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quinta-feira, agosto 15, 2019

O segredo por detrás dos dons divinatórios de Dave, o mago.
[Ou como os mágicos, cartomantes ou espiões têm agora a vida facilitada]
Ora vejam, por favor.
Ah, e já dei nome ao meu folhetim: 'A Agente Secreta'.




Andava sem saber que nome dar à minha história. E chamo-lhe história sabendo que história não será bem o termo. Folhetim. Talvez folhetim como nas vezes anteriores em que me deu para ficcionar. Não sabia que nome dar a este folhetim. Ao escrever cada episódio nunca sei onde vai dar e, por isso, não sabia se ia contar a história do Manel, a da Clara, a do roubo de informação sensível, ou a de viver uma vida de segredos ou o quê. 

Mas hoje acordei com um nome. Como tantas vezes, é no escurinho de uma noite de sono que se me faz luz. E foi, de novo, o caso: acordei a pensar que lhe ia dar o nome de 'A agente secreta'. Simples. Sem rodeios. Claro que o título, em si, encerra uma subtileza mas isso é coisa que, cá para mim, é muito bem capaz de ficar só para mim. Neste momento ainda não sei se conte mais uma ou outra coisa ou se já chega. A bem dizer nem sei se, de facto, até já não disse demais. Mas já disse, está dito. 


E conto-vos mais: já me chamaram a atenção para que me estava a esticar, que tivesse cuidado, que há coisas que não são para ser reveladas. Não acho. E sou assim: se sinto que tentam constranger-me, esperneio. Esperneio às claras, dou um chega para lá. Preciso de espaço e sei o que faço. Podendo parecer que digo demais, na realidade só digo o que considero que faz sentido ser dito. E o que contei no meu humilde folhetinzinho é coisa pouca, nada, só efabulações. Nada daquilo aconteceu. Pelo menos não a pessoas com aqueles nomes.

Enfim. Agruras cá minhas.

É como eu saber, quase antes de se saber, que o Pardal não é flor que se cheire e que é bom que quem tem o caso em mãos se despache para que quem ainda não percebeu o que ali está fique rapidamente a saber quem é o 'artista' que está a armar toda esta baderna. E não é que tenha pena do Bloco de Esquerda ou do PSD ou de todos quantos ingénua ou oportunisticamente apoiam o Pardal e as suas 'habilidades': tenho, isso sim, pena dos motoristas, dos trabalhadores honestos que não sabem com quem se meteram e a quem esta brincadeira vai sair cara.


Mas o tema deste post é outro. Tem a ver com a forma como nos movemos, como agimos. Tem a ver com a forma como nos colocamos a jeito. Como nos tornamos vulneráveis. E aqui uso o nós  -- que não é majestático mas, apenas, humilde -- apenas para que não pareça que me sinto acima das armadilhas que aí estão a cada passo. 

Vejam, por favor, este vídeo. Vejam com atenção. E aceitem, por favor, a minha sugestão: pensem.


Facebook, Instagram, até o WhatsApp: a vida toda exposta, tudo registado, partilhado -- conversas, fotos. Mesmo o LinkedIn. Tudo. O que se faz, por onde se anda, por onde se andou, aquilo de que se gosta,  as pessoas com que se dá. Dir-se-á: há coisas que são privadas, apenas para quem faz parte do grupo. Pois, pois. Poderia explicar como um amigo passa a outro que passa a outro... até que vai parar onde não se faz ideia. Mas acho que não são precisas muitas explicações.

Poderia ainda referir a vida facilitada que agora têm todos os que, por um motivo ou por outro, pretendem obter informação sobre alguém. Mas também acho que não são precisas grandes explicações. Dá para perceber.

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E agora vou pensar se acrescento mais algum bocadinho de prosa à 'Agente Secreta'. Mas não é fácil: como dizer o que não pode ser dito sem que me desnude?

E espero que gostem das pinturas de Jason Anderson tal como espero que gostem de ouvir Leonard Cohen com Hey, That's No Way To Say Goodbye. É que, por vezes, não há maneira de dizer adeus.  E eu detesto dizer adeus. Por isso, não vou dizer. Nem agora nem amanhã, ao acordar. Se calhar, nem nunca.

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quarta-feira, agosto 14, 2019

História encerrada
(?)


