor. Tem que ser alguém especial. Raro. E tem que querer ser meu. E, sendo meu, tem que saber ser livre.

Mas mais vale deixar a Adélia falar que ela introduz bem o tema. 

Fatal

Os moços tão bonitos me doem,
impertinentes como limões novos.
Eu pareço uma actriz em decadência,
mas, como sei disso, o que sou
é uma mulher com um radar poderoso.
Por isso, quando eles não me vêem
como se me dissessem: acomoda-te no teu galho,
eu penso: bonitos como potros. Não me servem.
Vou esperar que ganhem indecisão. E espero.
Quando cuidam que não,
estão todos no meu bolso.

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E nada de conclusões precipitadas. Nem tem que ser anjo, nem minotauro. Poderia dizer que talvez in between mas sei lá. Aliás, nem interessa. Nada pior do que definições.

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O primeiro desenho é de Rodin, o segundo de Picasso. Renée Flemming interpreta Sempre libera de Verdi (na Traviata) e Serge Polunin dança como um anjo ao som de Evermore de Kai Engel. O poema Fatal, como referi, é de Adélia Prado.

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quinta-feira, agosto 25, 2016

"Italianos com 18 anos recebem 500 euros para cultura"
- Isto, sim, é uma medida estruturante que eleva o nível intelectual de um país para um outro patamar







Se há medidas que eu acho que moldam o desenvolvimento de um país, que o tornam mais competitivo, mais rico, mais forte e coeso são as que se relacionam com o ensino, o fomento da capacidade de estudar, de investigar e de ousar inovar, e a defesa intransigente da cultura e de uma visão abrangente e inteligente de tudo o que são valores ou recursos culturais.

Não vejo estas medidas como um custo mas como um investimento. E um investimento de alto e rápido retorno.

Agora -- já aqui aboletada no meu sofá mágico, fresquinho como uma suave barca, apanhando de feição a aragem da noite -- ao folhear os onlines, deparei como uma notícia no DN que instantaneamente me fez ficar rodeada de estrelas. Estrelas virtuais, claro, mas igualmente luminosas e felizes.

Transcrevo, fazendo votos para que Portugal adopte esta ou outra medida semelhante:




Era uma promessa eleitoral de Renzi que, soube-se hoje, começa a tomar forma. 


Foi aprovado o "abono da cultura", isto é, 500 euros que podem ser usados pelos jovens italianos (ou com visto de residência) em atividades e produtos culturais.


Não se trata de um cheque passado em mão a todos os jovens nascidos em 1998, mas de uma aplicação que se descarrega nos telefones móveis, chamada 18app. Uma vez registados, os jovens começa a ter acesso a este plafond. 


O sistema entra em funcionamento no próximo dia 15 de setembro, coincidindo com o regresso às aulas, e é válido até 31 de dezembro de 2017.


Com este fundo de maneio, os jovens poderão aceder a museus, parques arqueológicos, teatros, cinemas, concertos, exposições, mas também livros, segundo o ministério dos Bens Culturais italiano, promotor da iniciativa e, ao mesmo tempo, responsável pela escolha das propostas culturais que farão parte deste pacote.

Dados divulgados pelo ministério da Cultura italiano, a iniciativa deverá abranger 574 593 jovens e corresponde a um investimento de 290 milhões de euros que sairão dos cofres do governo.

O investimento "envia uma mensagem clara: o de uma comunidade que dá as boas-vindas à idade adulta recordando o importante que é o consumo da cultura para o enriquecimento pessoal e para fortalecer o tecido social do país", disse o subsecretário do Conselho de Ministros, Tommaso Nannicini.

No próximo ano, o governo de Matteo Renzi pretende alargar a proposta a todos os professores.


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Ao som do Va pensiero da ópera Nabucco de Verdi (1842), aqui interpretado por Pavarotti e Zucchero, para exemplificar de forma rápida a forma como a cultura abre as mentes para a diversidade e para a aceitação de diferentes visões sobre a mesma realidade, apeteceu-me mostrar o mesmo S. João Baptista respectivamente por:
  • Leonardo da Vinci 1513
  • Caravaggio, 1602
  • Giovanni Francesco Guercino (Barbieri), ~1645
E porque a defesa da cultura nacional não deve ser encarada de forma chauvinista, o mesmo S. João Baptista mas agora segundo um francês
  • Rodin, 1878–1880
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Por isso, alô, alô Tim Tim no Tibete!
Siga o bom exemplo de Renzi e ponha os nossos jovens a apaixonarem-se pela nossa cultura, va bene?

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma saudável, sortuda e alegre quinta-feira.

