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sexta-feira, janeiro 22, 2021

Covid -- previsões, apreensões.

Contra isso, falo com as árvores.
E vejo como se voa e encanto-me com a toada das palavras.

 



Quando se tem na família quem esteja ligado ao sector da saúde parece que as notícias chegam mais depressa e que, antes de as coisas serem notícia, já a gente antecipa os problemas que estão por vir. É preciso desligar um pouco para não ficarmos mentalmente reféns dos problemas presentes e futuros. Acresce que, quando temos um certo gosto pelos modelos, mal a gente vê uma sucessão de números, logo a intuição desata a fazer contas de cabeça. 

Depois chegam as notícias. E a gente vê que o que os profissionais de saúde temiam e o que os números antecipavam já aí está. E a gente vê as curvas que sabe serem temíveis e pensa que as rédeas já não estão na nossa mão. A besta anda à solta.

Antes, por alturas do verão e outono, eu dizia: 

Isto é fácil, há um limite: o número de vagas nos cuidados intensivos. É o fim da linha. Sabendo-se qual a percentagem estatísticas dos que chegam a esse ponto de gravidade, é fácil calcular qual o número máximo de infectados que o sistema comporta (não esquecendo, claro, de levar em linha de conta o tempo médio de permanência de um doente ali internado e a velocidade de crescimento do contágio). Sabendo esse número máximo, vai ser fácil saber o ponto em que o travão de mão tem que ser puxado. Confiava eu.

Fui pesquisar a caixa de correio e vi que foi no dia 12 de novembro que um leitor me escreveu a dizer "Li agora o que anda a escrever nos últimos tempos e fiquei preocupado. Não pode deixar que esta intoxicação de estatística diária a afecte dessa maneira.". Pois é. Por essa altura, eu andava preocupada pois achava que se estava a levar tudo na boazinha, achava que não estavam a perceber os riscos que estavam à espreita, achava que estava à vista que a desgraça ia chegar. 

Se, ainda por cima, temos agora esta nova estirpe, mais acelerada, então o que posso dizer é o óbvio, o que toda a gente sabe, é o resultado que está à vista: muitos doentes não vão ter lugar nos cuidados hospitalares. O número de mortos vai aumentar não apenas em números absolutos mas, também, em números relativos. Se no hospital há lugar para acolher diariamente x doentes e na realidade há x+Δ à espera, então há fortes probabilidades de haver um acréscimo de cerca de pelo menos Δ mortos x nº de dias em que há sobreprocura.

Mas, com estas preocupações e estes raciocínios em mente, chega-se a um ponto em que já custa ver as notícias pois vê-se acontecer aquilo que achamos que teria sido possível evitar e percebe-se que agora, com os limites ultrapassados e com variantes novas em campo, é tarde demais. Muitas vidas se vão perder e muito sofrimento não vai poder ser evitado. E se isso, matematicamente falando, é o mero resultado de meia dúzia de cálculos, já do ponto de vista humano é um traumatismo profundo, uma dor para quem passa por ela, um medo para quem assiste.

Claro que a matemática pura só existe em laboratório, em salas bacteriologicamente limpas. É que há tudo o resto: os constrangimentos sócio-económicos, as pressões políticas e mediáticas, as confusões que muitos opinantes causam. Os governantes não são cientistas em laboratório. São pastores de rebanhos desgovernados no meio de contextos poluídos. Muito difícil ser governante numa altura destas. Não os crucifiquemos. Não quereríamos estar no lugar deles.

Mas, confesso, talvez porque tudo isto me custa, já estou a atingir o ponto de saturação. Por exemplo, não consigo ter paciência para quem convida pessoas para estarem presentes em estúdio para uma entrevista e, mal se apanha com o poder de fazer perguntas, desata a portar-se como um inquisidor-mor, um julgador sumário, um bárbaro castigador. Convidar um governante é algo que faz os entrevistadores terem impúdicas erecções e, acto contínuo, passarem à fase da violentação das indefesas vítimas. Com o poder de conduzir a emissão e a entrevista, agridem, fazem sorrisos de gozo, investem como umas bestas. Uma coisa a que se assiste com repulsa -- isto quando se consegue assistir. 

