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sábado, março 02, 2024

Serenidade

 

Dia de descanso. Nem monda por gavetas repletas de infindáveis pastas, dossiers, envelopes com mil coisas dentro, nem transporte de sacos e caixotes, nem arrumação do que se trouxe. 

Nada. Intervalo.

Estava muito precisada de desligar. 

Tem sido pesado.

Depois de já muito ter sido escolhido, perguntam-me os meus filhos porque, agora, o que sobra, não vai tudo direito ao lixo. Não posso. Tenho descoberto coisas extraordinárias onde menos se espera.

Ontem descobri um caderninho feito manualmente pela minha mãe, muito à semelhança do outro feito pela minha bisavó, sua avó materna, em que ela escreve o nome completo de todas as pessoas da família, data de e local de nascimento e, no caso dos falecidos, data em que foram para o hospital, data da morte, com quem se casaram e em que data, ou, no caso dos mais novos, nome completo, data de nascimento, nome dos pais. 

Fiquei a saber que um dos filhos de um dos meus primos tem o mesmo nome próprio (nome duplo) que um dos meus netos. Conhecemo-los apenas pelo primeiro nome e foi preciso a minha mãe ter morrido para eu descobrir que estes jovens primos são homónimos. 

Vi também duas cartas que me foram dirigidas e que juraria que nunca antes as tinha visto. Aliás estavam num lugar muito improvável, uma de um prévio namorado e outra de um que, tempos antes, tinha sido forte candidato a sê-lo. Provavelmente, a minha mãe temeu que fossem perturbar o meu namoro da altura. Mas isto, claro, são conjecturas minhas.

Descobri também umas folhas assinadas por muita gente, creio que terá sido quando o meu pai se reformou. Tenho que ver com atenção. 

E muitas medalhas dele, muitas dos seus feitos desportivos.

E descobri uma coisa que muitas vezes tinha desejado ter: umas folhinhas escritas por mim com o nome completo e a morada de muitos dos meus amigos. Há uns dias, ao ver muitas cartas que me tinham sido dirigidas, via apenas o nome abreviado (Mané, Noémia, etc) e não conseguia recordar-me do nome todo e de quase todas não sabia a morada pois no envelope, na parte de trás, escreviam apenas esse nome abreviado. Quanto muito, e raramente, por baixo, o nome da cidade. Ou a minha grande amiga e correspondente de que apenas sabia ser São Tavares. Agora tenho o nome completo e a morada.

É verdade: fica para a posteridade o que está escrito em papel. Ainda ontem, quanto contei isto ao meu filho, ele o disse. Na verdade, só isso fica. Computadores que se desactualizam, de que não sabemos as passwords, acabam por ser uma caixa preta em que o mais certo é irem para o lixo. Quantos dos meus computadores já foram para o lixo... Sei lá qual a password que usava na altura. E, caso se liguem, estão horas a fazer actualizações e muitas já nem podem ser feitas. Em contrapartida, o papel sobrevive a gerações.

Be., portanto, não quis salvar coisas com que o meu marido não concorda, não tentei trazer coisas que o meu marido se recusa a transportar, não tive que andar a ver infinitos papéis. Hoje nada disso, zero, hoje dia de descanso. 

Campo, ar puríssimo, tudo verdinho, tudo a florescer, as árvores com as folhinhas e os frutinhos a despontar, preciosidades, milagres da beleza espontânea, os passarinhos numa alegria e, certamente, a julgar pela quantidade de pinhas roídas, os esquilos também.

Pena foram dois pequenos percalços. 

Quando estávamos a chegar, lembrei-me de que me tinha esquecido das chaves. Ainda por cima, trazíamos o carro cheio. Felizmente, no molho de chaves com que ando sempre, tenho uma chave da casa. Mas não do portão... Então o meu marido teve que saltar a vedação. Receei que se espetasse todo nos espigões ou que se espetasse no chão ao saltar... mas vá lá que não. Sobreviveu. Claro que o cão estava maluco com esta dinâmica, saltava, ladrava. Não percebia. Eu, do lado de fora, a agarrá-lo e o dono a saltar o muro. 

Conseguiu entrar em casa mas agora -- desde que, há uns anos, assaltaram o quintal e levaram mesa e cadeiras e bancos grandes e artesanais de Monchique -- temos um cabo e cadeado no portão... e em casa não encontrámos nenhum duplicado da chave do cadeado.

Então o meu marido foi abrir o portão lá de baixo, ao fundo, longe da casa, e entrámos por lá. Mas como o carro não consegue chegar ao pé de casa quando se vem lá de baixo, passei as coisas pela vedação, cá em cima, ao meu marido. Um contratempo.

E este foi o primeiro percalço. 

O segundo foi um pouco pior. Fui abrir as janelas da parte mais antiga da casa. Tem uns degraus em pedra muito altos. Quando vinha a chegar cá a baixo, voltei-me para cima para me certificar de que tinha apagado a luz do quarto lá de cima. E, acto contínuo, julgando que estava no último degrau e que descendo-o ficaria no piso térreo, desci de 'marcha atrás'. Só que não, ainda havia outro e coloquei o pé na sua beira. Como estava de meias e com chinelos, o próprio pé escorregou no chinelo. Conclusão, nesse mesmo segundo levantei voo e caí para trás, desamparada, no piso de pedra. Segunda conclusão: bati com as costas na porta e caí, com toda a força, de rabo e apoiada numa mão. Felizmente, graças à porta, a queda foi amortecida e não bati com a cabeça no chão. Mas agora mal posso estar. Vou ficar com a nádega negra, verde. Receei pela mão mas parece que daí menos mal. Ao cair, acho que bati os maxilares um no outro e, num primeiro momento, doeu-me tanto que receei que daí também viesse algum problema. Felizmente parece que não. Mas ao longo do dia tenho vindo a ficar progressivamente mais dorida. 


Contudo, o importante não são os percalços, o importante é que dei descanso à cabeça e ao corpo. Um dia bom, sereno. Estivemos tranquilos, felizes, em comunhão com a natureza. E, ao usar o plural, incluo o nosso inseparável e querido amigo que, no campo, revive as suas raízes ancestrais, encontra a total liberdade de movimentos.

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Desejo-vos um bom sábado
Saúde. Tranquilidade. Paz.

quarta-feira, novembro 23, 2022

The green fields of heaven

 


Acho que não há grandes novidades tirando as desgraças de sempre e dessas, tão tenebrosas me parecem, não consigo falar. 

O meu dia foi de trabalho e teve aquelas agruras habituais. Na fase em que estamos, uma fase complexa no futuro da empresa, parece que o pior de algumas pessoas se sobrepõe a tudo o resto. Quando se fala em atitudes tóxicas isso não é uma força de expressão, é mesmo uma realidade. Infelizmente, os episódios de stress ou irritação sobrepõem-se aos de motivação e isso desgasta. Mas é uma fase. Logo passa.

Por tudo isto, prefiro falar de momentos de paz e serenidade. 