O que lerão mais abaixo vem no o seguimento de Manuel, o grande executivo, caíu numa armadilha 
que se seguia a Confissões. Meias confissões. Algumas omissões.
que já vinha no seguimento de Logo quando o cerco estava a apertar-se...
que veio a seguir a Manel contrata Clara que, por sua vez, 
vinha no seguimento de  Como definir o que não pode ser dito?
que já se seguia a A oradora-surpresa 
que foi, afinal, o início disto tudo


Não tardará terei que parar. Há fins de histórias que não podem ser revelados. E há histórias que não têm fim porque há nelas coisas que são eternas. Mas, enquanto não me interrompo (ou não sou interrompida), vou tentar avançar um pouco mais. No entanto, pouco mais há a contar.

Ou, pelo contrário, será que está tudo por contar?

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E foi assim que fiquei a saber que, de vez em quando, cada vez menos espaçadamente, o Manel era intimidado: quando menos esperava, como que aparecendo do nada, alguém lhe mostrava o vídeo em que lá estava ele naquela fatídica bem regada e louca noite de sexo com a correspondente de um órgão noticioso estrangeiro. Começou a ter ataques de pânico, mal dormia. Questionava-se sobre se estaria na altura de contar à mulher. Tremia de medo da reacção dela. Dela e dos filhos. E de toda a gente. Como poderia ter ele caído numa daquelas? Mil vezes lamentava o que tinha acontecido. Mil vezes se objurgava. Mas foi protelando a confissão, iludidamente na esperança de que tudo aquilo não passasse de um pesadelo. Mas não era apenas um pesadelo, era, na realidade, também um cerco.

Até que um dia, numa reunião com os representantes jurídicos de um sindicato bancário relacionado com uma operação de refinanciamento, no fim, um dos advogados pediu se poderia dar-lhe uma palavrinha. Nem lhe passou pela cabeça o que iria acontecer. Quando estavam os dois sozinhos, o advogado, por acaso de um outro país, disse-lhe (em inglês, que era a língua que adoptavam nestas reuniões): ‘Sabe o que se passa, não preciso de fazer uma introdução nem de lhe mostrar. Sabe que a prova está por todo o lado. Não se assuste. Saberemos ser discretos. A sua protecção é a nossa segurança. E não queremos nada de mais, queremos apenas que nos mantenha informado. Até à data em que tivemos acesso a todos os seus mails e documentos, sabemos tudo. Como já tem o seu computador protegido e reforçaram a segurança na vossa rede interna, já não queremos ir por aí. Daria mais trabalho e, como pode imaginar, não gostamos de correr riscos. Agora queremos manter-nos actualizados por outra via. E é simples: coloca os documentos ou informações relevantes numa pen e deixa-a onde lhe dissermos. Uma vez por semana. Mesmo se não houver nada de especial, deixa na mesma. Como sabe, teremos maneira de confirmar.’
O Manel contou-me que se sentiu a fraquejar. Apavorado. Quando alguém se sente seriamente ameaçado e sem escapatória, fica geralmente sem forças. É o que acontece, tantas vezes, em casos de assalto, ataque, violação. A vítima perde a força até para gritar, até para reagir. Paralisa. Assim estava ele. 
Nem sabia que lhe tinham apanhado o conteúdo do computador. Ficou a saber naquela altura. Sabia, sim, que tinha havido uma série de tentativas de intrusões na rede informática da empresa e que algumas equipas de experts tinham sido chamadas para reforçar os controlos. Mas não sabia que justamente o seu computador tinha sido pirateado. Nem sabia como é que alguém tinha descoberto isso (e, disse-me a Clara: 'Podes ficar descansada que. pelo menos por mim, não ficou a saber'). Tal como não tinha querido acreditar que a cilada em que tinha caído não era acto isolado de uma mulher perigosa. Tinha estado no centro de uma bem urdida operação e, até ver pela primeira vez o vídeo, nem sequer tinha desconfiado de nada.
O advogado, certamente habituado a manobras similares, não deve ter estranhado o estado de total apatia e torpor em que Manel mergulhou, tendo apenas dito o local em que ele deveria deixar a pen no dia seguinte ao fim da tarde e qual a respectiva chave de encriptação.