Assim, em televisão já só consigo assistir a programas em que o entrevistador se porta razoavelmente, por vezes como pessoa de bem, e os entrevistados estão ali não para apontarem o dedo a quem fez assim e devia ter feito assado mas para explicar o que, para a opinião pública, não é claro ou, então, a darem perspectivas para o futuro. 

Por exemplo, assisti a uma parte da entrevista que José Alberto Carvalho fez ao Secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales. Este, com uma calma olímpica e a paciência de um santo, conseguiu aguentar os ímpetos censores e punitivos do jornalista. Do que vi, a entrevista, por responsabilidade do mau entrevistador, nada acrescentou. Pelo contrário, incomodou. Em contrapartida, Vítor Gonçalves, na RTP3, fez boas e úteis entrevistas a médicos que estão no terreno, um a norte, Roberto Roncon, outro a sul de que não fixei o nome, ao belo Pedro Simas e a Carlos Antunes, matemático. A decência e o profissionalismo começam a ser coisas raras em televisão.

Durante o dia não vejo televisão e à noite pouco vejo. Durante o dia não tenho tempo e, à noite, saturada, já pouco suporto.

E tudo isto é para mim também um enigma. O tempo passa sem que eu consiga fazer qualquer outra coisa senão trabalhar e existir. Em tempos -- que me parecem longínquos -- eu tinha tempo para me aperaltar, deslocar-me de carro pela cidade, trabalhar, almoçar em restaurantes, ir a livrarias ou lojas de moda, trabalhar, voltar a atravessar a cidade ao fim do dia, depois caminhar. E existir. Agora todo o meu tempo pessoal é sugado. Nada sobra. E não encontro explicação para isto. Os dias passam, os meses passam. Caminhamos para quase um ano disto. Se há um ano eu sonhasse com tal, imaginaria que me sobraria tempo para coisas minhas, para ler, para escrever, para descobrir novos interesses. Mas nada. Por vezes olho para mim no espelho e penso que se, passar muito mais tempo assim, ainda me arrisco a começar a envelhecer. Perspectiva excruciante. 

No outro dia, ao falar com o meu filho ao telefone, mostrei alguma preocupação por uma coisa. Espantou-se, incomodou-se, que era aquilo?, preocupar-me com coisas assim até parecia coisa de velha. Calei-me logo. Quando eram pequenos, eles diziam-me que eu não era como as outras mães, parecia muito mais nova. Ainda me lembro de, eu própria, ao falar com outras mães, achar que não tinha nada a ver com o que elas pensavam, achava-as conservadoras, velhas. E, mais tarde, quando conhecia as mães das namoradas ou namorados deles eu, sem querer, achava que elas estavam mais próximas da minha mãe do que de mim. 

Agora, fechada em casa, a trabalhar em contínuo, vendo o tempo a passar debaixo destas ameaças terríveis, sem saber bem como é que isto vai acabar, sabendo de tantos casos, de tantas mortes, sinto que um dia destes, quando der por ela, estou igual às mulheres que antes achava que pareciam da idade da minha mãe. Se calhar é um estado de espírito típico de pessoas confinadas. 

Li um artigo sobre hobbies a que as pessoas se entregam durante estes tempos de fechamento. Com que curiosidade o fui ler. Mas parece que nada me interessa. Procurar vida selvagem e fotografá-la. Por exemplo, pássaros. Ou ir para um bosque e procurar bichinhos. Ir correr com o cão. Assistir a peças de Shakespeare via zoom. Fazer receitas antigas. Fazer uma biblioteca no bairro. Pintar. Ir para o campo escrever. Apanhar folhas e fazer um álbum. Fotografar a mesma coisa ao longo do tempo. Coisas assim. E parece que nada disso me interessa.

Já é sexta-feira. Dantes as sextas-feiras eram dia de coisa boa, passear e jantar na praia, andar perto do mar à noite, o luar reflectido nas águas, a música da rebentação, a véspera do fim de semana, coisa promissora. Agora é apenas mais um dia igual a todos os outros. 

Não gosto de pensar assim nem de me sentir assim. Sinto que estou a ficar aquilo que detesto: uma seca. Não há pachorra. A ver se me ocorre alguma maneira de me sobrar tempo para mim e a ver se descubro maneira de o usar com prazer, de me entreter de gosto com coisa nova, inesperada. A ver se volto a ser capaz de sonhar.