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sábado, abril 30, 2016

Não são 20 anos, são alguns mais, mas até podiam ser só dois -
Palavras na praia ao fim do dia e divagações nocturnas




Podia pôr-me para aqui a descrever o meu dia mas, se fosse fiel aos factos, achariam que estou a ficcionar. Uma vez descrevi quase ipsis verbis um cena decorrida numa guest house fantástica onde tinha passado o dia. No meio encaixei um príncipe árabe só para introduzir uma pitada de ficção. Pois parece que ninguém estranhou o príncipe árabe mas acharam que o resto era invenção, tenho ideia que até falaram em mania das grandezas, ou nova-rica, uma coisa nessa base, que me punha a inventar situações que jamais em tempo algum poderia viver. 

Desde essa altura, em certas situações, passei a ter cuidado com a minha sinceridade: não vale a pena que pensem que sou uma deslumbrada que se põe para aqui a inventar que frequenta alguns ambientes. Não tenho necessidade de inventar, tal como não tenho necessidade de ouvir remoques ou dúvidas sobre a minha sinceridade. Pode ser que um dia, esperemos que ainda com a memória em bom estado, me dê para contar algumas memórias. Acho que são de tal calibre, que a coisa é muito bem capaz de ter público.

Já pensei até em inventar histórias decorridas em alguns dos lugares que, volta e meia, frequento, e misturá-las com situações reais. E, se me permitem a sinceridade, penso até que poderia escrever histórias eróticas e depois filmá-las nesses lugares que são geralmente inacessíveis ao público e que são lindos para além da conta. Se a história ou os artistas não fossem grande coisa, salvar-se-ia o décor.

Adiante. Já estou a delirar.

Assim sendo, passo por cima do que vivi hoje desde que me levantei, bem cedo, até que cheguei a casa ao entardecer, calcei uns ténis e, com o meu namorado, zarpámos para a praia ainda a tempo de ver o sol a pôr-se e os pescadores da arte xávega a venderem, no areal, o produto da sua pescaria.


Por lá andámos até há pouco, jantámos, passeámos. Há mil anos atrás também andámos pela praia, não nesta mas numa outra igualmente bonita.

Tirei fotografias ao mar, aos pescadores, aos passeantes solitários e ao meu namorado. Ele também me fotografou a mim. Agora, ao ver as fotografias, ainda pensei fazer um corte vertical, meio corpo de alto abaixo, a começar no pescoço, e, desta forma, mostrar-vos um pouco de mim. Mas depois achei que ideia mais estúpida não podia haver e, portanto, rapidamente me esqueci. Mas tive uma outra ideia parva, quando estava por lá. Pedi para o meu marido se pôr ao meu lado, que eu ia fazer uma selfie. Não queria, claro, diz que não é maluco. Mas dada a data especial, resolveu fazer a gentileza. No entanto, fazer uma selfie com uma máquina fotográfica, grandona, às cegas, só podia dar uma xaropada. Apanhei-nos aos dois, vá lá, mas perto demais, a cara meio distorcida, um desastre. A nossa primeira selfie e isto, parece que nos pusemos em frente de um espelho deformador. Estive vai não vai para apagar mas depois achei que não, afinal é um documento histórico.

Reparem nas nuvens densas, compactas, que se tinham depositado sobre Lisboa que, na fotografia mal se vê


Agora que estou em casa -- a milhas mentais do meu dia tão incrivelmente preenchido, vivido naquele ambiente lindo, lindo, lindo, tão lindo que amorteceu os momentos complicados que aconteceram -- mas ainda com as imagens da praia ao anoitecer (tão linda a praia nestes momentos) bem presentes, já passei as fotografias para o computador; mas estou tão verdadeiramente cheia de sono que acho que hoje não consigo mesmo dizer muito mais do que este nada que para aqui estou a escrever.

Não sei se há novidades no país, não ouvi notícias e tenho preguiça de as ir procurar, não consigo ir ler os jornais online, imagino que seja treta sobre treta, nem quero saber da pancada dos jornalistas que parece que andam e enfiar a cara em sacos de plástico para cheirarem cola e que, por isso, alucinados, em vez de quererem saber das medidas concretas que estão a ser equacionadas no plano A, preferem navegar na maionese e andam, de lanterna em punho, a ver se descobrem gambozinos para os irem plantar num qualquer plano B. Não há pachorra para tanta palermice. Por estas e por outras é que, apesar de a política ser coisa que me interessa, não consigo imaginar-me a exercer cargos públicos: é que não teria paciência para aturar tanta parvoíce, ou da parte de deputados que parecem atrasados mentais ou vulgares trauliteiros ou da parte de jornalistas que parece que padecem de qualquer coisinha má que não os deixa pensar normalmente.


Pronto. Para não ir para a cama sem ter passado os olhos pelas novidades, fui à Marie Claire. Ao menos, por ali, nunca dou com nada que me faça afinar. Como estamos a entrar num mês novo, têm o horóscopo. Não sendo eu lá muito boa da cabeça, volta e meia gosto de ler os horóscopos.

Portanto, reza assim para o meu signo, para este mês de Maio:

Sentimentos

Filosofia, espiritualidade: Vénus reserva-lhe contactos ricos e reencontros inesperados. Eles criarão amizades... ou mais, consoante a sua vontade.