Confirmei: ‘E isto foi o Manel que te contou isto, certo?’

'Foi', e Clara pareceu hesitar, mas apenas por uma fracção de segundo. Depois falou com firmeza. ‘A duras custas mas foi. Acabei por conseguir que confiasse em mim. Percebe-se que é uma pessoa fechada, muito reservada, e, com tudo o que lhe estava a acontecer, sentindo-se cercado, acossado, ainda mais desconfiado ficou. Compreensível. Foi com muito esforço e muitas, muitas horas de conversa -- e de silêncios meus, para que ele não pensasse que eu queria saber alguma coisa -- que, aos poucos, foi desabafando. De início, por meias palavras, mudando de assunto, desvalorizando o que dizia, como se fossem hipóteses académicas. Só nos últimos dias, porque verdadeiramente atormentado, com vontade de confessar à mulher o que tinha acontecido e decidido a pedir a demissão, é que me contou tudo. Tudo. Tudo, tal como te estou eu agora a contar a ti.’

'E entregou quantas pens?’, perguntei.

Clara reagiu com firmeza,´Nenhuma.'

Não facilitei, 'Foi ele que te disse ou és tu que achas?'

Clara tentou disfarçar um leve tom de irritação: 'Não percebes. Ele estava decidido a enfrentar as consequências. Percebeu muito bem que a desistência do Fundo teve a ver com o que lhe estava a acontecer. Já tinham a informação toda que queriam, para quê continuarem com o disfarce da due diligence? Nunca estiveram interessados. Estavam interessados era na tecnologia, no mercado, nas operações. Quando se apanharam com tudo deixaram-se de conversas. Quantas vezes já vimos disto? E o Manel percebeu que agora estavam era contar com ele e resolveu portar-se como um homem. Foi no dia em que teve o enfarte.’

Não sou de muitas complacências: ‘Como um homem? Deixa-me rir. Estás muito benevolente, ó Clara. Então furou todas as regras de segurança, deixou que entrassem no computador dele e se servissem à vontadinha, depois, como se não bastasse, deixou-se envolver numa cilada que nem um patarata das berças… e vens dizer que resolveu portar-se como um homem…? Estás a brincar. Como um homem de calças na mão, queres tu dizer.’

Clara encostou-se à parede e, por um brevíssimo instante, fechou os olhos, como se querendo ver-se livre desta história. Mas logo voltou a si, abreviando a conclusão: ‘Deixa. esquece. Acabou. A coisa já escalou. Por isso, por agora vai parar. E o que os outros sacaram, já está sacado, nada a fazer a não ser diplomaticamente -- e, do que sei, está em curso. Mas isso já nos transcende. E ele agora tem é que se pôr bom e tomara que consiga recuperar. Aquilo não foi coisa pouca, como sabes. Coitado. Já vistes como um homem normal de repente vê a vida desgraçada?’ E respirou fundo. Cansada.

Olhei para ela sem dizer nada mas, apesar de não o demonstrar, também eu estava com alguma pena dele. Uma pessoa que se veja presa numa situação destas sente sempre medo, sente que a sua liberdade de movimentos está cerceada, é angustiante, há uma permanente sensação de que uma ameaça está a rondar por perto, de que a vida que se tinha antes acabou e de que a que se está a desenhar estará sempre presa por um fio. E se a isso se juntar o arrependimento, então a coisa fica verdadeiramente difícil de suportar. E se, em cima, para cúmulo dos cúmulos, acontecer um sério acidente de saúde, então a coisa fica, de facto, complicada. A sensação de queda num abismo. Pobre Manel.

No entanto, fosse como fosse -- e independentemente da pena que sentia dele -- estava era, sobretudo, incomodada por saber que ela não estava a dizer toda a verdade.

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Não sei se escolhi bem a Isabelle Huppert e o Clive Owen para serem a Clara e o Manel. Olho para eles e fico na dúvida.

Também chego a este ponto sem explicar porque gosto de aqui ter o Malandain Ballet Biarritz. 