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Para o post não acabar nesta onda down, bora lá:

Não é novo nem a primeira vez nem a segunda vez aqui mas, caraças, apetece-me mesmo ver. Tudo bom. Sergei Polunin dança "Take me to Church" de Hozier, uma realização do fantástico David LaChapelle para uma coreografia de Jade Hale-Christofi


E, por falar em Shakespeare, sem prestar atenção ao sentido, apenas pela toada, pela beleza das palavras

Patrick Stewart lê o 116


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Polvilhando o texto, pinturas de Georgina Ciotti

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Caraças. É sexta-feira. Saibamos aproveitá-la.

terça-feira, novembro 12, 2019

Sopa da pedra com um crime napoleónico e um cisne à procura de uma Leda à mistura





Recomeça a semana e só de pensar no programinha de festas que aí vem já me apetece evadir-me para outros territórios, quiçá para o meio da serra, entre arvoredo e sons da terra e dos ventos, quiçá hibernar num mosteiro nas terras frias, entre granitos, uivos de lobos, voos de águias, cheiro de flor de laranjeiras num pátio onde há, a meio, uma fonte de pedra. 

A manhã foi muito ocupada e a tarde de hoje não foi das piores mas, mais adiante, uns gabinetes a seguir ao meu, a coisa esteve preta. Gritaria, discussões acesas. Fiz de conta que não estava a dar por nada e deixei-me estar na minha, resolvi o que tinha resolver, reuni-me com quem tive que me reunir. E fizemos todos de conta que o elefante não estava ali ao lado. 
Não sei porquê, nos últimos tempos parece que não há conversa em que alguém não fale num elefante no meio da sala. As salas de Lisboa a abarrotarem de tanto elefante, nunca se viu coisa assim. Portanto, por contágio, também digo. Já disse, aliás. 

A meio da tarde, um dos envolvidos na refrega veio, num ápice, ao meu gabinete, fechou a porta, meio a correr e meio em voz baixa relatou o forrobodó. Depois saíu, agitado, avisando que a coisa ia continuar. E continuou. Quando saí, desci ao mesmo tempo que um colega que também fez de conta que não tinha ouvido a berraria que se ouviu toda a santa tarde. Falámos normalmente, ele contou peripécias divertidas e rimos. Temos todos esta camada de indiferença em cima de nós que nos impede de nos importarmos com maçadas alheias. 

Quando entrei no carro, era de noite e estava muito frio e uma grande ventania. Ao abrir o porta-bagagens voou de lá um saco de papel que não faço ideia o que lá estava a fazer. E o meu cabelo andou pelos ares, levitando em todos os sentidos. Já no carro, reparei que as árvores tinham a ramagem na mesma, tal qual o meu cabelo mas em verde. E eu pensei que um dia havia de experimentar uma cabeleira a fingir de ramagem de árvore. Tentei perceber que árvores eram aquelas: creio que jacarandás mas ainda longe de estarem floridos. E pensei que uma cabeleira de jacarandá em flor também haveria de ser bonito.


Estreei um casaco lindo, lindo, feito pela minha mãe. Estava a guardá-lo para o estrear numa cena que aí vem mas hoje não resisti. É uma obra de arte. Cor, cor, cor, um gosto. Contei à minha mãe que o casaco estava a ser um sucesso e ela ficou toda contente. Disse-me que nunca tinha feito nada tão difícil, e não pelo ponto em si mas pela montagem das peças. Eu disse-lhe que era uma obra de geometria e ela concordou. E, então, pensei que assim vestida, com aquele casaquinho lindo, ficaria muito à maneira com uma cabeleira feita de jacarandás floridos.

E vinha a conduzir, a atravessar Lisboa à noite, a ver as árvores a esvoaçarem a sua densa cabeleira, a ouvir uma música boa, nestes pensamentos, quando me ocorreu que só me faltava ter ali ao lado alguém que me fosse a ler um livro. Ou, ao contrário, ir alguém ao volante e eu a ler. Um serviço de taxi mas em que o condutor fosse apreciador de leituras e fizesse o serviço a troco de que alguém, a seu lado, fosse a ler. Parece-me uma boa ideia. Car sharing para gente de boas leituras. 
Já contei algumas vezes, acho eu: quando faço viagens maiores com o meu marido, gosto de levar um livro e ir a ler em voz alta. E ele também gosta de ir a ouvir. Acho um momento bonito de cumplicidade. E não sei se diga cumplicidade ou intimidade.