O tempo cinzento, chuvoso, tristonho. Às quatro e tal estava escuro, às cinco e tal estava de noite. Às seis e tal fui andar lá para fora, estava noite cerrada. Tive que ligar a lanterna do telemóvel. Mas andar no campo, entre árvores, com tão fraca iluminação não é coisa fácil. Não se vê nada, nada, nada. Pensei que se um javali ou uma raposa saíssem da gruta ou de alguma toca eu cairia para o lado de susto. 

Apesar de tudo, gosto. E chuviscava. Via as gotas a percorrerem os fracos raios de luz do telemóvel. Bonito. Podia ficar ali parada a respirar o ar molhado, a sentir os odores e os mistérios da noite.

A fera tinha ido comigo e, de vez em quando, ouvia-o por perto mas, de noite e ele escuro como é, quase não o consegui ver. A certa altura, chamei por ele. Nada. De repente, ouvi um barulho e um monte de pelo passou a rasar por mim. Estremeci. Era ele numa corrida. Mas não o vi. 

Passado um bocado, ouvi o meu marido lá em cima, ao longe, a chamar por mim. Fui na direcção dele. Achava que eu andar por ali às escuras não era boa ideia. Acendeu as luzes todas à volta da casa e que eu andasse por ali. Dei umas três ou quatro voltas e desisti. Não tinha graça.

À hora de almoço tinha feito um pequeno passeio para fotografar cogumelos. É um fenómeno. Não sei a que ritmo se multiplicam aquelas células mas o facto é que, num abrir e fechar de olhos, aparecem e agigantam-se. Belíssimos. Claro que nem todos são de tipo giga. Há os que são delicados, quase como bailarinas, quase comoventes.

Há outros que parecem umas bolinhas brancas, quase pétalas, outros umas ondinhas quase em rendilhado, folhinhos subtis que embelezam os ramos que se fingiam de mortos. Quanto mistério nestas indecifráveis formas de vida.

Outros são carnudos, quase animais saídos da terra, outros parecem algas, são lustrosos, quase parecendo vindos do fundo do mar. 

Os mais exóticos são uns em campânula brilhante em amarelo exuberante. Mas hoje vi uns que parecem vidros de Murano, de uma delicadeza translúcida. Serão que são deuses? Ou serão simples anjos? São inexplicáveis, etéreos. Fiquei com vontade de me deixar ficar a olhar para tanta beleza, tão efémera beleza.

E os campos estão verdes, verdes. Muito musgo, macio, veludo, veludo, e muitas ervinhas, muitos líquenes. É bom estar entre o verde da natureza. Fotografo o que posso. O tempo não é muito. E há a chuva. Fiquei com os pés molhados, o cabelo molhado. Mas soube-me tão bem. 

Por vezes ocorre-me que se, por uma qualquer fatalidade, eu perdesse o que tenho ou soubesse que, em breve, estaria de partida, talvez me sentisse feliz na mesma, agradecida na mesma. Todos os momentos abençoados que tenho vivido estão inscritos no meu adn de uma forma indelével e são carga suficiente na bateria onde armazeno os meus momentos de felicidade. 


E já nem me refiro aos momentos vividos junto àqueles a quem amo e que trago sempre no meu coração. Refiro-me a estas coisas simples como ver como estão grandes e bonitas as arvorezinhas que plantei tão pequeninas, como é especial o círculo de pedras que imaginei e concretizei (tantas vezes carregando ou empurrando pesos que anos mais tarde mostraram o desgaste que provocaram em algumas das articulações que mais se esforçaram), como se tornou tão fértil a terra antes tão árida, como devem ser felizes os pássaros que aqui habitam.

Estava a andar e a pensar como estão bonitos os verdes campos deste meu paraíso. Depois apareceram-me as palavras em inglês e dei por mim a sorrir. The green fields of heaven. Quem conhece o mundo dos negócios e dos investimentos saberá bem o que são os greenfields projects. E na verdade foi isso que, há uns anos, foi esta nossa aventura. Tudo à nossa disposição para daqui fazermos o que quiséssemos. 

Imaginei caminhos, imaginei escadinhas de pedra, imaginei o lugar para os cedros, o lugar para os pinheiros, lá em baixo dois eucaliptos, os elegantes ciprestes pelos quais me apaixonei a ladearem os caminhos, a pimenteira toda leveza, as azinheiras que já cá estavam sob a forma de rústicos e informes arbustos e que fomos desbastando até se transformarem nas majestosas árvores de hoje. 

Tudo se foi concretizando até que ganhou vida própria. O que agora vejo quando por aqui caminho é, tantas vezes, novo para mim. Devem ter sido sementinhas que voaram de longe e que esta terra acolheu. Tal como os gatinhos, os esquilos ou os pássaros ou os bichos cujas grandes pegadas encontramos e que aqui se acolhem, assim as flores, os cogumelos, os arbustos felizes que por aqui vão construindo a sua vida.


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Desejo-vos uma bela quarta-feira
Saúde. Serenidade. Paz.

domingo, março 07, 2021

Um dia dedicado a montagens, a trabalhos esforçados e a suaves acalmias

 


Calorzinho, algum sol, tempo amável. Dia bom. Qualquer dia ainda começo a gostar de viver neste regime.

Acordei a ouvir barulhos não identificados. Geralmente acordo envolta em silêncio ou com passarinhos a cantarem na cameleira ou no beiral. Enfiei umas calças e uma blusa rápida e fui investigar. No terraço lateral, o meu marido tinha tirado da caixa umas mil pièces détachées e estava de joelhos, furioso, que não tinha paciência para aquilo, que aquilo era tudo uma porcaria, tudo mal feito, tudo mal explicado. E já estava de martelo em punho, não percebi a fazer o quê. Avisei-o que, se partisse aquilo, ia tudo à vida. Furioso, que não dissesse nada. Pedi que ficasse sossegado, que me deixasse lavar e tomar o pequeno almoço que já ia ajudar. Furioso, disse que achava que tinha colocado umas peças ao contrário e que agora não as conseguia desencaixar. Era nessa operação que estava de chave de fendas e martelo. Temi o pior. Se partisse algum bocado aquilo, o que faríamos? 

Lá fui à minha vida, inquieta. Mas, noblesse oblige, primeiro as minhas abluções matinais seguidas da minha fruta, kefir com frutos secos e um café longo. Só depois disso consigo funcionar.

Quando lá cheguei, já nem se podia falar com ele. Nestas ocasiões, é como se a culpa de tudo fosse minha, como se, ao encomendar online um par de cadeirões e uma mesa, fosse expectável que viesse tudo por montar e que montar fosse um quebra-cabeças. Claro que, na volta, algures na descrição do produto, deveria dizer que vinha desmontado. Mas quem ia imaginar tal coisa? Que os cadeirões poderiam vir desmanchados...?

Mas, então, com a minha calma, lá passei por cima daqueles desacatos e pus-me, em conjunto com ele, a tentar perceber o que se tinha passado para ver se conseguia ajudar. O manual, de facto -- e aí ele tinha razão -- era muito pouco explícito, nada a ver com os do ikea. Não percebi o que era suposto ter feito pelo que nem sequer concluía que aquelas peças estavam montadas ao contrário mas ele insistiu que, para prosseguir, as peças tinham que estar ao contrário. Olhei, olhei e fiquei na mesma.