Vida social

Vão discutir-se projectos nos quais você vai aplicar força e fantasia. Com sucesso, na condição de evitar o psicodrama. Mantenha-se confiante.


Parece-me credível pelo menos na parte que reconheço. No que se refere a reencontros inesperados, ligou-me no outro dia um grande amigo meu, de quem já falei aqui várias vezes e com quem não estou há algum tempo. Como para a semana que passou já tínhamos ambos a semana muito carregada, combinámos que vai ligar-me esta semana para combinarmos irmos almoçar e pormos a conversa em dia.

No que se refere a projectos, ando no meio deles, enfiada até ao pescoço, e imprimo-lhes criatividade e vontade de ir além do que os que trabalham comigo esperariam. E, esta semana, uma pessoa que trabalha comigo e que está com uma depressão tramada, sobretudo por grandes problemas pessoais, entrou-me no gabinete, num pranto compulsivo, a pedir-me que a ajudasse, e durante um tempão chorou, desabafou, desabou, e, fez-me, ao longo de todo esse tempo, desarrincar argumentos para a convencer a que visse a vida com esperança, que relativizasse, etc. No fim já sorria e dizia que se sentia melhor. Em contrapartida, eu fiquei extenuada (mas, claro, não lhe disse que tinha ficado, eu, de língua de fora).

Bem, já chega de conversa. Já devem estar fartos. Credo que, mesmo com sono, desato a escrever e pareço uma tagarela, senhores.

Tenho ainda que agradecer os comentários e os mails. Não tomem por falta de educação eu não agradecer a cada um de vós mas estou a dormir enquanto escrevo, dou por mim a escrever de olhos fechados. Mas, a sério: muito obrigada a todos.

Amanhã logo respondo ao comentário do notário ou do conservador. Eu explico (se é que há explicação) mas, primeiro, quero perguntar uma coisa à minha mãe.

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Para terminar em beleza:

Lunge da lei - De' miei bollenti spiriti

La Traviata - Verdi; Anna Netrebko, Rolando Villazon

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Na praia, enquanto jantávamos, lembrei-me dos 20 anos do Patxi Andión e pedi que ele me dissesse. Disse. Gosto tanto que me digam palavras assim. E, nesta sexta-feira, soube-me bem ouvi-lo a dizer :

20 años de estar juntos
Esta tarde se han cumplido
Para ti flores, perfumes
Para mi, algunos libros
(...)
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.
Desejo-vos as maiores felicidades.

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quarta-feira, dezembro 30, 2015

Homens versus Mulheres
- descubra algumas diferenças e veja como juntos ganham outra graça
[E uns pós sobre mais esta agora dos investidores institucionais do BES poderem perder para cima de 2 mil milhões de euros]






Não sou grande frequentadora de blogs mas tenho a impressão que esta coisa das diferenças entre mulheres e homens deve ser, nesse fértil terreno, explorada à exaustão. Por isso, originalidade sobre o tema é missão impossível. Tenho também a ideia de que, se a coisa é escrita por homens, o objectivo é depreciar as mulheres. E vice-versa. Pois aí talvez eu consiga ser vagamente diferente porque não consigo alinhar nessa dicotomia e, sobretudo, por deformação formativa ou profissional, não consigo (nem em registo de conversa parvinha) fazer generalizações abusivas. 

Já muitas vezes aqui o disse: vivo, em grande parte, num mundo de homens -- e dou-me bem. 

Mesmo quando andei no liceu as turmas em que andei tinham para aí 10 raparigas e vinte rapazes. Mas nem é apenas dessa altura eu ter, como melhores amigos, os rapazes: isso acontece desde sempre. A minha grande amizade de infância não foi com outra menina: foi com um rapaz que era um ano mais velho que eu. Não é que eu fosse ou seja de tipo maria-rapaz. Não sou, antes pelo contrário. Sou muito feminina em tudo. Contudo, prefiro conversar com homens. Ainda hoje estive para aí uma hora ao telefone com um amigo. Falamos com uma proximidade enorme e não existe reserva no que dizemos.

O meu marido vai adorar esta!
Quando andei a estudar na faculdade, havia uma infestação de alunas, quase tudo umas marronas maçadoras. Claro que, por isso, tirando talvez aquela alentejana desempoeirada e extrovertida de que no outro dia falei, não conseguia manter uma conversa com aquelas chatas. Eu queria combinar ir ao cinema ou ver uma exposição ou passear e elas só falavam de dúvidas, de trabalhos, daquela matéria que eu via como poética e que elas viam como um calvário que era preciso percorrer. Por isso, nesse período eu enturmava-me sobretudo com um colega de outro curso, com o meu namorado da altura e com o que veio a seguir ou com os estudantes africanos. Havia um grupinho de colegas raparigas com quem ainda havia alguma afinidade mas nada por aí além: trocava instintivamente a companhia delas pela dos rapazes. Quando dei aulas, as professoras também, em geral, eram conflituosas ou desinteressantes. Uma ou outra mais divertida (e lá encontrei de novo essa tal outra colega) mas, uma vez mais, era com um colega que eu mais me enturmava, um bem apessoado sindicalista. 