Mas, nisto do car sharing, o difícil seria convergir no livro a ler. Tenho aqui ao meu lado 'A arte da brevidade', contos de Virginia Woolf. Deve ser bom de ler, de ouvir ler. 
Também não sei se já contei que fico sempre um bocado embaraçada, para não dizer desconfortável, quando alguém, achando que eu sou dada a livros ou cinema, vem, todo contente, perguntar-me se já li dado livro ou se já vi dado filme. Geralmente é sempre tudo na base do mainstream. Daqueles que toda a gente lê ou vê. E eu não. E fico sempre com a sensação que a pessoa fica na dúvida se serei mesmo dada a livros ou a filmes porque nunca li ou vi nada do que me perguntam. E, como digo que não, a pessoa começa a gabar o produto, e o elogio é rasgado, coisa do melhor. E dizem: tem que ler. Ou tem que ver. Vai ver que vai gostar. E eu sinto que fico especada, sem saber como reagir, apenas desejando que a pessoa pare com aquilo. E já tantas vezes isto me aconteceu e ainda não aprendi. Não sei como reagir: ser franca? Não pode ser, poderia parecer que estava a menorizar o gosto da pessoa. Ainda passaria por arrogante. Armar-me em fingida e dizer que sim, que vou seguir o conselho? Não sou capaz. Nestas ocasiões sinto sempre que tenho algumas limitações sociais. 
E isto vinha a propósito de quê? Nem sei.


Ah. Outra coisa.

Lembrei-me agora de uma notícia que li, uma coisa sinistra, sinistra. Mas tudo ali puxa para a comédia. Um filme sinistro mas de gargalhada. Oleg Sokolov, um russo, condecorado, figura ilustre da intelectualidade, investigador e historiador. Gostava de se vestir de Napoleão, o seu ídolo, o seu objecto de grande estudo. Sessenta e tal anos. Apaixonou-se por Anastasia, uma aluna de vinte e poucos, uma jovem linda, que até alinhou na fantasia e vestiu-se à maneira para acompanhar o Napoleão. Viviam juntos. Até que um dia, a semana passada, discutem. E a discussão acaba mal. Dá-lhe tiros. Mata-a. No dia seguinte, há uma festa em sua casa. Mostra-se na maior, entretém os convidados, a rapariga morta na sala ao lado. Não contente com isso, sem saber o que fazer, perturbado, no dia seguinte corta-a aos bocados. E aqui entra o meu espírito de curiosa encartada: como é que um tipo normal consegue cortar uma pessoa aos bocados? Falo por mim: para cortar um frango aos bocados, em especial se for dos grandes, do campo, tenho que fazer uma força.... Faria se fosse uma pessoa (ai, credo!, só de pensar...). Bem, muniu-se de uma serra que, mais tarde, foi encontrada cheia de sangue, em casa, ao pé da cabeça da Anastasia que, vá lá saber-se porquê, também foi separada do corpo. Um pesadelo. Mas, então, não contente com  a habilidade, meteu os braços da rapariga numa mochila, juntamente com a arma, e resolveu ir atirá-los a um rio gelado. Só que, como estava podre de bêbado, ao dar balanço para atirar a mochila, desequilibrou-se e caíu ele à água. Nisto, uma pessoa que passava viu a cena e pediu ajuda. Quando estavam a salvá-lo, descobriram uns braços dentro da mochila. Imagino o susto que apanharam. A sumidade, em estado de total perturbação, contou que tencionava a seguir ir suicidar-se em grande estilo, vestido de Napoleão. Uma maluqueira pegada. Pena é a jovem -- ainda por cima, transformou a paródia em tragédia.


Bem.

Estava agora aqui com uma ideia em mente mas este post está tão sopa de pedra que acho que não comporta bife do lombo, que a ideia tem a ver com um livro que aqui tenho sobre Al Berto. Mas nem pensar. Há que respeitar. E é que nem vinha a propósito.