Até que, não sei como, com uma pancada pela lateral, uma peça se soltou. Era o truque: uma simples pancada de desencaixe pela lateral. Começámos, então, do início, com calma. E percebemos que ele tinha feito outra coisa mal, não tinha seguido escrupulosamente a sequência indicada, embora o que ali estava fosse dúbio. Sou pouco dada a construções e pior ainda se há muitas peças quase iguais mas, de facto, todas diferentes e o manual é mal explicado.

Claro que, quando vi dois bocadinhos no chão e exclamei :'olha, conseguiste mesmo partir qualquer coisa!', ele disse que não, que um dos bocadinhos já vinha partido, que caiu quando tirou as peças da caixa, e que o outro nem sabia se fazia parte. Respondi: 'Deves estar a gozar'. Mas achei que não valia a pena, os bocadinhos eram ínfimos, nem se deveria notar, não justificavam um acareação.

A seguir, em equipa, tentando desvendar o sentido das coisas, um segurando, outro encaixando, sempre com aquele manual mal engendrado à vista, lá fomos entrando na lógica da coisa e dando conta do recado.

Já ali estão, bem bonitos. Já lá estive sentada. Bem agradável. Um recanto tranquilo e simpático. 

Claro que, nessa altura, a disposição da fera já estava um pouco melhor. Por isso, ousei: agora é o espelho. 

Não reagiu mal de todo mas que não, que estava era na hora de irmos caminhar, que estava era já com dores nas costas, que não sei quê, que não sei que mais. Fomos andar, na boa. Uma caminhada longa, bem disposta, um solzinho à maneira.

Quando chegámos, com calminha, com receio de estar a abusar da minha sorte, disse: 'Então, pronto, agora vamos pôr o espelho...'. E ele: 'Vamos...? Ou vou eu?'. Anuí: 'Sim, vais tu. Mas eu ajudo: digo onde é...'.

Tirei os dois quadrinhos que estavam naquela parede, disse onde era para pôr o espelho, ele fez os buracos na moldura e passou o arame para pendurar, furou e pendurou. Quando estava a bater em retirada, eu disse: 'Agora são os quadrinhos...'. Ele, deveras zangado: 'Olha, vai...'. Por acaso, não concluiu. Mas disse que não ia fazer mais buracos. E estava decidido e, pior ainda, cheio de fome. Eu disse que ia eu. Ele ficou furioso, que eu o pressiono, que o faço fazer o que ele não quer. Eu perguntei: 'Pressiono... eu? Então se estou a dizer que os ponho eu...?'. E ele: 'Pões, pões...'. Mas lá perguntou onde é que era para os pôr. E lá ficaram postos. Trabalhinho todo feito. 

O que me valeu é que já tinha o almoço pronto da véspera: iscas de cebolada, com batatinhas. Foi só aquecer.

A seguir ao almoço, fomos os dois para o jardim, apanhar sol. Levei um livro, Milena, para ler. Mas o sol estava de frente, não deu.

Depois ele foi para casa e eu fiquei. Resolvi, então, ir à horta buscar uns paus grandes com um V na ponta para segurar uns troncos grandes de um filodendro gigante que quase impede a nossa passagem. 

E tentei. Tentei arduamente. Mas os ramos são grossos e pesados e não conseguia segurá-los e ao mesmo tempo sustê-los com o pau. Então voltei a casa. Estava ele já deitado no sofá a ver futebol. Quando me viu, percebeu logo que euqueria qualquer coisa: 'O que é que foi agora?'. Disse: 'Estou ali a fazer uma coisa mas não tenho força, não consigo sozinha'. Levantou-se, irritado: 'Já estava aqui há dez minutos, de facto já era muito.'. Enquanto íamos, ia-se zangando: 'E estiveste a tentar tu levantar aquilo...? Se amanhã não te puderes mexer, não te admires'. 

E, a meias, lá tratámos do assunto, não sem que ele, no fim, tivesse tentado cortar muito mais do que as quatro big folhas que cortou. 

Depois de se ter ido embora, de novo por minha conta, fui ainda arranjar um esconderijo para os contentores de lixo. Podem não estar no sítio mais prático mas mal se vêem e, portanto, não são uma mancha estética naquele acesso lateral que quero ver mais desimpedida e com flores.


E depois fui apanhar tangerinas, fui apanhar pinhas e pu-las em volta de um tronco, e fui fazer fotografias, estas e mais um monte de outras, e fui falar à família e fui fazer chá e... assim foi passando o tempo nesta doce tranquilidade que o anúncio de primavera ainda torna mais aprazível.

E depois, à noite, a seguir ao jantar, pus-me para aqui na moleza, a dar-me o sono, a ver vídeos de casas, de jardins, de música, de entrevistas. 

Partilho um vídeo. É uma mulher de forte personalidade, ela, e, curiosamente, nesta altura da sua vida, ainda cheia de dúvidas e de vontade de descobrir novos interesses.


Marília Gabriela de frente com Lázaro Ramos | Espelho



A todos os que por aqui passam desejo um belo dia de domingo


domingo, dezembro 13, 2020

Memórias e medos a caminho de um heaven transbordante de cogumelos mágicos

 


Quando eu era pequena tinha medos. Aliás, tinha um medo. Um senhor medo: um pavor. Tinha medo de ver alguém com alguma doença que me parecesse grave. Era um medo incapacitante. Toda eu tremia por dentro, aterrorizada. Não sei precisar quando nasceu esse medo. Seria quando o meu avô materno morreu? Não sei. Pensava que teria uns três anos quando ele morreu num acidente. Afinal, tinha dois anos, disse-mo a minha mãe. No outro dia, quando morreu a filha do Tony Carreira, a minha mãe disse que nem queria imaginar o choque da família ao receber a notícia. Chorava enquanto falava. Perguntei porque chorava assim. Disse-me que se lembrava de quando recebeu a notícia do acidente do meu avô. Diz que até hoje ainda não recuperou do choque e desgosto. Imagino como terá sido, na altura. Tinha vinte e cinco anos, ela. Tinha uma relação por vezes um pouco indiferente em relação à mãe mas era amicíssima dele. Durante toda a vida presenciei o desgosto pela morte prematura do pai. Foi um acidente traumatizante. A minha avó, que era apaixonada pelo marido e que nesse dia ia ao cinema com ele, teria quarenta e um ou quarenta e dois. Durante anos a vi chorar ao falar do meu avô. Vestiu luto durante quase toda a vida. Na altura esconderam de mim (já o contei muitas vezes) mas devo ter percebido. Penso que é, portanto, provável que tenha nascido aí o meu medo da morte. 

