Quem aqui me lê talvez seja induzido em erro. A facilidade com que escrevo sobre assuntos sob os quais me sinto soterrada pode levar a pensar que sou palavrosa, que tenho facilidade em lidar com situações dramáticas, em encontrar palavras de circunstância. Não é verdade. Escrevo espontaneamente, sem pensar, as palavras fluem, mas isso não tem paralelo com a minha forma de estar na vida 'real'.
Esta segunda feira várias pessoas, ao longo do dia, no meio da conversa, se saíram, consternadas, com observações como 'Então e aquilo que aconteceu ao filho da Judite de Sousa? Que horror' e eu, de abalada que ainda me sinto, não consegui dizer nada. Ouvi especulações, que talvez tivessem sido excessos de uma noite de despedida de solteiros, porque parece que no domingo iam para um casamento e que isto, aquilo e o outro. Não consegui acrescentar o que quer que fosse. Talvez apenas um quase imperceptível 'um horror'. De facto, também acho irrelevante saber o que exactamente aconteceu pois nada atenuará as consequências do acidente e essas são medonhas.
Há pouco, ao telefone, a minha mãe disse que tinha visto na TVI imagens do velório do André na Igreja do Colégio S. João de Brito, que a Judite de Sousa estava de costas e que se percebia que estava muito abatida, coitada, como se sobrevive a uma coisa assim, e para ali esteve a falar do medo que tem de piscinas, do medo que tem de tantas coisas, do horror de tal tragédia.
Pois eu só queria que ela acabasse de falar. Deve ter pensado que eu a estava a despachar. Ou não, porque me conhece bem.
Não consigo manter uma conversa sobre situações assim.
Acho que é um assunto sobre o qual não se pode conversar, e eu, só de pensar na aflição, no desgosto que deve ser (e falo em aflição e em desgosto e sei que são palavras menores para o horror que deve ser, deveria antes falar em morte, em dilaceração em vida, nem sei), já me sinto quase sem forças.
Não consigo manter uma conversa sobre situações assim.
Acho que é um assunto sobre o qual não se pode conversar, e eu, só de pensar na aflição, no desgosto que deve ser (e falo em aflição e em desgosto e sei que são palavras menores para o horror que deve ser, deveria antes falar em morte, em dilaceração em vida, nem sei), já me sinto quase sem forças.
Claro que, ser racional que sou, consigo explicar ao meu cérebro que isto se passou com alguém que não conheço e que tantos dramas há todos dias que não é lógico que me sinta assim, e, portanto, vou arrumando isto num canto e, quem hoje me viu, viu-me normal, igual ao de sempre e até especialmente irónica, se não mesmo bem disposta
Se calhar, vendo-me muda perante o assunto, tentando desviar a conversa e depois passando para um registo bem disposto, passo por fria, insensível. Mas não consigo mesmo falar nisto, apenas me apetece escrever. Mas mesmo isto, escrever tanto sobre este assunto, também não é razoável, percebo. Vejo, pelos blogues que tenho aqui ao lado na minha galeria, que praticamente ninguém fala nisto, é tudo gente racional, controlada.
Eu, sempre tão equilibrada e quase imune ao stress no meu trabalho, sempre me fui abaixo quando os meus filhos estavam doentes ou, agora, se sei que alguma das crianças tem alguma coisa que fuja um bocado às viroses da moda. Ou se ouço situações complicadas com crianças, mesmo que não as minhas. Ou se sei da aflição de alguma mãe. Parece que o coração aflito das mães passa para o meu próprio peito. Pode soar excessivo, mas é o que sinto.
Com os meus filhos, então, se tinham qualquer coisa de diferente, logo eu me aterrorizava.