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E não sei ainda se esta história vai ter continuação. Talvez tenha. Talvez não tenha.

terça-feira, agosto 13, 2019

Manuel, o grande executivo, caíu numa armadilha


O que lerão mais abaixo vem no o seguimento de Confissões. Meias confissões. Algumas omissões.
que já vinha no seguimento de Logo quando o cerco estava a apertar-se...
que veio a seguir a Manel contrata Clara que, por sua vez, 
vinha no seguimento de  Como definir o que não pode ser dito?
que já se seguia a A oradora-surpresa 
que foi, afinal, o início disto tudo


Retomo. Tentando manter alguma distãncia, tentando não expôr demasiado o que supostamente deve ser mantido na penumbra, vou ver se adianto um pouco mais desta história que, a bem da verdade, não se pode dizer que seja exactamente uma bela história.

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E encontrámo-nos. Eu e Clara. Como sempre, por mero acaso. Clara contou-me o que eu já sabia desde o início: alguém do país P 
(não posso dizer qual país; e ‘alguém’ também não será exactamente uma pessoa mas talvez um grupo de pessoas de uma empresa desse país, integrada na estratégia expansionista desse país) 
tinha obtido informação confidencial, completa, da nossa empresa. Tinham em seu poder o plano estratégico, o plano operacional, o project finance, relatórios de investimentos, estudos de mercado, análises detalhadas de custeios, os pricings nas diferentes geografias, os desenhos técnicos, etc. Tudo.

Do que se sabia, o computador do Manel tinha sido pirateado. Contrariamente às recomendações, não estaria encriptado. Também contrariamente a todas as recomendações teria usado as redes wifis abertas dos aeroportos e dos hotéis, o que, é mais do que sabido, é autêntica via verde para os hackers se servirem à vontade. Nada que espante quem acompanhe estas cenas: com receio de não se desembaraçarem sozinhas quando estão em solo estrangeiro, muitas pessoas aliviam nas medidas de segurança e são, sem o saberem, um apetecível alvo para quem procura informações críticas. E se só isso já seria grave demais, o pior foi o que ainda aconteceu em cima disso. 

A palavra a Clara: 'Nada de novo. Dos livros, estás a ver. Numa das viagens, uma mulher ao lado dele. A lição bem estudadinha, coincidências, afinidades, ele surpreendido com tantos pontos em comum. Mutuamente agradados, apresentam-se: ele diz quem é, onde vai, o que vai fazer. Ela diz que é correspondente. Mostra entusiasmo. Podia até preparar um artigo sobre as andanças dele pelo mundo dos negócios. Ele diz que não, que não tem interesse. Ela diz que tem, que ele tem até muito. Ele fica cada vez mais agradado. Morde o isco. Só se for não sobre ele mas sobre a empresa, coisa geral, sem pormenores. Ela acha bem, diz-lhe que seria bom em termos de imagem, sairia um artigo numa plataforma de referência lida em todo o mundo. Ele acede. Tudo a bem da empresa, disse ele. Sabes como é. Qual o homem que resiste à perspectiva de adulação por parte de uma mulher interessante? Nem tem a ver com ser bem ou mal casado. Sabes: aquela vontade de aproveitar o tempo, em fazer parar o tempo que passa, aquele prazer em experimentar uma aventura, o gosto em aflorar o interdito, o querer voltar a sentir o coração a bater como na adolescência. Sabes. A adrenalina de quem atravessa continentes, de quem enfrenta desafios. O consolo de um abraço apaixonado. Sabes como é.'

Eu ouvia-a em silêncio. Falava com tal paixão no olhar, tentava de tal maneira conter a emoção na voz que pensei que Clara falava dela própria.

Talvez percebendo o que eu estava a pensar, continuou mas em tom neutro, sorrindo, creio que simulando alguma complacência: 'Tudo by the book: trocaram contactos. Jantaram. Foram para um bar. Continuaram a conversar. Ele é um bom conversador. Ela pediu para gravar, para o artigo. Ele não viu mal. Havia jazz. Beberam. Ouviram, quase in love. No dia seguinte, à noite, quando ele já tinha cumprido a agenda, voltaram a encontrar-se. Repetiram. Uma boa companhia, ela. Animada. Ele todo inchado com o interesse dela. Continuou a conversa, continuou a gravação. Só que a noite acabou no quarto dele. Estava-se mesmo a ver, não é?'

Eu ouvia sem surpresa. Por mais avisados que estejam, é só aparecer quem queira que parece que caem sempre. E Clara tinha razão: quanto mais reservados, mais vulneráveis.