Depois foi um acidente grave que aconteceu ao irmão da namorada de um dos meus tios, aquela que veio a casar com ele e de quem eu ainda sinto muitas saudades, custando-me, por vezes, até a acreditar que já se tenha ido, tão alegre era e tão saudável parecia. Ficou paraplégico, esse irmão dela, o mais novo de cinco irmãos. E eu, que o conhecia bem, um jovem simpático e tímido, ao ver a consternação de toda a gente, dos meus pais, dos meus avós, dos meus dois tios, jovens como ele, fiquei soterrada pela dor que sentia em toda a gente. Esteve internado durante muito tempo. Eu desejava que ele não regressasse, antevendo já o terror que nasceria da proximidade. Lá por casa, sabendo-me muito sensível a esses sofrimentos, escondiam de mim, falavam por meias palavras ou em voz baixa. Eu ouvia, pressentia, adivinhava. Os pais dessa que viria a ser minha tia, face ao estado em que tinha ficado o filho, tiveram que mudar de casa. Era uma casa térrea que ficava na mesma rua que a escola infantil em que eu andava. E eu, a partir daí, passei a ter medo de ir para aquele lado do recreio com pavor de o ver ou de me aperceber que alguma coisa de grave estava a acontecer. Mas devia perceber que, se falasse neste meu terror, preocuparia os meus pais. Por isso, calava-o, escondia-o.

Depois foi o pai de uma colega de escola, uma a casa de quem eu ia muito até porque, por coincidência, também morava perto da escola. Além disso, ele era colega do meu pai. Eu percebia que se passava alguma coisa de grave e morria de medo. Nunca mais lá fui a casa, para desgosto da minha colega. Nem falava com ela na doença do pai com medo de descobrir que a morte rondava a casa. Quando ele morreu, a minha vontade era não ir à escola. Fui mas nem olhava para a rua, aturdida de pavor. E quando ela regressou à escola nunca falei na morte do pai com medo de saber pormenores e com uma pena imensa por ela já não ter pai e porque tinha ouvido dizer que ele estava muito magro, irreconhecível, e que tinha muitas dores.

Durante anos íamos passear e fazer compras à Baixa, usando um transporte público que era usado por quem também ia para a 'Palhavã', o IPO. O pavor que eu sentia, o terror que me trucidava as entranhas só eu sei. Se via alguém com pensos, ligaduras ou ar de doente quase morria de medo. Mas escondia-o. Tinha medo de preocupar os meus pais. Penso que eles perceberam pois tenho ideia que tentavam que eu compreendesse que não tinha mal nenhum. Mas era mais forte que eu. 

Feridas, chagas, sofrimentos terminais, tudo isso sempre me aterrorizou. Mas só nos outros. Penso que, no fundo, sobretudo, tinha medo de deixar transparecer o meu medo e que as outras pessoas se sentissem ainda piores por verem os cuidados e medos que me inspiravam. E a verdade é que penso que isso ainda subsiste em mim, embora mais controlado.

Comigo, no entanto, não existe esse medo. Em mim, suporto relativamente bem a dor física, tenho uma certa coragem e desprendimento em relação a mim própria.

Já o contei. Desculpem que me repita. Quando era pequena, talvez três anos, parti uma clavícula. Estava em casa sozinha com o meu avô paterno. Gostava de me pôr de joelhos em cima de um banco que havia na cozinha e de me balouçar lá em cima. Ninguém queria que eu fizesse isso mas eu gostava de pôr o banco em dois pés e de o inclinar para ver até onde conseguia equilibrá-lo. Os meus pais e a minha avó agarravam-me, zangavam-se. Mas o meu avô, muito meu amigo e muito condescendente, tinha dificuldade em zangar-se. E, naquele dia, o banco virou-se, eu caí e, ao contrário do que costumava acontecer, chorei muito. O meu avô percebeu logo que alguma coisa se passava e mandou chamar o meu pai que estava a trabalhar. Quando o meu pai chegou, lembro-me bem, eu estava na cama do quarto ao lado do quarto dos meus avós e estava a chorar. O meu pai vinha assustado e ao tentar perceber o que se passava deve ter-me mexido no braço ou deve ter visto, através da pele, que o osso estava partido. E eu vi o meu avô também assustado e a declarar-se culpado, e o meu pai, aflito, quase a chorar. Então, para os descansar, disse que já não me doía e fiz de tudo para não chorar. Fui de imediato levada ao médico que, à vista, percebeu logo o que se passava. Tinham-me pegado ao colo e puseram-me numa marquesa que me lembro como sendo muito alta mas que, se calhar, era normal. Sei que o médico disse que ia, com as mãos, endireitar os ossos, alinhando as duas partes. Avisou que ia doer e que eu tinha que ser corajosa. E fui. Lembro-me bem. Doeu-me muito. Mas não chorei. Os meus pais sim. O médico ficou espantado com a coragem daquela criança; e eu hoje espanto-me com isto. 

Toda a vida fiz de tudo para me mostrar corajosa para não assustar os outros. 

Corria muito, descia a correr por veredas, voava pelo campo em descidas acentuadas, subia muros e árvores, brincava muito, caía muito, esfolava-me toda. Para não assustar os outros, não chorava. Tenho os joelhos com marcas, tamanhos os ferimentos que fiz. Por vezes, infectavam. Os meus pais desinfectavam, muitas vezes com tintura de iodo, que me ardia e magoava muito. Lembro-me, em especial, já andava na primária, de um ferimento profundo que fiz num dos joelhos. Estava ainda a cicatrizar, voltei a cair, entrou areia. Infectou, já tinha pus. Pedi, então, ao filho de uma vizinha da minha avó, um recém adolescente, que tratasse de mim para não preocupar nem a minha avó nem os meus pais. Ainda me lembro: eu sentada num muro, ele com um pauzinho a retirar os grãos de areia da carne viva. O que me doía... Depois ele foi a casa buscar mercurocromo. Quando a minha mãe viu o estado em que aquilo estava, ficou toda zangada. Eu não me queixava. Por causa disso, não tive tétano por um triz, tendo que ser levada, a meio da noite, de urgência, para o hospital, onde, a custo, me espetaram uma seringa na barriga.

E de tal maneira me habituei a esconder as minhas dores que acabei mesmo por me tornar a modos que estoica em relação a mim própria. 

Em contrapartida, mantive-me medrosa em relação aos outros. Por exemplo, com os meus filhos sempre fui de uma fragilidade total, por vezes absurda. Mal tinham alguma coisa, logo eu ficava num estado de nervos que frequentemente não era proporcional ao mal que os assolava. Penso que notoriamente vinha desses tempos primordiais em que o medo me estrangulava. Mas nem era preciso ser alguma coisa de especial: bastava uma coisinha. Lembro-me, por exemplo, do que eu sofria quando eles tinham os dentes quase a cair. Nunca fui capaz de os ajudar a tirá-los. Uma vez a minha filha tinha um dente preso por um fio. Já nem conseguia comer. Estávamos numas termas (um tempo abençoado, esse). E estávamos a almoçar no restaurante de lá. Com o dente preso por um fio de carne, fomos as duas ao quarto a ver se conseguíamos resolver aquilo. Mas qual quê... Só a perspetiva de poder magoá-la me deixava transida. Ela a querer que eu puxasse e eu aflita. Pior: já a sentir-me mal, quase a desmaiar. A miúda, pequena, a tranquilizar-me e a incentivar-me e eu está quieto. Tive que me sentar na cama e ela, corajosa, ao espelho, teve que resolver, sozinha, o assunto. Às vezes ainda fala disso. Uma vez foi o meu filho. Também caiu de um banco na cozinha, a mesma coisa que eu. Só que se magoou num dedo, cortou-se. O meu pânico ao ver como ele tinha o dedo, ao pensar como lhe devia doer, a minha aflição quase despropositada. Felizmente não sou de exteriorizar senão ainda mais ridículo ficaria. Fico transida, sem falar, simplesmente num temor enorme.