Quando a minha filha era pequena, bebé, e começou a dar os primeiros passos, punha um dos pés um bocado para o lado. A pediatra disse que achava que não era nada mas, pelo sim, pelo não, achava melhor fazer um rx para despistar uma eventual luxação congénita da anca. Com pouco mais que 20 anos, inexperiente, nunca em tal eu tinha ouvido falar mas, só pela perspectiva de algum problema, por pouco não caí logo ali, a sentir-me a desmaiar, cheia de medo. Depois, ia recomendada para fazer o rx com protecção pélvica. Quando a fui fazer, e depois de recomendar isso mil vezes, diz-me o médico que a bebé era ainda tão pequena que, se aplicasse a protecção pélvica, tapava-lhe a anca. Imediatamente, com medo do que pudesse acontecer, resolvi que então não fazia o rx; mas depois fiquei cheia de medo que a miúda viesse a ter problemas, a coxear ou assim, por não se tratar por eu não ter querido fazer-lhe o exame.
Quando, para aí com uns 2 ou 3 anos, teve uma crise de bronquiolite e a levámos a Sta Maria, eu ia em pânico. Teve que fazer análises e um rx e eu tive que andar com ela pelos corredores. O meu marido não foi autorizado a entrar e eu senti-me frágil, frágil, com medo que ela tivesse algum problema nos pulmões, ela com falta de ar e eu, novinha, assustada, assustada. Às tantas, fui no elevador com uma mãe cuja criança tinha uma deformação e eu, que já ia quase sem forças, ao ver a criança e a mãe, fiquei tão emocionada, tão de rastos que, com a minha filha ao colo, fiz um esforço imenso para não desmaiar e ficar para ali caída com a miúda ao colo. Cheguei ao fim, fiz tudo o que tinha a fazer até sair de lá com ela ao colo e ir ter com o meu marido. Mas só eu sei como consegui aguentar-me.
Mais tarde, foi a vez do meu filho ter crises de asma. Estava medicado e eu sabia como agir em caso de crise mas a asma dele era pior do que a da irmã, não cedia ao ventilan, e eu, sem ele me ver, chorava, aflita, quase sem voz, quase sem forças. Valia-me a calma do meu marido. Quando ouvia a pieira e lhe via a barriga a tentar compensar a incapacidade respiratória, sem reagir ao aerossol ou à bomba, eu queria poder trocar com ele, eu dava por mim a pedir (sem saber a quem) que ele se pusesse bom, que aquela falta de ar passasse para mim. Não saía da sua beira, tentava acalmá-lo, mas nem sei como o conseguia.
Outra vez, pequeno ainda, talvez uns 4 anos, chegou ao fim do dia com dores de cabeça. Chorava com dores de cabeça. Não queria que se acendesse a luz, não saía da cama (e logo ele que nunca parava quieto). Entrei em pânico. Pus-lhe as pernas para cima, mexi-lhe na nuca, vi se tinha mobilidade no pescoço. Tudo funcionava bem mas, ele que não era nada de chorar, não parava de chorar com dores. Só pensava na temível meningite. Eu, quase sem acção, com a minha filha pela mão e o meu marido com ele ao colo, lá fomos para o SAP mais perto de casa (SAP = Serviço de Atendimento Permanente). Nessas alturas, eu mal abria a boca. A aflição dá-me para o mutismo. Estava apavorada, quase sem voz, quando descrevi ao médico o que se passava.
O médico olhou para ele, muito pequenino, sentado na cadeira. E vai ele, que estava branco, olheirento, os olhos encarnados de chorar, diz com aquela vozinha típica das crianças pequeninas '... mas levanto as pernas e mexo o pescoço...'. O médico desatou-se a rir. Fez-lhe para ali vários testes já nem me lembro bem e achou que não era nada, que fosse para casa até ver, para eu o ir observando. O que sei é que, mesmo sem jantar, dormiu a noite toda e a manhã toda até à hora de almoço. Depois é que me lembrei que, como tinha tido uma visita de estudo e na véspera, já nem me lembro porquê, também não tinha dormido a sesta, irrequieto como era, devia era estar estourado, exausto. Mas do susto que eu apanhei, ainda hoje me lembro bem.
Já mais crescida, a minha filha tinha um dente a abanar mas que não caía. Ela na brincadeira, punha o dente de fora, fingia que era o drácula. Mas mal conseguia comer, o dente quase arrancado mas preso por um fio.