Segundo um estudo da
Universidade de Wayne State é isto
mesmo que acontece: ao fim de pouco tempo
de separação os
homens sentem-se tristes e as mulheres libertas

A seguir, quando comecei a trabalhar em ambiente empresarial, quase tudo homens. Íamos num transporte dedicado, uma carrinha, e era eu e uns vinte homens. No local de trabalho, quase só homens, no refeitório idem. Nas reuniões,  eu a única mulher. E sempre na maior. Nunca tive que me masculinizar nem eles nunca me trataram com menos respeito.

Até me faz lembrar os meus filhos:
ele vai de vez em quando a um sítio barato,
dá uma rapada quase total:
ela faz um filme, gasta uma nota,
e vem igual

Uma das coisas maçadoras do convívio social com os meus colegas é que, quando levam as mulheres, eu levo o meu marido. E ele, naturalmente, enturma-se com os meus colegas e falam de política, de geo-estratégia, de história ou, na pior das hipóteses, de futebol. E eu, por uma espécie de sentimento de dever, fico no grupo das mulheres. E elas, regra geral, falam de empregadas, de assuntos domésticos, e, como parte são professoras, falam da falta de educação dos miúdos e da falta de educação dos pais dos miúdos. Tem graça mas, de forma geral, a conversa gira muito em volta disso. Salva-me uma que é médica (em S.José!) e que é maliciosa até dizer chega, quase fazendo corar o marido que, sendo um malandreco, ao pé dela parece um menino do coro. E vale-me também uma outra, pessoa conhecida, misto de cientista, de empreendedora e de crazy girl, que dá conta da cabeça do marido (e da cabeça do meu marido também, que a acha doida varrida). Mas, se essas não estão, dou por mim a fazer um esforço para não me raspar para o pé deles na primeira oportunidade. No entanto, quando me vejo na conversa, no meio de um bando de homens, penso que as mulheres deles podem achar isso estranho. 

Outra que confirmo:
apesar de ter um cabelo farto e forte,
vejo sempre se há algum shampoo milagroso
(nem sei para fazer que milagre);
o meu marido usa o gel de banho.

Enfim.

Portanto, resumindo: conheço razoavelmente quer a mentalidade quer o comportamento dos homens. E acho-lhes graça. E acho que a maneira de ser masculina e feminina se complementam, que os contrastes dão, por vezes, à vida sal e pimenta e, por outras, açúcar, mel e suaves licores. Ou luz e exaltação, por vezes, ou sombra e recato, por outras.

Quando às vezes penso que, para descansar o corpo e o espírito, não me importava nada de viver durante algum tempo num convento, ocorre-me logo que ou era em silêncio (coisa que não sei se suportaria durante muito tempo) ou, então, não descansaria enquanto não me visse livre de tanta mulher. Em contrapartida, não me importava nada de viver durante uns tempos num convento masculino. Se tivessem lá um coro gregoriano, então, havia de ser como viver às portas do céu. Não sei é se admitem mulheres-turistas num convento só de padres. Conventos mistos acho que ainda não há. (Ora aí está um belo nicho de mercado).

Adiante (que quero ver se chego ao fim do post sem pisar o risco).

Vem isto a propósito de, no outro dia, por mail, um Leitor , a quem agradeço, me ter enviado dois desenhos que ilustram o comportamento típico masculino ao comprar sapatos, que é racional e minimalista, ao passo que o das mulheres é caótico, quase delirante.


O meu marido é deste género:
o objectivo parece ser comprar
sapatos sempre iguais e só compra uns quando os anteriores estão velhos

Isto parece a conversa entre mim e o meu marido quando compro sapatos:

se deitasses fora os que não precisas, talvez tivesses onde arrumar esses;
ou:
não tens uns quase iguais a esses?
ou:
se em vez de comprares tanta porcaria, comprasses sapatos de jeito, bastava-te um par.

(Tenho que fazer um grande esforço de abstração para não ir na conversa dele)


Entretanto, vi uma coisa do género e fartei-me de rir: refiro-me aos desenhos com que fui enfeitando o texto provêm do Bright Side. Tudo verdade o que ali se descreve. Mas sou incapaz de, colocando os comportamentos lado a lado, dizer que um é melhor que o outro: são diferentes, e é na diferença que reside a graça. Eu, pelo menos, assim o acho.
...   ...

CASOS PRÁTICOS

1.

Um homem que sabe amar uma mulher

Até que tu vieste provisoriamente 
encher da tua ausência um coração 
que só a fome alimenta 
Até que tu poisaste tão serenamente 
como a tardia folha que tem 
insaciável vocação de chão


.....

