No post abaixo falei do atentado terrorista de Bruxelas e de como me parecem fátuos os fogos de indignação que se elevam pedindo que seja olho por olho, dente por dente. Quando escrevo sobre estes temas dói-me a impotência que sinto por me sentir fechada num mundo manietado por gente estúpida.
Por isso, se me permitem, mudo de registo, parto para outra. Sinto necessidade de respirar ar puro. Ou de me alienar - como queiram.
Por isso, se me permitem, mudo de registo, parto para outra. Sinto necessidade de respirar ar puro. Ou de me alienar - como queiram.
Milhões de horas já foram certamente despendidas a definir arte e nenhuma foi a definitiva nem alguma vez será. Identicamente nunca será definida de forma última a escala de valor para a arte. Estamos no domínio da subjectividade e cada um fala por si. Pode o ‘mercado’, como um deus cego, desprezar uns ou idolatrar outros, podem os homens, alguns, tentar impor algum nivelamento ou ditar modas, podem os tempos estabilizar numa relativa uniformidade de apreço e tudo isso, de alguma forma, estabelecer uma base valorimétrica -- mas uma coisa será sempre certa: nada disso será alguma vez passível de definição ou explicação inequívoca.
A olhos leigos tudo é relativo. No outro dia, na Casa da Cerca, em cima dos bancos de pedra, junto à janela, estavam uns rolos de pano ou umas coisas com cordas (já não me lembro bem e, pelas fotografias, não consigo perceber). Percebi que era uma instalação da Ana Vidigal.
Não percebo se tem valor comercial ou se tem algum sentido ou valor estético. Podia não ter mas eu gostar. Contudo, a mim nada me diz. E, no entanto, Ana Vidigal é um nome sólido nas artes nacionais. Também há umas duas semanas, ao vermos uma exposição de peças atípicas ou vídeos do além, deparámo-nos, junto a uma das paredes, com um balde e uma esfregona. A minha filha, na brincadeira, perguntou se seria também uma obra de arte e os miúdos olharam para saber a resposta, talvez admitindo que pudesse ser. E não sei se era. Também na Casa da Cerca vi descrita como escultura uma ‘cena’ que era um grande livro com pedras entre as folhas.
Olho esse género de coisas com estranheza. No entanto, várias pessoas acharam normal ou gostaram e por isso as expõem. Não sou fundamentalista, não me choca, não generalizo: apenas passo à frente.
Olho esse género de coisas com estranheza. No entanto, várias pessoas acharam normal ou gostaram e por isso as expõem. Não sou fundamentalista, não me choca, não generalizo: apenas passo à frente.
Mas já me aconteceu muitas vezes ficar caída de amores por uma peça de arte e ver, com espanto, que os outros a olham com indiferença ou desprezo. Tantas vezes isso.
Nessas alturas tenho que refrear os pensamentos que, indignados, ladram no meu ouvido: ‘há com cada uma… quem diria que me ia sair um burro encartado desta maneira…?’. Depois censuro-me, penso que gostos não se discutem, que não tem nada a ver e penso, uma vez mais, que tenho pensamentos que me deveriam envergonhar.
Um dos artistas que encaixa neste género é Rui Chafes. Gosto dele. Mas conheço pessoas que o acham desinteressante, pouco artista. Contudo, as suas obras têm, a meus olhos, uma beleza intangível que não sei situar em categorias ou descrever por palavras.
Para já, têm aquilo que me atrai: não se parecem com nada. E é disso que eu gosto: aprender formas, corpos, sombras, desequilíbrios.
Explico-me. Se virmos a estátua de Catarina de Bragança na Expo, cuja fotografia há tempos aqui coloquei, perceberemos o que quero dizer: é perfeita, uma mulher bonita esplendidamente passada para um material que a perpetuará.
Acho interessante que se queira eternizar a imagem de algumas pessoas em pedra ou metal. Contudo, estátuas como esta deixam-me indiferente. É quase como ver uma fotografia a três dimensões. Nada de extraordinário, apenas a mestria de quem fez o exercício.
Acho interessante que se queira eternizar a imagem de algumas pessoas em pedra ou metal. Contudo, estátuas como esta deixam-me indiferente. É quase como ver uma fotografia a três dimensões. Nada de extraordinário, apenas a mestria de quem fez o exercício.