Conclui eu: 'E, portanto, deixa-me lá adivinhar: dias depois ele recebeu um porno-vídeo com aquela noite caliente?'

Ela fez que sim com a cabeça. 'Sim. Previsível, não é? Claro que ficou para morrer. Apavorado. Arrependido. Sem perceber o que lhe tinha acontecido. Ela tinha credenciais de correspondente. Tudo tão credível. Qual o propósito? Seria uma doida? Seria perigosa? Ficou atormentado temendo as consequências, tentando adivinhar se haveria próximos episódios de um filme que poderia ser de terror.'

Encolhi os ombros, sem qualquer pena: 'Caem que nem uns patos e depois, quando percebem que caíram na esparrela, ficam com medo. Totós. E depois que haja quem, na penumbra, vá atrás a limpar a porcaria que fazem. Estúpidos.'

Clara concordou, sorrindo de forma que pareceu irónica: 'Isso, na penumbra. Saber toda a espécie de histórias e fazer com que as histórias se esfumem.'

E continuou: 'Dias depois, numa outra viagem, num aeroporto de escala, um fulano qualquer dirigiu-se-lhe falando em înglês, dizendo-se partner de uma consultora que em tempos tinha trabalhado na empresa, que o conhecia, que até tinha tido reuniões com ele. O Manel desculpou-se, que conhece tanta gente, que talvez, quem sabe. O outro explicou que estava a preparar um business plan para um grupo internacional, que andava a colher informações. E, de repente, como se tivesse recebido uma notificação no telemóvel, pediu desculpa, olhou. E, vendo, fez um ar espantadíssimo. E disse: 'Esta é boa, um vídeo, diz que é urgente, deixa cá ver. E pôs o vídeo em play e, fazendo-se espantado, mostrou-o ao Manel. Estás a ver, não estás...?'

Estava a ver, claro. Não era difícil. 'Deixa-me adivinhar. Estarrecido, completamente aterrorizado, o Manel viu-se de novo como protagonista de um vídeo do mais escabroso que se pode imaginar...?'

'Bingo', confirmou a Clara.

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Não garanto que Clara seja completamente parecida com Isabelle Huppert e o Clive Owen, por acaso, nem é nada parecido com o Manel. Mas como nem a Clara é Clara nem o Manel é Manel, talvez faça sentido assim

E continuo com o Malandain Ballet Biarritz, desta vez com Marie Antoinette. Soa-me bem enquanto escrevo. E as coreografias são tão boas e dançam tão bem.


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E talvez continue.

sexta-feira, agosto 09, 2019

Confissões. Meias confissões. Algumas omissões.


No seguimento de Logo quando o cerco estava a apertar-se...
que veio a seguir a Manel contrata Clara que, por sua vez, 
vinha no seguimento de Como definir o que não pode ser dito?
que já vinha se seguia a A oradora-surpresa



Persisto. Tenho esperança de que hei-de conseguir chegar a bom porto sem ser indiscreta ou inconveniente. Tenho esperança que, ao menos, isto não seja aborrecido de ler. Mas não será?

Que história que não é história é esta? Posso falar de amigos e colegas e dos abismos que atravessaram sem ser desleal? Poderão vocês perdoar-me ao perceberem que talvez eu seja um bocadinho perigosa?

Enfim.

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O Manel sofreu um enfarte. Foi levado numa ambulância, esteve mal. Não podia receber visitas. Só a mulher, os filhos, os irmãos, mas apenas um de cada vez e por pouco tempo.

A secretária quase adoeceu, tanta a preocupação, tanto o abandono que sentia, sem saber o que seria dele e o que seria dela sem ele. Todos os dias ela falava com a mulher, ia acompanhando a evolução do seu estado de saúde e era através dela que nós todos, na empresa, íamos sabendo.

Todos, incluindo a Clara. Nesse fatídico dia, sabendo que ela ia lá, liguei-lhe logo. Ficou preocupada, como é natural. E talvez mais do que preocupada: arreliada. Sei como é: quando a equação está prestes a ser resolvida, nada como entrar areia na engrenagem fazendo atrasar a descoberta da incógnita para nos deixar na maior das frustrações.