2.

Um homem e uma mulher aprendendo-se e desaprendendo-se -- num telhado de zinco quente


 .....

3.

Um homem e uma mulher aprendendo-se num espaço e num tempo só deles

...   ...
  • Lá em cima Anna Netrebko e Rolando Villazon são o par que se diverte, interpretando A Traviata de Verdi. Um prazer a dois, um prazer total.
  • Eunice Muñoz e Pedro Lamares dizem Ruy Belo. Mais um prazer a dois, desta vez temperado com palavras.
  • Elizabeth Taylor e Paul Newman vivem os altos e baixos de uma paixão encalorada em Cat on a Hot Tin Roof. Um tempestuoso prazer a dois.
  • Por último os bailarinos do English National Ballet, Erina Takahashi e James Forbat, numa coreografia de James Streeter, dançam um delicioso mano a mano: Bohemian Rhapsody dos Queen. Um prazer a dois, um prazer em que os corpos se entregam um ao outro outro, sem peso, sem sombras.
....

Esta nova tranche de resgate do Novo Banco, agora à custa dos credores obrigacionistas institucionais, mereceria aqui uma referência. É assunto que, apesar de ser, porventura, uma opção mais equilibrada face à alternativa de ir fustigar, de novo, os contribuintes, também não é isenta de dor para quem perde o dinheiro, nomeadamente para as empresas que tinham investido em obrigações do tipo das que agora, quais sardinhas de volta ao prato, regressam ao BES para se transformarem em nada.

Claro que, no meio da desgraça, há sempre uns quantos que, mal ouvem isto, esfregam logo as manápulas de contentamento: os grandes escritórios de advogados. A esta hora já deve reinar a efervescência. Processamos os gajos!
Contudo, hoje vinha com esta encasquetada e preferi converseta simples, música, dança, cinema e poesia a pôr-me com uma prosa enfadonha metendo números, bail-ins, regulações que são umas ceguinhas do caraças, gente que mente com quantos dentes tem na boca e etc. Talvez amanhã se estiver para aí virada.

Só de me lembrar que caíu o Carmo e a Trindade quando António Costa falou numas quantas surpresas que Passos Coelho e Maria Luís andavam a esconder: que não senhor, que com eles era tudo transparência. Está bem, abelha. Só trapalhices, lixo debaixo do tapete. 

O que eu, no meio da desgraça pegada em que estava parte do sistema financeiro português, só espero é que -- com este incompreensível mega-desastre do Banif e com, agora, mais esta bola a sair do saco, a capitalização necessária do Novo Banco -- se limpe de vez tudo o que há para limpar. É que já não há pachorra. Cambada. Espatifaram dinheiro como manteiga em focinho de cão. É que se há mais alguma bronca para rebentar que António Costa trate já de apagar o fogo, a ver se, depois, se deixa a economia funcionar como deve ser, sem ter que andar a alimentar o sorvedouro que são estes bancos privados tão maravilhosamente geridos. Caraças.
...

Para os que ontem não repararam, sempre publiquei à hora de almoço, um post com dois stripteases para que as Leitoras possam avaliar qual se adapta melhor a si e para que os Leitores possam escolher qual o tipo de strippers que mais apreciam.
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Bem, por agora por aqui me fico.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira. 

terça-feira, junho 16, 2015

Sérgio Figueiredo sobre José Sócrates na prisão -- um texto que é um murro no estômago [E ainda Francisco Louçã que, sobre este mesmo assunto, diz que 'esta justiça mete medo'; e, para aquele que um dia disse ser um animal feroz, Faces of the Wild e Va, pensiero].


Va, pensiero, sull'ali dorate;
va, ti posa sui clivi, sui colli,
ove olezzano tepide e molli
l'aure dolci del suolo natal!





Quando José Sócrates recusou usar pulseira electrónica, logo um conjunto de apreciadores de animais rastejantes ou invertebrados veio dizer que o que ali se via era vitimização. Pessoas há que, talvez desabituadas de assistir a actos de coragem ou de simples dignidade, tentam encontrar uma vantagem mercantil no que é, tão só, uma manifestação de carácter.

Várias vozes insuspeitas se têm levantado contra a prepotência que leva a que, sem culpa formada e supostamente para investigar, numa deriva que parece delirante, se mantenha um homem encarcerado como se de um perigoso condenado se tratasse.

Muitas vezes aqui o tenho dito: não sei se Sócrates é culpado de alguma coisa punível por lei. Torço para que não seja. Se for, ficarei furiosa com ele -- e comigo, por ter acreditado nele. Mas -- e sei que estou a repetir-me -- até que a Justiça se exerça, ele, tal como eu ou você, Caro Leitor, somos, à face da lei, inocentes. Portanto, independentemente de se vir a apurar a sua culpabilidade ou a sua inocência, o que agora me assusta é a forma despótica como ele tem sido tratado.