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E vinha para escrever sobre outra coisa e, afinal, distraí-me e acabei por me perder. Não era de nada disto que eu vinha para falar. Ia contar que, à ida para o campo, íamos a ouvir o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu a falarem da pandemia e das pestes ao longo da história, tema do último livro do Jaime Nogueira Pinto. E falavam de como isto vai mudar a vida e o mundo e do medo com que aprenderemos a viver porque primeiro que esta se extinga muito tempo decorrerá e, a seguir a esta, outra pandemia virá. Aprenderemos a viver com medo do invisível, do mal que nos pode chegar através de um filho, de um neto, de um amigo. E falou de como é desolador o estado da baixa de Lisboa, muitas lojas fechadas, provavelmente definitivamente fechadas. E eu pensei como deve ser frustrante e triste para as pessoas mais velhas que poderiam viver os seus últimos anos mais tranquilamente e agora a terem que andar de máscara, sem a ternura de um beijo ou abraço, longe da companhia dos seus.

À tarde, ao receber o telefonema de um amigo, soube que uns outros tinham tido covid e, mais estranho, soube que uma delas, que teve covid há quatro meses, semanas de sintomas e testes positivos, agora, num teste serológico, soube que não está imune. Foi a outro lugar fazer o mesmo teste, convencida que o primeiro estava errado, e obteve a confirmação: está como se não tivesse tido covid. E fiquei a pensar que esta porcaria desta doença, de facto, tira o tapete a toda a gente. Parece não seguir um padrão e isso mais difícil se torna de gerir. Uma roleta russa. 

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Mas isto das pandemias e dos medos até era para ser de passagem pois a minha ideia era mesmo falar da maravilha dos verdes in heaven. Do perfume do campo. Dos passarinhos e dos seus alegres e inocentes cânticos. Dos cogumelos. E da gata. 

Num blog, a escrita deve ser contida, parca. E eu, sabendo disso, esqueço-me e escrevo desabaladamente, esquecendo-me de que pouca gente deverá ter paciência para estes longos testamentos. Por isso, agora que vejo o comprimento do que já escrevi, não vou poder alongar-me a descrever o encantamento em que por ali andei. Apanhei laranjas e tangerinas, comi algumas, fotografei tudo o que vi, vagueei, maravilhei-me.

A quantidade e variedade de cogumelos continua a deixar-me espantada. Hoje até com uns redondos e peludos, coisa nunca vista, me deparei. Outros, umas bolinhas acastanhadas, compactas, superfície também a querer dar-se ares de felpuda. Outros cor de laranja, ondulados e como se de borracha, outros translúcidos, outro grande, quase azul. Uns grandes, outros minúsculos. Outros aos folhos verdes, como se de bordado inglês às palas. Não sei que terra mágica virou o meu querido e abençoado heaven para dele saírem seres tão extraordinários. Nem sei o significado disto, se é que tem significado. Mas será que, nas grutas, também vivem animais assim, às cores, seres nunca sequer imaginados? Teria graça.

E, de novo, eu a levitar por ali, silenciosa, em estado de êxtase, e ela, esfíngica, a observar-me. 

Aproximei-me, quase emocionada por ela estar ali, parada, a ver-me. Deixou-se estar. Fui-me aproximando, falando com ela. E ela a ver-me. Até que, sem querer desliguei a máquina e, ao voltar a ligar, o som de arranque a fez ir-se embora. É esquiva. Mas sinto-a como um ser superior. 

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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven e acompanham The Lullaby Project pelas mãos de Catrin Finch & Seckou Keita

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Desejo-vos um belo dia de domingo, sem medos.

Saúde. 

quarta-feira, julho 15, 2020

Que idade tem a UJM?
Ui....
Descubra... (e, de caminho, descubra também a sua).
E, já agora, descubra também algumas coisas muito úteis e que nem lhe passam pela cabeça...





Dias de calor, de tranquilidade. Ontem lavei cortinados, lavei vidros, lavei um tapetão de arraiolos. Hoje não, hoje foram reuniões de seguida, não houve intervalos para limpezas. Talvez esta quarta-feira consiga. Mas tenho várias outras coisas para fazer, para além de trabalhar: tenho telefonemas, agendamentos. Contudo, por onde passo vou diagnosticando: devia varrer ali ao fundo, devia lavar o outro tapete, devia pôr reparador de móveis ali, devia fazer uma boneca e limpar teias de aranha na clarabóia. Só que, entre isto e aquilo, o tempo acaba por não chegar. Amanhã, para além do resto, quero escrever um mail. Mas tem que ser coisa bem feita, devidamente objectiva e sintética. Não pode ser feita no meio de uma ofensiva com a esfregona ou enquanto o caldo não levanta fervura.


Com isto, por incrível que possa parecer, ainda não peguei no livro novo. Não sei que mistério é este: dantes parece que tinha tempo para tudo. Agora não tenho tempo para nada. O meu marido, que agora partilha o mesmo espaço de trabalho que eu, diz: tempo demais ao telefone. Talvez. Mas se me ligam e falam, falam, falam, ia eu ser deselegante e inventar desculpa esfarrapada para atalhar a conversa? Não, não sou capaz. Não sou de inventar desculpa, dizer que me estão a chamar. Nunca fui disso. Aguento firme só porque não sou capaz de forjar argumento para interromper. Problema meu, estou certa. Problema meu não ser capaz de omitir opinião, de usar disfarce. Não consigo dizer outra coisa que não a verdade, ou, pelo menos, aquilo que o meu entendimento considera verdade. Se acho que é preto e que está frio não consigo fazer de conta que é cinzento e que até está morninho. Colega que me conhece muito bem tenta aconselhar-me, dizendo-me frequentemente: não precisa de dizer tudo o que pensa, deixe estar. Outras vezes, lembra-me: ter razão antes de tempo é, geralmente, igual a não ter razão. E eu pergunto-lhe: 'Mas, acompanhando as minhas opiniões, os meus 'desalinhamentos', as incompreensões de que, volta e meia, sou vítima, a posteriori o que tem a dizer das minhas razões?' E ele diz: 'Então, já sabe, reconheço que tem geralmente razão. Mas como a tem antes dos outros lá chegarem, passa por não ter'. Acresce um outro defeito muito meu: como quero evitar que os outros se estampem, insisto nos alertas, esfarrapo-me para que se previnam contra males que antecipo. E, afinal, as pessoas não querem ser alertadas, querem é bater com a cabeça na parede. Ele diz, para me consolar: 'Mas já sabe que é assim, já devia estar habituada'. Pois. Não estou. Ainda não aprendi a ficar calada, ainda não aprendi a desinteressar-me dos problemas que sei que vão acontecer. E, quando acontecem, fico doente, furiosa comigo mesmo por não ter sido capaz de evitá-los, por não ter sabido ser persuasiva, por ter sido tão directa que fiz com que as pessoas me julgassem alienada.