[Nem vou reler nem tentar captar a essência do que estou para aqui a escrever. Sei que não faz sentido mas, se o comprovo, não posso fazer de conta que não percebo que deveria era apagar tudo e recomeçar. Mas recomeçar com cabeça, tronco e membros (ai, bolas, que agora até parece trocadilho com o triste fim da namorada do Napoleão)]

Portanto, adiante.

Que venham os cisnes e que, por via das dúvidas, as Ledas deste mundo cubram as suas partes mais íntimas. Não é por nada mas é que consta que.


E se há por aí algum empedernido que acha que os cisnes não têm feelings pois que ponha os olhos neste aqui em baixo, uma tendresse viral.

A insólita relação entre um cisne nada franquista e o seu cuidador no El Escorial


Bom, não sei se a poesia ou a mitologia têm cabidela neste contexto mas, qual pedra para rematar a sopa, desculpem que aqui traga Leda e o Cisne, uma cena que já por mais de uma vez me inspirou (por exemplo, aqui).

Este é que o Tom O'Bedlam, um dia que me dê boleia numa noite de Lisboa, os jacarandás em plena revoada, havia de me ler baixinho com esta sua voz grossa e rouca, quase ao ouvido (para me fazer arrepiar).


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As fotografias que usei neste post são de alguém de quem as más línguas poderiam dizer que não bate bem da bola. Mas eu não acho. Chama-se David LaChapelle. O Sì dolce è'l tormento de Monteverdi é muito bem capaz de estar aqui a destoar mas o que é que eu hei-de fazer?

Mil desculpas mas hoje não consigo responder aos comentários: é tarde e tenho que madrugar. Aliás, já devia era estar quase a levantar-me. Li todos, gostei de ler, agradeço. Mas já sabem que não consigo responder a despachar e agora não tenho mesmo tempo para delongas.

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E uma boa terça-feira. E tenham juizinho, ok?
Ponham os olhos aqui na je.

terça-feira, novembro 20, 2018

Voa, Sergei, voa. Por muitos e bons anos.
Muitos parabéns, Sergei.
E obrigada.





Fiz ballet, e não foi a sério, quando era miúda. Era uma coisa ligeira mas a verdade é que adorava. Melhor: adorava em especial as festas de Natal em que recebíamos fatos especiais, adequados às coreografias. Lembro-me em especial da última em que participei. Eu era a abelha rainha e o meu fato era lindo, o tutu em tule amarelo. Eu tinha o cabelo comprido e tenho ideia que me fizeram tranças que prenderam à volta da cabeça. Os sapatinhos de cetim, com fitas em volta das pernas, eram para mim uma alegria. Quando a música despontava eu sentia uma emoção especial, como se estivesse prestes a ser transportada para uma outra dimensão. Mal podia esperar o momento de poder entrar em palco e dançar, dançar.


O meu corpo era fantasticamente flexível e as minhas pernas elevavam-se com a maior das facilidades ou rodavam atrás das costas, e os meus braços e as minhas mãos ganhavam aquela elegância própria das pequenas bailarinas. A professora chamava-me a atenção e eu notava como ela ficava contente por eu conseguir corresponder aos seus ensinamentos. Agora o meu corpo parece outro, parece que se esqueceu da sua anterior maleabilidade. De qualquer modo, embora fosse um gosto, o ballet para mim nunca foi uma pulsão, sequer uma necessidade. Mudei de escola e não me ocorreu, nem aos meus pais, manter-me no ballet. 

Mas continuei a gostar de ver ballet. Nunca fui muito devota de bailados tradicionais, muito certinhos e desengraçados mas também nunca me senti atraída por bailados experimentais em que não se vê elegância ou destreza mas apenas gente a rebolar-se no chão.


Há alguns coreógrafos que me são caros tal como há bailarinos que admiro muito. Sergei Polunin, o jovem ucraniano, é, para mim, na actualidade, um dos melhores. Com um metro e oitenta e um rosto e um corpo muito belos, Sergei é não apenas bailarino mas também actor e modelo. Em miúdo a mãe mudou-se com ele para Kiev para que ele pudesse estudar e, para poder fazer face às despesas, o pai de Sergei trabalhou em Portugal.