Uns dias depois, ligou-me. Disse-me que tinha estado no hospital.
Fiquei admirada. 'Porquê? Como?' 
Disse-me que tinha os seus contactos (e sorriu, claro) e que precisava mesmo de perceber se ele estava neutralizado para todo o sempre ou se era coisa pouca. Fiquei chocada. Riu-se, fingiu que aquilo tinha sido uma piada. Humor noir. Para desanuviar, disse-me que ele ia ser operado mas isso já eu sabia e que não está grande coisa mas que vai ficar bem.
'Talvez tenha que abrandar o ritmo, voar menos, pelo menos nos próximos tempos'. Falava e depois ficava silenciosa. Parecia que estava hesitante, como se quisesse dizer alguma coisa, alguma coisa que, ao mesmo tempo, queria calar.
Deixei. Ela ficava em silêncio, e eu em silêncio ficava. Depois ela dizia outra coisa e calava-se e eu deixava-a ficar assim.
Mas pode alguém ser quem não é? Ao fim de algum tempo, faltou-me a paciência. 'Olha, desembucha. O que é?'. 
Ficou calada. Insisti: 'Como se eu não te conhecesse. Tens alguma coisa aí a fervilhar. Diz.' Mas ela continuou calada. Apenas a ouvia respirar. Tentei facilitar-lhe a vida: 'Já descobriste o que se passa e agora, com esta, estás sem saber o que fazer'. 
Ela respirou fundo: 'Sim. Mais ou menos isso. Ou melhor, também isso'. 
E eu, já a ficar impaciente: 'E não queres partilhar?'-
[Abro um parêntesis: para falarmos sobre assuntos menos badaláveis usamos um telemóvel especial, nada de smartphones, coisa mesmo da primeiríssima geração.]
Ela continuou a hesitar. Depois disse: 'Acabarias por saber. Conto-te amanhã. Vou ver uma exposição à hora de almoço, aquela de que te falei no outro dia. Mas conto-te outra coisa. Acabarias também por saber. Encontrei-me outras vezes com ele. Fora do escritório. Não muitas. Duas ou três. Talvez quatro. E falávamos. Quero dizer, falávamos para além disso. Ele ligava-me, falávamos durante muito tempo. Ultimamente, quase todos os dias.'
Foi a minha vez de ficar calada. Não era possível. O que é que ela me estava a dizer? Ridículo. Transmiti-lhe isso mesmo: 'Não estou a ouvir bem. Não é possível. Estás doida? Mas que estupidez... Nem estou a conhecer-te. Palavra de honra... É ridículo, Clara. Ridículo'.
Ela ficou em silêncio. Depois disse: 'Escuta. Não fiques a pensar que é aquilo do boy meets girl. Não. Percebe: ele é muito escorregadio. E é muito inteligente. Sabe dar a volta. Um desafio, não sei se estás a ver. Não me dar por vencida. Tentar, tentar. Para ele não desconfiar. Devagarinho, na boa. Aceitar o ritmo dele, jogar o jogo dele. Mas sabendo que, no fim, a última jogada é a minha. E ele é um conversador com piada. Acredita. Um desafio.'
E eu: 'Desculpa lá. Se sabias o que tinha acontecido, porque não reportaste, e fim de conversa? Sabes a urgência, Clara, sabes bem. E andaste a encanar... a brincar aos namorados...? Nem estou a acreditar. Porra, que estupidez, Clara.'
'Não. Escuta. Já não ia acontecer mais nada, acho que ele até se portou bem em toda a história em que se viu metido. Mas eu tinha que ter a certeza. Não ia dar o caso por encerrado sem ter a certeza. E, por acaso, até estabelecemos alguns laços. Amizade. Acontece. Nada de mais. Não faças filmes. Não empoles.' E ficou calada e eu calada fiquei. Depois concluiu: 'Que queres que te diga?'
'Olha, não quero nada. Nem digo mais nada. Amanhã falamos melhor. Caraças, Clara, caraças.'
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E talvez amanhã vos conte o que ela me contou no nosso encontro acidental na exposição.

quinta-feira, agosto 08, 2019

Logo quando o cerco estava a apertar-se...