Já vi empresas irem pelo cano, prejuízos de milhões, quando anos antes previ que ia acontecer e arduamente batalhei para que se evitasse o avolumar do prejuízo, alertando, isolada, para que era um fiasco quando todos falavam em sucesso -- e, por isso, fui muitas vezes chamada a atenção por ser desalinhada. Tal como já vi gente cair em desgraça e ser apontada e corrida como um flop quando desde há anos vinha alertando para que aquilo ali era era um bluff. Mas o meu amigo tem razão: serve para quê a gente ver antes dos outros ou vermos o que os outros não querem ver... se a verdade é mesmo esta: se os outros não querem ver antes de ser impossível não ver, para quê insistir? O ensaio sobre a cegueira tem muitos casos de estudo.

Ocorre-me, então, que, se calhar, ainda não conquistei aquele calo que endurece a alma, que a envolve, a adormece, a impede de se manifestar. Aquela indiferença.  Aquele deixar andar. Ver e ficar calada, na minha. Pensar: se querem estrepar-se pois que se estrepem. Fingir. Fazer de conta que não vejo. Alinhar-me. Ser figurante num filme que sei que não vai acabar bem mas, até que acabe, fazer de conta que acredito que vai ter final feliz.


Falta-me, na volta, atingir aquele grau de maturidade que impede a malta de fazer ondas, que faz com que se fique de bico caladinho haja o que houver.

E, para me ajudar a perceber em que etapa de maturidade me encontro, eis que o meu amigo algoritmo, sem que qualquer indício da minha curiosidade eu lhe tivesse dado, me aparece a sugerir um teste para descobrir a minha idade mental. Nem mais. Acreditem ou não, liguei o computador, abri o Youtube e cá estava este vídeo. Não resisti. Pensei: tenho ideia que já uma vez me tinha dado que sou pouco mais que uma teenager. Mas hoje pensei que, se calhar, já estou é para lá do prazo de validade, demente, cheché, já vejo mas é as coisas deturpadas. Talvez vista cansada, espírito derreado, cabeça esvaída. Sei lá.


Mas não: idade mental entre 21 e 35 anos. 
Segundo ali se diz: estou a caminho de consolidar a minha personalidade adulta, estou a descobrir o que é bom para mim, sou séria e responsável quando devo sê-lo; mas também sei divertir-me!
E toda esta conversa apesar de ter sérias dúvidas a propósito do rigor de tudo isto... Mas sei lá. Os mais 'sérios', 'conceituados' e caros assessments não são baseados em perguntas por vezes também tão insólitas...?

Por isso, aqui está o teste. Façam-no, avaliem o que dá para o vosso caso, ajuízem. e, se for caso disso, esqueçam.


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Mas também pode dar-se o caso de que esta conversa mais psi não seja bem a vossa praia e que prefiram coisa mais concreta e útil. E, assim sendo, aqui vai a segunda sugestão do camarada algoritmo, um vídeo daqueles que vejo com atenção do princípio ao fim pois descubro coisas em que nunca tinha reparado e que me parecem de inegável utilidade.


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Não vou dizer que as fotografias de © Emmie America são a cara do texto mas também garanto que não estão aqui para amofinar os mais apertadinhos. Estão aqui apenas porque gosto delas. E o mesmo digo de Listen to the Grass Grow na maravilhosa interpretação de Catrin Finch e Seckou Keita: gosto, sem mais explicações.

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E desejo-vos, a todos, um dia sereno, bom. 

quarta-feira, abril 24, 2019

Pecar em grande no Dia do Livro




Saí tarde à hora de almoço e, portanto, atrasada face à hora combinada. Ainda por cima, tinham-me chamado para o que seria suposto ser uma simples rapidinha pelo que nem tive pretexto para ir buscar o telemóvel. Só que, afinal, os preliminares nunca mais acabavam e o que se seguiu foi mais do que tântrico. Ou seja, não tive como avisar que ia chegar atrasada.

Ao fim de todo este tempo, ainda não ultrapassei isto: fico enervada quando estou atrasada. Detesto chegar atrasada. Das poucas coisas que verdadeiramente me enervam em profundidade é isto: estar agarrada numa reunião sabendo que vou chegar atrasada à seguinte ou estar agarrada, e sem escapatória, no trânsito sabendo que não vou conseguir chegar a horas. 


Portanto, cheguei atrasada. Quem por mim esperava, sem ter sido avisado, já se impacientava quando, chegada ao carro, avisei o óbvio: a hora combinada já era.

Tivémos, pois, que almoçar sem muitas delongas. Ele tinha horas para se ir embora. E eu também mas com uma pequena folga, coisa de uns dez minutos. Acontece que, quando ia no carro, tinha ouvido dizer que era Dia do Livro. 

Não ligo a esta coisa dos Dias de. Mas não ligo quando não me convém ou quando não estou nem aí. No caso vertente, pressenti logo que teria que abrir mais uma excepção. E pensei: deviam era fazer também o Dia dos Perfumes. Ou o Dia dos Brincos. Ou o Dia dos Gelados. A ver se não ligava a todos os Dias de, ai não que não.

E, assim sendo, quando ele se despediu a correr, perguntando-me se eu também não ia, respondi que, sendo Dia do Livro, teria que ir fazer as honras.


E é destas coisas que nem vale a pena tentar iludir: a gente sabe quando tem a predisposição no corpo. A gente quer, genuinamente, não ceder à tentação mas a gente sente, nessas alturas, que não é genuinamente coisa nenhuma, que a gente só está é à espera do pretexto e que, a bem dizer, nem é preciso pretexto nenhum, é mesmo só surgir a oportunidade.

Logo à entrada, a estante corrida, verso e reverso, de livros cheios de descontos, e descontos upa-upa. Pensei: cuidado, não vá já os teres. É que se é para pecar pois que o pecado venha com travo a coisa nova, a aventura e descoberta. Nada de coisa datada, coisa já por aí muito batida, coisa que talvez já tenha passado pelas minhas mãos. Não, se é para pecar pois que seja com coisinha a cheirar a novo, fora da zona de conforto, desconhecido, blind date.

Portanto, passei a zona dos déjà-vu e avancei resoluta para as novidades.


E aí foi a emoção inversa do stress-mau, aí foi aquele fremitozinho bom, tremurinha com cheirinho a desafio, com apelo irrecusável: pega-me, espreita-me, toma-me para ti.

Em situações assim nada a fazer, não me faço rogada, entrego-me ao prazer do desfrute. Peguei no primeiro, virei-o e revirei-o, abri-o e sondei as suas entranhas. Agradou-me. Teve que ser.

E assim foi, uma e outra e outra vez. Pensei: se é para pecar, se é para ceder à tentação, pois que a festa seja rija, sem pudor, sem arrependimento. Não com um que só um, em dias assim, é pouco. Dois. E que venha mais um que só dois é pouco.