E, quando falo nele, falo por ser o preso preventivo que conheço dadas as funções que ocupou. Provavelmente esta mesma prepotência é exercida contra muito mais pessoas, muitas da quais, se calhar, depois, não são condenados nem sequer acusadas. E, portanto, insurjo-me por ele, porque o conheço, mas insurjo-me igualmente por todos os que se encontram ou encontraram na mesma situação.

Imagino-me, a mim, numa situação destas e fico apavorada: poderia acontecer que um qualquer inspector suspeitasse de mim, me pusesse sob escuta, ouvisse todas as minhas conversas, tudo, as minhas conversas mais pessoais, as minhas conversas de trabalho, tudo, tudo, e depois resolvesse que, para poder espiolhar ainda melhor a minha vida, me deveria prender? Poderia acontecer que eu me visse desprovida de tudo, da companhia dos meus, dos meus mais básicos pertences? Poderia isso acontecer-me? 

Sendo eu uma vulgar cidadã, teria uma vantagem sobre Sócrates: quando me deslocasse não teria as televisões a seguir-me e os meus amigos e familiares não seriam inquiridos à porta da prisão. (Quanta devassa a que estas pessoas têm estado a ser sujeitas...)

Como se sobrevive a uma desgraça destas? Quem não tenha posses, sem trabalho, a ter que pagar a advogados, como sobrevive? E como se sobrevive à humilhação de se saber injuriado nos jornais e não se poder defender? Como se sobrevive, sabendo o sofrimento da família, dos pais, dos filhos? 

Não sei.

Se a lei permite isto, então a lei tem que ser mudada. Os cidadãos não podem estar desprotegidos a este ponto. Não me interessa quem foi o ministro ou o governo que aprovou a lei em vigor. Tudo se corrige, em especial as burrices.

Nem me interessa que distorçam o que digo -- nomeadamente que venham dizer que o estou a defender ou que quero tratamento privilegiado -- não me interessa mesmo nada. Leiam bem, leiam com atenção. Eu digo o que acho que devo dizer. Sou a favor da justiça, da liberdade, da democracia. Não consigo ficar calada quando assisto a violações de qualquer destes pilares de um mundo decente.

Como é que não há muitas mil vozes que se levantem para clamar por isto? E que cobardia é esta que parece ter tomado conta dos socialistas que, assistindo a uma coisa destas, se deixam ficar calados? Acharão que ganham mais votos se calarem a voz sobre a vergonha que se está a passar neste nosso desgraçado País?
Coitados. Não sabem que a Pátria não paga a traidores? Nunca pagou. Nunca pagará.

O que sei é que as vozes que mais alto se têm levantado provêm de outros quadrantes políticos.

Por exemplo, disse no outro dia Francisco Louçã no Público num artigo a que deu o título Há alguém por aí para enfrentar a triste degradação da justiça? e que Eduardo Pitta resumiu no seu blog Da Literatura.


«[...] Sugiro ao leitor que se mova então pela única certeza que podemos ter: este processo está a ser conduzido sem respeito pela justiça ou até pela decência. Não há acusação e passaram meses, não há acesso da defesa aos documentos e provas e isto ainda se pode prolongar mais uma eternidade [...] o caso Sócrates importa menos do que esta regra geral: esta justiça mete medo. [...] E isso já é com os candidatos – os das legislativas e sobretudo os das presidenciais. Digam-nos o que querem fazer ou fiquem de lado, porque se estão calados então não têm solução para os problemas de Portugal. É uma questão de regime, é mesmo convosco, senhores candidatos e senhoras candidatas.»

O, mia patria, sì bella e perduta!
O, membranza, sì cara e fatal!



Mas de tudo o que tenho lido, o que talvez me tenha impressionado mais foi o artigo de Sérgio Figueiredo desta segunda-feira. Diz que, depois de ter falado com Sócrates, saíu da cadeia em silêncio, e acredito. Há momentos em que não há palavras. E esse seu silêncio pesado transparece nas suas palavras. Transcrevo parte do seu texto.

(...)

2. Não devo nada a ninguém. Muito menos a Sócrates. Ao contrário de outros, outrora amigos, eternos da onça, que se escondem entre as frases ocas que proferem e as visitas que não lhe fazem. Partido cobarde, partido escondido, partido assustado. Nem é sequer o partido relativo, dirigentes de O"Neill, engravatados todo o ano, que se assoam à gravata por engano.

Não há engano entre os socráticos, apenas cálculo mental. Contas sem valores. Quantos mais votos contam, quanto mais puxam pela cabeça, mais o rabo se lhes descobre. Mais impressionante que a coragem de Sócrates em permanecer dentro de uma cela, entre delinquentes, é a falta dela em António Costa e na maioria dos dirigentes socialistas, que deliberadamente confundem justiça com amizade. Esperava mais, porque já lhe vi mais.