No seguimento de Manel contrata Clara
que vinha no seguimento de
que já vinha no seguimento de 


Continuo. Sempre hesitante, tacteando. Não é assim que gosto de escrever. Mas custar-me-ia deixar isto a meio. Já outras vezes o fiz: quando a verosimilhança se impõe, o cuidado tem que falar mais alto. Mas fica-me sempre um travo amargo na consciência: abandonar uma conversa a meio pode parecer falta de consideração para quem se deu ao trabalho de nos dedicar alguma atenção. Por isso, na tentativa de conseguir ir prosseguindo, vou esforçar-me por não ser muito explícita, tentando cobrir a narrativa com um véu de ficção. Pelo menos, mudando os nomes...

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Algum tempo depois daquele último dia, talvez um mês e tal, não sei precisar, na reunião havida para se comunicar internamente a desistência do Fundo ACx (chamemos-lhe assim) na compra da nossa empresa XPTO (chamemos-lhe também assim), não foram aventadas razões. Pelo contrário, o que foi dito pelo responsável pela equipa que estava a ocupar-se da operação é que a gente do Fundo não tinha dado razões. A due diligence estava a avançar a bom ritmo, nenhum problema de maior foi evidenciado, poucas questões foram suscitadas e, no entanto, do entusiasmo inicial que nos tinha deixado todos favoravelmente expectantes, sem se perceber bem porquê aparentemente passaram a um ambiente de apatia, deixando que o interesse se fosse progressivamente reduzindo até que formalmente anunciaram a retirada.

Não ficámos surpreendidos. Eu, pelo menos, não fiquei. Os indícios eram cada vez mais perceptíveis. Foi, contudo, um rombo na nossa estratégia. Mas, pior seria se, por trás, estivesse aquilo que eu começava cada vez mais a temer.

Fugazmente, fui espreitando o semblante do Manel durante esse anúncio. Impávido. Fez perguntas, contestou alguns argumentos, mostrou-se preocupado como os demais, apenas de vez em quando sorrindo ao de leve como se já estivesse a antecipar o que, para outros, eram surpresas. Contudo, nada, nada no seu comportamento denunciava qualquer comprometimento ou desconforto. Temi que ele não estivesse a perceber bem a situação. Mas temi também estar a equivocar-me e a lançar infundadas suspeitas sobre um colega.

À hora de almoço fui a uma livraria daquelas que vende tudo e mais alguma coisa, incluindo livros. Acidentalmente, cruzei-me lá com a Clara. Mostrou-me os livros que tinha no cesto, eu mostrei-lhe os que tinha na mão. Depois, como quase os deixássemos cair, resolvemos sentar-nos numa mesinha no café da livraria.

Contei-lhe a reunião. Obviamente não se admirou pois algumas movimentações deixavam prever que isso ia acontecer.

Falou-me que, entretanto, teria havido indícios de que alguém estaria a começar a equacionar um investimento num país aqui perto e que isso, sim, seria muito preocupante para nós. Para nós e para o nosso país.
Voltei à minha: ‘Tomara que o Manel não tenha nada a ver com isto’. 
Ela foi peremptória: ‘Esquece. Tem a ver. Ainda não sei exactamente como, mas tem. E é isso que está a ser visto.’ 
Impacientei-me: ‘Caraças, Clara. Estamos ainda no ponto zero? Na fase das suspeitas? Não te esqueças que foi assim que começou, com suspeitas. Se ao fim deste tempo todo ainda estamos na mesma, caraças, que é que se está a passar?' 
Manteve-se calma: ‘Não estamos na mesma. Não exageres. Sabes bem que estamos no terreno e em várias frentes. Só ainda não é clara a forma como estão a obter as informações.’ 
Mas calma era coisa que eu não conseguia manter: ‘Olha, só me apetece dizer the f word. Estás a brincar comigo ou quê? Se ele está a ser acompanhado, se tu o manténs na mira o tempo todo, queres que eu acredite que ainda não sabes como é que a coisa se está a dar? Vai enganar outro, ó Clara!’ 
Ela então abriu um pouco o jogo: ‘Se queres que te diga, já tenho uma ideia e, se queres que te diga mais, acho que a fonte é dupla. A primeira foi directa, nas calmas. Mas aí, como sabes, já estancou. Embora, o que havia para se saber, já o têm do lado de lá, já levaram tudo o que queriam. A segunda -- e aí é que me está a encanitar mais -- é que acho que ele está mesmo na mão dos tipos e a passar o que não deve e isso, escuta lá, é uma gaita daquelas que, a ser verdade, vai causar um estrago dos danados na vida dele. Já estamos também a estudar a maneira de o pôr fora de combate sem estrilho mas, olha lá, tu sabes como é, só avançaremos com certezas absolutas. Mas não deve tardar’. E era outra vez a Clara que eu conhecia, implacável, segura.
Depois acrescentou, ‘Olha, por acaso, hoje vou lá.‘ 
Pensei que talvez por isso estivesse tão produzida mas logo me arrependi de pensamento tão absurdo.