Foram seis. 

Depois, quando vinha a sair, tive um rebate de consciência e, para me consolar, pensei: não são todos para mim. Um é para ele. O magala. Salvo seja, claro -- porque não é magala, é oficial do exército. O autor, bem entendido. Mas não é o autor que é presente meu para ele, é a obra. 


Mas os outros cinco são para mim -- embora, não sendo eu egoísta, tenha todo o prazer em partilhá-los. Um luxo. Depois, no carro, ia a pensar: não foi só por ser Dia do Livro, foi mas foi já coisa do 25 de Abril, para festejar a liberdade. E venham mais cinco. Venham mais cinco/ Duma assentada.

Quando cheguei aqui à sala com eles todos pelo braço, o meu marido olhou e riu-se: Deste-lhe! E eu já querendo ser perdoada mas, ainda, sem qualquer pudor pelo mal feito: Um é para ti. 

Depois peguei na máquina fotográfica e ele voltou a rir-se: Não me digas que vais fotografá-los... Claro que fui, orgia que é orgia tem que ficar registada. 


Com ínfimos excertos escolhidos completamente à toa (e ansiando pelo dia em que vou ter tempo para lê-los todos, de lisinho, na boazinha)

Presente para ele:

  • Que fazer contigo, pá? -- Carlos Vale Ferraz 

Longe das vistas e das censuras da família católica e dos colegas da Opus Dei, Maria del Tosario cortara os medos dos pecados e das más-línguas; benzia-se antes de abrir as pernas -- que se joda Rosario! -- e adradecia o prazer no final -- gracias, Jesús!

Presentes para mim:

  • Carne crua -- Rubem Fonseca
Um dia entrou no armazém uma moça muito linda, perfeita, seios pequenos, bunda durinha, pernas grossas, mas não muito. Seu Manoel a atendeu e u fiquei olhando, excitado; foi uma espécie de paixão à primeira vista. 
  • Dicionário sentimental do adultério -- Filipa Melo
Pense como um jogador de xadrez: com duas a três jogadas de avanço. Há quem diga que o adultério é uma forma de treinar não só o corpo mas também a existência.
  • Pedra de afiar livros e outras histórias de um livreiro -- Jaime Bulhosa
Vamos organizar no próximo mês uma grande festa de caridade. Contamos com as senhoras para nos levarem todos os objectos inúteis que tenham em casa: livros, vestuário, bugigangas e também, naturalmente, os maridos.
  • No impudor do olhar -- Octave Lothar
Assim a pele feminina, tapete mágico inesgotável, será acariciada, beliscada, mordida, fustigada, por forma a que se erga em voo pelo céu do desejo e nesse voo arraste quem quer que a ponha à prova, libertando os excessos e os prodígios nela represados.
  • Correio para mulheres -- Clarice Lispector
No entanto, quantos maridos poderiam evitar situações embaraçosas e desagradáveis se ouvissem mais os conselhos das esposas?Conselho é aquilo que não aceitamos porque desejamos experiência; e experiência é o que nos resta, depois de perdermos tudo o mais.

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Nota de culpa

Dadas as presentes circunstâncias -- o post foi longo e o anterior também um bocadinho e madruguei e a alvorada vai voltar a ser prematura e a noite de 24 vai ser longa -- não consigo manter-me acordada pelo tempo de que necessitaria para responder aos comentários. Por isso, aceitem as minhas desculpas. Mas saibam que os li e que gostei e que... (não posso dizer...) e que apenas não tenho bateria para mais conversa.

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E porque sim, apesar do calendário ainda estar em Abril: Maio maduro Maio. E que viva a Liberdade. Sempre e para sempre.


25 de Abril, forever in our hearts. 

(E não me perguntem porque é que escrevi isto desta maneira e, ainda por cima, em inglês, porque não faço a mínima)

quarta-feira, fevereiro 21, 2018

O porco mais bonito do mundo


Carnaval da Vitória é o porco mais bonito do mundo. Meu pai que lhe trouxe no sétimo andar onde a comissão de moradores é reaccionária porque não quer porcos no prédio e o camarada Faustino tem kandonga de dendém e faz kaparroto a cem kwanzas cada búlgaro. Primeiro o nome dele era só Carnaval. Depois que a gente ganhou a vitória contra o inimigo o nome ficou Carnaval de Vitória. O inimigo é um fiscal fantoche ladrão de porcos que lhe denunciámos no prédio onde ele ficou na vergonha. Carnaval da Vitória é o porco mais bom do mundo porque quando veio na nossa escola a camarada professora deu borla.

O meu pai é um reaccionário porque não gosta de peixe frito do povo e ralha com a minha mãe. Ele é que é um burguês pequeno mas diz que Carnaval da Vitória é um burguês. Por isso lhe quer matar só por causa de comer a carne. Carnaval da Vitória é revolucionário porque quando meu pai bateu em mim e no meu irmão Zeca ele lhe quis morder. Nós não vamos deixar matar Carnaval da Vitória porque a luta continua e o responsável da comissão de moradores não sabe as palavras de ordem que os pioneiros é que lhe ensinam. E a camarada professora é muito boa porque deixa fazer redacções que a gente quer e até trouxe na escola o primo dela Felipe que veio tocar viola dentro da nossa sala. 

Ruca Diogo


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Antes do Seckou Keita a tocar Mikhi Nathan Mu Toma, o que se viu foi um excerto de 'quem me dera ser onda' de Manuel Rui, a incrível paixão de dois miúdos sonhadores por um porquinho numa Luanda em guerra (e que tem na capa uma daquelas ondas a la Malomil)

A fotografia do porquinho a enfeitar o texto é, obviamente, coisa minha: como é sabido padeço de pyctorica aguda pelo que post sem imagens é coisa rara, só acontece quando receio ferir a sensibilidade ocular de algum supositício esteta.


NB: Só aqui # links = 3  (lá está: mereceram)

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Já é coisa datada, coisa muito do blogo-fricote e, pior, tão déjà-visto que não se aguenta, mas, para quem esteja virado para o registo Maria, queres saber das últimas fofocas no eremitério?, permito-me sugerir o post abaixo, de seu nome Faz de conta que é uma tentativa light de exercício de restauração da homeostasia no egossistema de uma ignorante birrenta [Por uma vez sem exuberância pictórica]

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quinta-feira, janeiro 18, 2018

A beleza dos negros

[E, a despropósito, um cheirinho de David Helfgott, o pianista louco]




Como não repetir-me se todos os dias aqui escrevo e se a vida que tenho para contar é só uma, a minha?

Perdoem-me, pois, se estão recordados daquilo que hoje aqui vou reviver.

Ao lado de uma das minhas avós morava a Vizinha Modista. Havia a moradia de habitação, um pátio e depois um grande atelier envidraçado e de cujas janelas pendiam vasos com fetos. Lá dentro, naquele amplo espaço, trabalhavam outras modistas e ajudantes. A minha mãe, em adolescente, nas férias, chegou a andar lá, a aprender costura.