Salvo raríssimas exceções, mostram a sua raça num silêncio ensurdecedor que envergonha mesmo aqueles que detestam Sócrates. Miguel Sousa Tavares, Pedro Marques Lopes e até o "comuna" Pedro Tadeu, como se autodefine, insuspeitos colunistas, que não pertencem à família, nem de perto nem de longe, escreveram nesta semana a indignação da forma que nunca se ouviu em qualquer camarada do Rato. Um barco cheio deles, com um comandante à deriva - ou preso, porque o último líder do PS está no Alentejo e, espera-se!, a aguardar pelo dia em que responderá por corrupção e outros crimes graves.



3. No fim de contas, a entrevista não aconteceu. Às 22 perguntas que a TVI tinha para fazer José Sócrates não quis responder. Não tinha tratado pessoalmente do assunto, mas acabei por ser eu a confrontá-lo com elas. Entrar numa prisão não é uma experiência agradável. Visitar um ex-primeiro-ministro preso é um momento único, difícil de esquecer. Ou simplesmente difícil. Estivemos, eu e o meu camarada de redação António Prata, uma hora lá dentro. Conversa dura, ouvindo o que não queríamos, dizendo o que não podia ficar por dizer.

Conversa feroz, animal enjaulado. Ninguém ousa sentir o que um prisioneiro sente. Sei o que senti e imagino o que António Prata viveu. Saímos de lá em silêncio - a única palavra que repetia para si próprio, mas em voz alta, é aqui irreproduzível. Saímos mais pesados, sem entrevista, mas saímos. Uma hora depois. Não seis meses.

Sócrates pode ser mentiroso, pode ser odiado, pode ser odioso, pode ser intratável, pode ser malvado, pode ser acusado, julgado e condenado, pode ser corrupto - pode ser tudo o que magistrados têm o dever de provar e um juiz de julgar, seja o que for. Não é, porém, de nada disto que se trata quando um homem, naquelas condições, se recusa ir para o conforto da casa e a companhia dos filhos. É coerência, se estiver inocente. É coragem, em qualquer dos casos. Aquilo que fugazmente vi não paga arrogância ou o preço da vitimização.

Não temos pena. Apenas pânico - se a investigação judicial falhar e a acusação não produzir provas consistentes. E pejo - pelo nojo dos políticos surdos-mudos em que em breve vamos ter de votar.




Va, pensiero, sull'ali dorate
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O texto completo da autoria de Sérgio Figueiredo, intitulado A entrevista que não aconteceu, foi publicado no DN.


A música mostra Luciano Pavarotti & Cambodian and Tibetan Children's Choir interpretando Va, Pensiero de Verdi.

E, pensando naquele a quem, apesar de estar encarcerado, ainda chamam animal feroz, escolhi para ilustrar este post fotografias da autoria de Devin Mitchelle e que pertencem à série Faces of the Wild e que descobri no Bored Panda.
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Permitam que vos convide a descer até ao post seguinte onde poderão ver meio mundo de cabelos em pé com o que se vai sabendo do 'negócio' da privatização da TAP e, mais abaixo, um vídeo impressionante com Berlim em Julho de 1945 (para que o que aconteceu nunca seja esquecido).

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira. 
Da minha parte espero manter-me sempre como nas palavras de Sophia: 
face erguida, vontade transparente, inteira onde os outros se dividem. 
Desejo que vocês, meus Caros Leitores, também.

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terça-feira, março 11, 2014

Em casa e cá fora in heaven. Eu e os azulejos. Há quem goste de pintura e poesia e se fique pelo amor platónico. Eu não: eu sou toda pelo amor passado à prática.


Estou aqui a balançar entre continuar a escrever sobre alguns temas da actualidade ou em dar seguimento àquilo de que ontem vos falei.

Mas quero honrar compromissos e, portanto, largo as palhaçadas miguel-punhistas, o bicho dalmatiano rangélico-birrento, e alguns dos dramáticos efeitos colaterais da gestão laparosiana e parto para o campo.

Se quiserem ver e ler sobre essas ridículas figuras e, depois, arejar as ideias, voltando a Lisboa, a bela, ao som de Mignonne, allons voir si la rose, quando acabarem este que estou a escrever vão descendo, por favor, até se aproximarem do Tejo.

*

Não será ainda hoje que mostro a alegria dos meus pimentinhas à solta in heaven. A noite vai longa e isto já vai para além da dose. Por isso, hoje limito-me a mostrar um pouco do local onde está muito de mim.

Venham comigo que eu vos conto. 

Vai pensamento






*

Tenho sempre muitas ideias. Frequentemente não as posso pôr em prática. Vivo inserida em organizações onde nem todos andam à mesma velocidade e no mesmo sentido e, por isso, é normal que todos tenhamos que fazer cedências. Faço muitas. No trabalho ou na sociedade tenho, muitas vezes, que me esforçar por me acomodar. No outro dia, um psicólogo perguntava-me 'e consegue manter-se motivada?'. Consigo. Não posso fazer uma coisa, viro-me para outro lado, faço outra.