Naquela altura, por causa das asmas que na altura eles tinham, tínhamos resolvido fazer termas. Estávamos, pois, no restaurante das termas. Aquilo para ela e para o irmão era uma festa, aquela brincadeira com o dente. Mas o dente para ali balouçava quase solto e resolvemos ir ao quarto para puxar o dente, que devia sair logo.
Mas qual quê? O dente não saía, eu puxava ao de leve para não a magoar mas o sangue já saía e o dente preso por um fio de carne. A miúda dizia 'puxa mãe!' mas, então, onde a coragem? Já me sentia mal, quase a desmaiar, o medo de a magoar, parecia que podia rasgar-lhe a gengiva. E ela 'Vai, mãe, puxa com força!'. Tive que me sentar na cama e nem sei, inclusivamente, se não tive que me deitar com as pernas para cima. E teve que ser ela, sozinha, ao espelho, a arrancar o dente, o sangue a escorrer-lhe e ela a desenvencilhar-se sozinha. Ainda hoje ela fala nisso, uma paródia. Esta minha falta de coragem, perante situações que metam algum tipo de sofrimento para eles, deixa-me de rastos.
São histórias pequenas, insignificantes. Todas as mães passam por coisas assim, algumas mais descontraidamente, outras mais sobressaltadas perante os problemas e é até ridículo estar agora a lembrar-me de coisas ínfimas perante a imensidão de quem sofre por motivos irremediáveis.
Parece até que me estou a desculpar. Estou para aqui com isto nem sei porquê. Estou com a cabeça noutro sítio e ponho-me a falar destas coisas, a explicar a minha fraqueza.
Ponham-me mil problemas profissionais com toda a gente num clima de histeria que eu reajo com calma, distribuo jogo, equaciono soluções. Ponham-me problemas familiares que envolvam chatices, complicações, que eu desvalorizo, relativizo, ultrapasso.
Mas não me falem de problemas com as minhas crianças (tenham elas a idade que tiverem) ou não me falem de situações angustiantes para qualquer outra mãe: abano como uma haste frágil ao vento e só não tombo porque consigo encontrar dentro de mim um resto de razoabilidade para me manter de pé.
Estou com isto e afinal estou é a pensar naquilo pelo que Judite de Sousa vai passar esta terça feira e nem quero pensar. São situações pelas quais nenhuma mãe deveria alguma vez passar. Fica inevitavelmente uma grande incompreensão, um sentimento de imperdoável injustiça, revolta, dor imensa: porquê? Mas não há respostas.
Que pena tenho dela por ter perdido o filho.
Que pena tenho dela por ter perdido o filho.
E, agora que já aqui desabafei, só tenho que vos pedir desculpa por estar a maçar-vos com esta choradeira feita de palavras, com esta minha maneira de ser. A seguir já vou pensar numa qualquer outra coisa para ver se mudo de registo.
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As imagens são da autoria do fotógrafo Elton Fernandes que usa o Photoshop ao serviço da sua criatividade.
A música é de Chopin - Nocturne op.9 No.2.
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Não dá.
Tirei umas fotografias aos livros novos e tentei ganhar ânimo para falar deles mas não dá.
(Não tenho inspiração, ou ânimo, ou motivação, o que queiram.)
Não dá.
Tirei umas fotografias aos livros novos e tentei ganhar ânimo para falar deles mas não dá.
(Não tenho inspiração, ou ânimo, ou motivação, o que queiram.)
Talvez amanhã.
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A morte é a curva da estrada
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
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Vi que há novo vídeo do Cine Povero e, noutras circunstâncias, não o colocaria aqui: tento, sempre que posso, não falar de morte. Mas hoje sabe-me bem ouvir estas palavras e a arte do Cine Povero leva-me nos braços. Fernando Pessoa recitado por Natália Luíza sobre Vivaldi e com imagens colhidas em Lisboa e Dubrovnik (Croácia): a maravilha de sempre.
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
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E, por hoje, por aqui me fico.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça feira.