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sexta-feira, maio 04, 2012

De que serve um Estado se nele há cada vez mais mulheres que arrancam do seu ventre as crias antes de se tornarem gente? De que serve um Estado se nele as pessoas morrem mais de mágoa do que de acidentes de viação?


Música, por favor


Chopin - Nocturno nº8, interpretado por Maurizio Pollini



Frida Kahlo - O abraço amoroso entre o Universo, a Terra, eu,  o Diego e o Señor Xólotl


Nenhuma sociedade é perfeita e sempre haverá pessoas que, por circunstâncias diversas, são levadas a praticar actos limite. Não haverá nunca sociedades em que nenhuma mulher aborte voluntariamente ou em que nenhuma pessoa se suicide. Distúrbios, desenlaces trágicos, infelicidades, sempre haverá.

Por isso, o que permite aferir a ‘saúde’ de uma sociedade não são os indicadores em valor absoluto observados num único momento mas, sim, a evolução das ocorrências em valor relativo (ou seja, se, de ano para ano, a percentagem da população em que acontece o fenómeno que se observa aumenta ou diminui).

Os grandes objectivos de quem é responsável pela gestão da ‘coisa’ pública devem ser, entre outros, garantir o avanço civilizacional, a melhoria das condições da população, a melhoria do bem estar das pessoas.

Uma sociedade em que as pessoas perdem direitos alcançados ao longo de gerações, em que o nível de confiança e segurança decresce, em que a renovação geracional regride, havendo cada vez mais velhos e menos novos, em que há cada vez menos trabalho, em que o número de interrupções voluntárias da gravidez (IGV) aumenta (especialmente entre a camada das mulheres desempregadas), em que o número de suicídios já é maior do que o número de mortes por acidente de viação – é uma sociedade que não está a ser bem gerida. É uma vergonha de sociedade. É uma vergonha para nós que nos habituámos a aceitar esta vergonha.


Hieronymus Bosch - parte de O jardim das Delícias

É escusado haver um Estado e um Governo se é para isto: para a maioria da população viver cada vez pior, com menos dignidade, sem esperança.

E só não escrevo isto completamente angustiada porque não sou muito de me dar a angústias mas, como será fácil de perceber, isto revolta-me.


Fui e continuo a ser convictamente a favor da despenalização da IGV.

Pablo Picasso - Maternidade

Se há traço dominante em mim é o da maternidade. Sempre quis ter filhos, tive-os muito cedo e só não tive muitos mais porque não tinha a vida nada facilitada; ter-me-ia sido quase impossível ter disponibilidade para criar mais filhos da forma condigna e dedicada que entendo como indispensável.

Ter dentro de mim duas células que, milagrosamente, se foram desdobrando uma e outra e outra e outra vez - e eu sentindo que havia um serzinho a tomar forma e, depois, já era uma pessoazinha que eu sentia dentro de mim, os seus movimentos, as suas cabriolices e, no fim desse período de nidificação, senti-los a sair de dentro de mim - é qualquer coisa de transcendente que eu, e nenhuma mãe, trocaria por nada deste mundo.

Quando se tem uma criança a formar-se dentro de nós, todas nós nos sentimos portadoras do mundo, do futuro, da esperança, da alegria. E preparamos com infinito desvelo a sua chegada e tudo fazemos para que esteja bem tratado, bem agasalhado, bem arranjado, muito acarinhado, tudo, tudo de melhor.

Pablo Picasso - Mãe e Filho


Mas se, por desconhecimento dos métodos de planeamento familiar ou desestruturação da vida, quando engravidei, eu estivesse sem trabalho, sem dinheiro para sustentar uma casa, se o pai da criança estivesse nas mesmas circunstâncias, se estivéssemos sem esperança de ter uma vida melhor, só antevendo, na melhor das hipóteses, trabalhos precários que não dariam para poder pagar casa, creche, leite, enfim, para poder proporcionar ao bebé uma vida condigna – talvez, então, no meio da maior angústia e desespero, eu arrancasse de mim esse embriãozinho de gente porque mãe que é mãe não quer que o seu filho ande ao deus-dará, com fome, com frio, com doenças.


Paula Rego - da série dedicada ao aborto

Por isso, respeito quem interrompe a gravidez e sinto-me incapaz de julgar quem, em momento de desespero, assim decide.

Quanto ao suicídio é uma situação igualmente complexa. Amo a vida, abençoo todos os dias o dom de estar viva, eu e todos os que amo. Amo a vida, a terra, o mar, o céu, as árvores, os animais, as palavras – e amo em especial as pessoas, prodigiosos acontecimentos da natureza.

Renée Magritte - Memória


Mas, talvez, se estivesse doente, a sofrer, sem meios de subsistência, sem capacidade para viver dignamente, sem haver organismos ou instituições que me pudessem valer e na contingência de ter que causar transtornos continuados a outros, nomeadamente, prejudicando a vida dos meus filhos, aí, não sei.


Ou seja, não consigo fazer juízes de valor em relação a decisões tão pessoais, tão íntimas, decisões tomadas sempre em momentos de aflição e desespero. Mas consigo, isso sim, desejar que deixem de existir as condições que levam a essas decisões angustiadas.

Por isso, também, digo que Estado que é Estado zela pela sua população, por toda a sua população, evitando que aumente o número de pessoas para quem viver ou dar vida se torna insustentável. Senão mais vale não existir.

E interrogo-me: o que se está a passar em Portugal e em outros países do dito mundo desenvolvido para que a população esteja a ser saqueada, empobrecida, violentada nos seus direitos, a perder a esperança, a perder a vontade de se reproduzir, a perder a capacidade de sonhar - e tudo isto aparentemente apenas para o Estado pagar juros (que nem a dívida se está a amortizar)?


Hieronymus Bosch - O inferno



Como chegámos aqui?

Que monstros criámos?

Que sociedade é esta?

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Em momentos assim é mais difícil:
não dá para disfarçar o peso do mundo.
A angústia enrola-se na garganta como um agasalho usado,
e há toda uma vida (que pretensão!) a clamar por dentro
'porque me abandonaste?'


Em momentos assim é mais difícil
fingir que só se está a escrever um poema.

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O poema acima chama-se Momento, é de Luís Filipe Castro Mendes e pertence ao livro Lendas da Índia.

E: por falar em poesia, hoje o poeta que está de visita o Ginjal e Lisboa, a love affair é Bernardo Pinto de Almeida. Em volta dele voaram as minhas palavras ao som de Puccini, hoje pela voz de Andrea Bocelli.

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Bom... hoje isto não me saíu muito animado (aquelas duas notícias, a do aumento dos suicídios e a do aumento de abortos entre as mulheres desempregadas, incomodaram-me muito). Mas não deixem que isto estrague o vosso dia. Animem-se, vá... Afinal já é sexta feira! Tenham um bom dia, está bem?