Mas, na minha casa, sou rainha e senhora. É certo que há um rei e o rei muitas vezes dá muita luta, ó se dá, mas, enfim, ainda assim, para ser honesta, não me posso queixar.

Na minha casa eu posso, pois, sonhar e tentar concretizar os meus sonhos.

Quando estou in heaven tenho largueza para expandir os pensamentos. Talvez por isso tenha feito escrever em azulejos a frase 'Va', pensiero, sull'ali dorate'.

Quando aquilo era apenas mato e eu olhava em volta sem saber por onde haveríamos de, um dia, caminhar, pensava muitas vezes que, nesse dia longínquo, haveria crianças pequenas à minha volta e que haveriam de andar por ali, maravilhadas, à descoberta.

Aos poucos foi sendo claro para mim onde deveriam estar os caminhos. Foi um processo lento. Os caminhos fazem-se caminhando - é sabido. 

Caminhos, uma escada na pedra, um pequeno muro a delimitar o espaço, um banco, um sítio para a lenha, um outro caminho, árvores à beira do caminho.

Dias. Dias. Meses. Anos. 


Um dos primeiros espaços. Reprodução de uma aguarela de Guilherme Parente


E tanto que eu gostava de ter uma casa enorme com as paredes cheias de telas dos pintores de eleição. Mas não dá, nem a casa é tão grande assim nem o dinheiro chega para os pintores que tanto amo. Não dá...!? Dá mais ou menos.


Não dá para pôr em casa, põe-se na rua.

Não dá para ter as telas, mando reproduzir em azulejo. 

Não tenho fins comerciais (como é óbvio). São painéis fixados na pedra no meio do nada. São para meu deleite. Meu e dos que me são mais próximos. Nada mais que isso.

José de Guimarães, um dos que me é caro. Cores abertas, figuras livres, ironia, alegria.


Estes que aqui mostro são parte de painéis maiores. Estão num grupo de quatro paredes em losango que têm ao meio um canteiro alto que tem um cipreste lá dentro e um banco à volta.

Lá dentro não entra o vento e há pinturas em cada parede, por dentro e por fora. Oito pinturas na parede, sobre azulejo.

Sou louca?

Sou.



E há a poesia. Poesia a acompanhar os nossos passos ou as nossas leituras ou o nosso sossego. 

Sophia, Eugénio, Herberto, Jorge de Sena, O'Neill e muitos mais.

Os meus amorzinhos pequeninos brincam no meio de palavras. Assim é o meu amor pelas palavras: um amor material. Passo-lhes as mãos por cima, deixo que o tempo as suje, deixo que o sol as ilumine.



Mas levei a paixão dos azulejos também para dentro de casa.

minha casa sou eu. 

Não me esgoto na minha casa, bem entendido, mas há muito de mim nos recantos da minha casa. As minhas cores, os meus aconchegos.

Paul Klee, Picasso, e outros e, cúmulo do disparate, coisas minhas. 

Mas que mal tem? 

É a minha casa. Não tenho nada a provar a ninguém. Mais: não quero enganar ninguém, vou logo avisando, olhem que eu não sou boa da cabeça, vocês dêem desconto.


Gosto de sofás e de almofadas, gosto da cor de tijolo que é quente, gosto de iluminação de parede, de mesa ou de pé porque faz um ambiente mais íntimo, gosto de objectos que não lembram a ninguém, junto estatuetas de cariz religioso com galinhas em pâpier maché, com velas em forma de ovelha choné, ferrinhos, e sei lá que mais e gosto de juntar tudo isso a improváveis painéis de azulejos embutidos na parede.

Hoje a casa e o espaço em volta já se enche de crianças. Chegam e começam a correr para rever os sítios de que se lembram tão bem desde a vez anterior. É um lugar mágico para eles. E para mim também.


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A música lá em cima mostra o Coro do Metropolitan Ópera House de Nova York, interpretando "Va Pensiero" da ópera Nabucco de Verdi. Uma maravilha. De vez em quando volto a ela, e imagino sempre o que deve ter sido a emoção da multidão nas ruas, a cantar isto enquanto se despedia de Verdi.


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Relembro: por aí abaixo há mais uns três ou quatro posts, já nem sei bem. Vão do Bate-Punho, essa vulgar criatura, até Pierre de Ronsard, passando pelo rangélico dálmata (destes lembro-me eu). Um mix a la UJM.


NB: Sempre que isto mete fotografias e eu tento juntá-las, a coisa dá para o torto. Sai tudo meio desalinhado. Paciência. Tenho tanto sono que já nem consigo dar uma vista de olhos. Desculpem as vírgulas fora do sítio ou palavras a mais ou a menos. A ver se, lá para a hora de almoço ou ao fim do dia, consigo tempo para dar uma olhadela a ver se descubro gralhas. Relevem, está bem?


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.