Desde que tive contacto com a obra de Rui Chafes logo me senti intrigada, e do pasmo logo nasceu a vontade de ver mais, para me admirar, para não reconhecer o que de indefinido cobre aquelas peças. E logo senti que as suas palavras seriam também assim, estranhamente vindas de dentro da terra, do fogo dos elementos, fascinantes como se incompreensivelmente familiares.
Portanto, sempre que vejo as suas palavras escritas logo me abeiro, e logo vou como se entrasse num lugar desconhecido, esperando ser surpreendida: talvez uma gruta com figuras suspensas, jogos de luzes místicas, água correndo em silêncio, caminhos levando ao centro do mundo ou procurando a luz, reflexos de origem obscura.


Este livrinho parece um missal. Pequeno, escuro, uns tons de azul que encerram o mistério das palavras de Rui Chafes, compacto como retratando a personalidade e a obra do escultor onde nada parece supérfluo, onde parece haver uma coerência intrínseca. Sou muito sensível ao grafismo, ao toque dos livros. Falo de ‘Sob a Pele’, Rui Chafes, conversas com Sara Antónia Matos, uma edição Documenta, Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar.
O primeiro prazer começa logo na dimensão, o sabê-lo transportável dentro da carteira. Anda comigo. Assim que posso, abro-o, leio umas palavras ao acaso -- como agora.
O artista é um predador?
Pode dizer-se que o artista tem um olhar de rapina. Dou, muitas vezes, por mim a olhar obcecadamente para um pormenor de uma pessoa, de uma planta, de uma parede, de um edifício, do que for. Fico parado a estudar a forma como a sombra de uma coluna se projecta no chão, fico preso nas qualidades de um determinado material, pode até ser o puxador de uma porta, por exemplo. A atenção pode deslocar-se, simplesmente, para um gesto da pessoa, uma ruga, um traço de expressão, um dente, uma mão, para a forma como o cabelo de uma rapariga cai sobre o pescoço, etc. Deixo de ouvir, momentaneamente, o que a pessoa está a dizer, o olhar torna-se mais importante.
Sempre defendi a ideia do artista-ladrão (talvez predador, como dizes). O que um bom artista faz é roubar imagens ao mundo e esconder as provas. É o roubo perfeito, no caso dos melhores artistas .... [sorriso]
O artista é um predador?
Pode dizer-se que o artista tem um olhar de rapina. Dou, muitas vezes, por mim a olhar obcecadamente para um pormenor de uma pessoa, de uma planta, de uma parede, de um edifício, do que for. Fico parado a estudar a forma como a sombra de uma coluna se projecta no chão, fico preso nas qualidades de um determinado material, pode até ser o puxador de uma porta, por exemplo. A atenção pode deslocar-se, simplesmente, para um gesto da pessoa, uma ruga, um traço de expressão, um dente, uma mão, para a forma como o cabelo de uma rapariga cai sobre o pescoço, etc. Deixo de ouvir, momentaneamente, o que a pessoa está a dizer, o olhar torna-se mais importante.
Sempre defendi a ideia do artista-ladrão (talvez predador, como dizes). O que um bom artista faz é roubar imagens ao mundo e esconder as provas. É o roubo perfeito, no caso dos melhores artistas .... [sorriso]
Ainda dentro da temática do corpo, o que separa desejo e pornografia?
Distância. Tenho de falar de distâncias, é isso que está em causa.
O erótico envolve poesia e esta nasce, ou advém, da distância (...). A poesia é sempre um passo no sentido da impossibilidade e, portanto, se não houver esse espaço de inacessibilidade, que separa o sujeito do objecto pretendido, não há poesia nem erotismo. Há um colapso entre sujeito e objecto, que resulta da anulação da distância, e que corresponde ao 'já', ao 'aqui e agora', e à consumação imediata do acto ou do pensamento pornográfico.
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Viagem aos confins de um sítio onde nunca estive
Filme de João Mário Grilo
sobre a exposição 'O Peso do Paraíso' de Rui Chafes
CAM -- Centro de Arte Moderna, Lisboa 2014
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Lá em cima Renée Fleming, com a Prague Symphony Orchestra, interpreta 'Morgen' de Richard Strauss
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E permitam que me repita: para temas tristemente actuais queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde afloro o que penso sobre a forma como acho que deveríamos olhar para isto do terrorismo na Europa (e só falo da Europa porque, se disto porque entendo, imagine-se a minha ignorância relativamente a outras geografias)
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