Sergei faz este diz 20 de Novembro vinte e nove anos. É um jovem. E um grande, grande bailarino.

E se aqui mostro o Take me to the Church, o vídeo realizado por David LaChapelle para uma coreografia de Jade Hale-Christofi, que já vai com mais de vinte e cinco milhões de visualizações, é apenas porque foi com esta coreografia que o imenso mérito de Sergei se propagou de forma viral. E, neste caso, ainda bem que o vírus se propagou desta forma tão alargada.



E quando o palco é pequeno demais para o grand pas de Sergei



Uma vida e longa e feliz, Sergei.

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Afinal acabo sempre por falar de ti


No balanço geral poucas coisas ficarão. Poucas. Claro que depende do tempo que haja para as enumerar.

De vez em quando lembro-me daquele momento um bocado assustador e do qual já aqui falei. Tinha saído da autoestrada e, para entrar numa estrada nacional, descia-se uma estrada de inclinação considerável até uma rotunda e da rotunda saía-se, então, para a estrada.

Quando iniciei a dita acentuada descida, percebi que tinha ficado sem travões. Eu a carregar no pedal e nada. O carro era daqueles todos cheios de electrónicas e com travão de mão inexistente pelo que fiquei sem saber a que me agarrar. Tudo aquilo se passou numa ínfima fracção de tempo. O carro descia desabaladamente e eu só tive tempo para pensar que a coisa ia acabar mal já que a rotunda estava sempre cheia de carros e camiões. Quando o carro chegou à rotunda percebi que podia passar entre carros desde que entrasse para dentro da rotunda. Passando desenfreadamente pelo meio do trânsito, galguei a rotunda, que era alta, e, nesse instante ocorreu-me que ia entrar pela chapa do monumento que estava a meio e que, se calhar, ia ser degolada. E pensei que podia estar a viver os meus últimos instantes e, nessa infinitésima fracção de segundo, pensei que nem tinha tempo de pensar capazmente nos meus filhos e no meu marido. 

O tempo que durou não se compara com o tempo que estou a levar a fazer a descrição. Foi um tempo de nada. Ínfimos segundos. Tudo tão rápido e, no entanto, deu para acontecer tudo o que aconteceu. Quando o carro embateu no alto passeio da rotunda, dispararam os airbags e foi um estrondo mas coincidiu com o estrondo do carro ter ido de encontro ao monumento e a uma árvore que estava ao lado, ficando entalado, inclinado, quase ao alto. Entretanto, encheu-se de fumo. Tudo ao mesmo tempo e a coincidir com aqueles breves pensamentos.

Não senti medo. Talvez porque não tenha tido tempo. Apenas constatei: Se calhar vou morrer. Ponto. E nem tenho tempo de pensar nos meus amores. Ponto.

Mas logo a seguir, com o carro ao alto, cheio de fumo, pensei: Olha. Não morri. 

E a seguir: Estarei bem?

Mas de imediato: Se calhar é melhor sair não vá este fumo querer dizer que o carro vai explodir.

Com dificuldade consegui sair do carro.

Olhei para mim, olhei para as minhas mãos, e pensei: Olha, parece que estou inteira.

E estava. Por uma sorte milagrosa, estava bem. 

A seguir fiquei com o peito dorido, as mãos e os pés também doridos, tenho ideia que roxos. Mas nada de especial. E isso foi depois. Naquela altura não tinha nada.

Começaram a parar carros, pessoas a virem a correr ter comigo, toda a gente a dizer que eu devia ir ao hospital. As pessoas deviam achar que o meu bom estado era aparente, que, se calhar, por dentro estava desfeita. Sosseguei-as, estava bem. Mas o carro não. O carro estava completamente espatifado (o seguro declarou perda total). E eu, ali ao lado, no meio da rotunda, inteira e de saltos altos, também inteiros. E só pensava: Ainda bem que não morri. É que nem tempo tinha tido para pensar capazmente nas pessoas de quem, em condições decentes, deveria fazer uma despedida mental como deve ser.

Mas agora imagine-se que, um dia com calma, me ponho a enumerar os momentos bons da minha vida, aqueles que quereria que estivessem sempre frescos na minha memória.