Por vezes a minha avó deixava-me ir para lá e, para me manterem entretida, punham-me a apanhar alfinetes, a enfiar linha nas agulhas, a apanhar linhas ou retalhos do chão; e andava de roda de uma e outra a ver o que faziam, fazendo perguntas, encantada com aquele mundo tão exclusivamente feminino. Aquilo de que eu lá mais gostava era da grande mesa de corte onde havia sempre pedras de giz para fazer as marcações e uma tesoura grande e preta em que uma das partes corria o tecido encostada à mesa, fazendo aquele belo e denso arrastar metálico. 

Segundo eu ouvia a minha avó a conversar com a minha mãe, a Vizinha era careira. Perfeita mas careira. Tinha clientes importantes, de entre as quais várias aristocratas que vinham de longe nos seus grandes carros guiados por chauffeurs. Vinham aos grupos. Uma delas era da idade da minha mãe e conversavam muito. Para as outras pessoas ela era a Senhora Condessa mas a minha mãe tratava-a pelo nome. Tinha muitos filhos. Saíam do carro, buliçosos, muito bonitos e muito alegres. Uma era da minha idade e tinha um nome que a mim me parecia atípico pois não conhecia ninguém com aqueles nomes e, muito menos, conjugados. Desde logo, para mim, aquele nome me encantou e, para sempre, ficou guardado dentro de mim. Foi o nome que dei à minha filha.

This is a portrait of Chaila. She is 23 years old. She moved from Equatorial Guinea to Europe all by herself five years ago. Her youth was very tough. Moving away to the west was a brave decision but she now is excited about her future. She studies and works as a mannequin in Belgium. She loves to cook, dance and sing and dreams of becoming famous

A Vizinha Modista, talvez pelo contacto com as suas clientes, tinha um porte também aristocrata e uma voz com um timbre melodioso mas imponente. Era baixa, forte, peito proeminente e tinha um cabelo preto, ondulado e sempre muito brilhante. O marido, que era muito alto e magro, era uma simpatia mas, ao pé dela, uma sombra. Ela, apesar da sua baixa estatura, irradiava superioridade, confiança, assertividade.

Tinha dois netos, um bom bocado mais velhos que eu, que cedo se emanciparam. Num tempo em que ainda ninguém sonhava com o Erasmus, ambos foram estudar para outros países. Nunca sabíamos bem por onde andavam. A neta era baixinha mas tinha um ar muito moderno, jeans justos, cabelo curtinho. Quando vinha de férias e ia visitar a avó eu ficava toda contente pois parecia que ela chegava de outro planeta. O neto vinha cada vez mais espaçadamente a casa da avó, gostava de andar a conhecer o mundo.

Mas eis que um verão a neta trouxe uma novidade: um namorado. Lembro-me dele: um choque para todos. Gigante. Fazia dois dela. E negro, negro, negro. Não se falava de outra coisa. O namorado da neta da Vizinha Modista.

Quando o vi fiquei estupefacta, maravilhada. Nunca antes tinha visto um negro. Um gigante negro e sorridente, com uns belos dentes brancos. Punha o braço sobre os ombros da namorada e ela desaparecia.

Yesni was born in Ethiopia and later adopted by Dutch parents. She is 26 years old. Her name means ‘one in thousands’. Yesni is an activist, performer and creator. She loves fashion and music.

Lembro-me da minha mãe comentar, irónica: Para a Vizinha foi um choque. Não confessa mas nem vale a pena. Basta repara naquele 'apesar': "é bom rapaz apesar de ser preto..."

Durante muitos anos, quando se falava de preconceito racial a minha mãe lembrava a vizinha: 'é bom rapaz apesar de ser preto'. 

Por onde eu circulava não havia negros: nas escolas onde andei, nem um. Nas vizinhanças, também nenhum.

Só já na faculdade. Angolanos. Lembro-me de dois. Esculturais. Negros, negros. Tinham uma little paixão por mim. Quando eu estava na cantina, eles vinham ter comigo. Um oferecia-me iogurtes, coisa que eu achava divertida mas que, por dentro, me enternecia. Para ele, um iogurte era qualquer coisa. O outro ficou muito zangado quando cortei o cabelo pois gostava muito do meu cabelo. Eram muito delicados, muito sensuais e bonitos. Os meus dois namorados não achavam graça nenhuma: quando chegavam ao pé de mim, estava sempre eu guardada por aqueles dois belos rapazes.

This is a portrait of Ninho. He is 29 years old. He moved to Europe from Angola 10 years ago. His family is still in Angola. He works in the entertainment business in the Netherlands and loves music and sports.

Voltei a encantar-me com um negro anos mais tarde. Era moçambicano, um jovenzinho que teria uns catorze ou quinze anos. Magro, alto, também muito negro. Inteligentíssimo, o melhor aluno que tive. Ainda hoje me lembro do nome completo dele, três nomes que se conjugam de forma muito musical. Eu tinha vinte e um anos (foi no segundo ano que leccionei) e ele pouco menos que eu. Mas, na altura, a mim parecia-me fazer diferença e impunha-me sem muita dificuldade. Se for ao google e escrever esse nome, aparecem-me vários e não faço ideia se algum é ele. Inteligente como era, imagino que terá uma profissão muito boa. E era muito bonito, uma gazela elegante e ágil.

Sempre achei que os negros (e as negras) são muito belos. A pele, as feições, a alegria. Tudo nos negros me parece extraordinário, esbelto, feliz. Sempre que posso, à socapa, fotografo negros de perfil. A primeira fotografia que aqui mostro foi feita por mim no domingo. Puxei pelas cores para obter mais contraste e para que o perfil do belo jovem sobressaísse ainda mais. Têm um perfil que geralmente é muito bonito. Há uma estética fascinante nos negros.

Não sei porque existe preconceito ou sentimento de superioridade em relação aos negros. Juro que não sei. Não faz qualquer sentido.

As três últimas fotografias são da autoria de Dagmar van Weeghel e mostram, de forma límpida, como são belos os negros.

This is a portrait of Penda Mbaye, 18 years old. Penda came to Europe eight years ago together with her sister. She and her sister reunited with their mother in Belgium after being apart for 5 years. Penda came from Guinea Conakry. She now studies in Belgium and loves fashion and cooking. She wants to travel the world.
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E permitam uma nota que injustamete é de rodapé. A RTP tem exibido documentários e filmes muito bons. Verdadeiro serviço público. Acabei de ver um documentário que me fascinou. Levei imenso tempo a escrever este post porque, ao contrário do que é costume, em que estou com um olho no burro e outro no cigano (e nada contra burros ou ciganos), desta vez dei por mim, esquecida da escrita e a ver atentamente o fantástico pianista David Helfgott. Se puderem, não deixem de ver: Olá, Sou o David!

Não vem nada aqui a calhar mas não consigo deixar de pôr: Gillian Murray fala do marido, David Helfgott.


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No post que se segue, poderão observar o meu estupor catatónico ao saber que há uma artista, Olek de seu nome artístico, que tem uma obra muito arraçada com a da Joana Vasconcelos. Dir-se-ia que uma delas anda a beber demasiado da outra. Ver para crer.

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