Claro que aí constaria o nascimento dos meus filhos que, por eu não querer anestesias nem cesarianas e por serem partos complexos, foram coisas do caraças pelas quais passei cheia de dores e exausta mas que acabaram em bem, proporcionando-me o presenciamento maravilhoso do milagre de assistir a duas pessoazinhas a saírem de dentro de mim. E constaria o casamento dos meus filhos, momento emocionante, eles, cheios de boas esperanças e de futuro, a iniciarem o seu percurso de vida. E constaria a suprema e redobrada alegria de os ver felizes com os seus próprios filhos, meninos queridos do meu coração. Mas constariam também as paixões intensas que vivi. E teria lugar de relevo o primeiro beijo trocado com aquele que se instalou feito um posseiro dentro do meu coração. O primeiro e tantos outros, tantos loucos momentos de paixão.

No balanço geral o que fica de verdadeiramente importante são os momentos bons passados com aqueles que amamos, os momentos em que a emoção nos envolveu de forma positiva e feliz, os momentos de carinho, de partilha, de motivação e realização. Fica o amor. Fica a paixão. Fica o sonho. 




Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos,
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com os seus passos,
afinal tão leves -- a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia do regresso: assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.



O poema é Afinal acabo sempre por falar de ti de Eduardo Guerra Carneiro in 'Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos', organização de José Mário Silva

A primeira fotografia provém do The Guardian onde dela consta a seguinte legenda:
  • Elinor Carucci’s Kiss, 2017
This image was commissioned for the viral New Yorker article Cat Person by Kristen Roupenian. Carucci is an Israeli American photographer whose previous work on motherhood gained her much acclaim
Photograph: Elinor Carucci/Courtesy of the artist and Edwynn Houk Gallery, New York and Zurich
A segunda e a terceira: 
  • Flores
Fotógrafo: Robert  Mapplethorpe


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A minha filha, logo que acabei de escrever, enviou-me uma sms perguntando-me porque ando a falar tanto de morte. Disse-me para eu bater na madeira. 

Não me tinha apercebido.

Mas hoje não é de morte que falo. Falo de balanços. Balanço geral. Não de balanço final. E balanços gerais a gente pode fazer todos os dias, mesmo sentindo-nos cheios de vida. Balanços a gente pode fazer para deitar fora da cabeça o que não presta e deixar florir o que é bom. Balanços a gente pode fazer apenas para pôr as coisas numa linha do tempo e perceber que tem que relativizar o que não interessa. Hoje é disso que falo. Do que é importante na vida.

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E a propósito

Façamos amor, não muros -- segundo David LaChapelle, com Sergei Polunin



E viva a vida.

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quinta-feira, outubro 26, 2017

De gelo e fogo à filial memória





Tu, que legaste uma mitologia
De gelo e fogo à filial memória,
Tu, que fixaste a tão violenta glória
De tua estirpe pirática e bravia,
Sentiste, com assombro numa tarde
De espadas, tua humana carne a fremir
Triste. Naquela tarde sem porvir
Te foi dado saber que eras covarde.
Na noite da Islândia, a amarga e salobre
Borrasca move o mar. Está cercada
Tua casa. Até as fezes engolida
A inesquecível desonra. Por sobre
Tua pálida cabeça cai a espada,
Tantas vezes no livro teu caída.


[de Jorge Luis Borges dedicado a Snorri Sturluson
Fotografia de David Lachapelle]

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Peregrina paloma imaginaria





Peregrina paloma imaginária
Que enalteces os últimos amores
Alma de luz, de música e de flores
Peregrina pomba imaginária


[Excerto de poema de Ricardo Jaimes Freyre
Madonna fotografada por David Lachapelle]

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Botão




Pardal Festo Festo
Entre as folhas verdes
Botão satisfeito
Vê que és seta lesto
Para o estreito cesto
Junto ao meu Peito

Pisco Giro Giro
Entre as folhas verdes
Botão satisfeito
Ouve o meu suspiro
Pisco Giro Giro
Junto ao meu Peito


[Tal como o poema do post seguinte: in Canções de Inocência e Experiência, William Blake. 
Tradução revista por Jorge Vaz de Carvalho, numa edição belíssima da Assírio & Alvim]

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