Quando cheguei ao escritório, ia apreensiva. O que é que, afinal, ela já saberia?

Ao seguir para a minha ala, cruzei-me com a silenciosa secretária dele. Como o 'boa tarde' foi mais sumido que habitualmente, olhei para ela. Reparei nos olhos vermelhos. Perguntei: ‘Então...? Que foi...? Algum problema...?’

Com ar ansioso, perguntou: ‘Não soube?’.

‘Não. O que foi?’, perguntei assustada.

E ela, trémula, 'Pois, como é que poderia saber? Foi mesmo agora, se não se cruzou com eles foi por dois ou três minutos...' e pôs a mão no peito, como que para sossegar o coração, talvez para se acalmar. Mas não conseguiu. Encostou-se à parede e desatou a chorar.


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Como venho referindo, estou a usar a Isabelle Huppert como Clara e o Clive Owen como Manel. acho que assentam bem neles.

Continuo a usar os bailados da companhia Malandain Ballet Biarritz e, enquanto escrevo, vou ouvindo a música. No fim, descanso e vejo o bailado. Espero que também gostem.


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Talvez amanhã continue

quarta-feira, agosto 07, 2019

Manuel contrata Clara


No seguimento de Como definir o que não pode ser dito? que, 
por sua vez, 
já vinha no seguimento de A oradora-surpresa


Hoje pensei que o melhor seria parar. E agora ainda estou hesitante. Sei bem o que se passou com o Manel. Poderia passar já à descrição disso mas a questão é que acho que não devo fazê-lo. Por isso, sendo isso central na narrativa em que me meti, agora não sei bem como sair daqui. Por muito que tente ficcionar, alguma coisa poderá transparecer que seja inoportuno e, não podendo escrever à vontade, fico tolhida. Acreditem ou não é o que se passa. Há histórias que não são exactamente histórias.

Vou tentar mas, juro, não sei o que vou escrever. Pode até acontecer que escreva mais do que devo e que, chegando ao fim, apague tudo. Nao está fácil. A sério.

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A empresa contratou a Clara. É uma profissional de mão cheia, sabe da matéria e sabe como comunicar da melhor maneira. Tem ainda a perspicácia de saber adaptar a teoria geral às circunstâncias concretas com que lida. Toda a gente gosta de trabalhar com ela. Não há conselhos dela que sejam à toa, não há dinheiro que se lhe pague que não se dê por muito bem gasto.

De vez em quando aparecia por lá. Se calhava cruzarmo-nos, cumprimentávamo-nos com naturalidade embora com a distância de quem apenas se conhece superficialmente. 

O Manel nunca mais me falou no assunto. Passou a ser um tema profissional lá dele. Profissionalmente continuou como sempre: consciencioso, metódico, analítico e falando apenas do estritamente necessário. Além do mais, reservado como é, pouco deixa transparecer de humores ou estados de alma. Ao contrário de alguns que, de vez em quando, vão até à copa e ali ficam a dar dois dedos de conversa, grupo no qual me incluo, ele não. Bebe café no gabinete e muitas vezes nem sabemos se está no gabinete ou noutro país. A secretária é como ele pelo que ninguém a interroga.

Nos dias em que a Clara lá ia, creio que uma hora por semana, excepto se ele estava fora, a secretária  ia buscá-la à recepção e levava-a até ao gabinete dele. 

Um dia que não sabia que ela lá estava e precisando de uma opinião dele -- e não tendo validado com a secretária se ele estava disponível -- bati ao de leve como sempre faço e abri um pouco a porta, espreitando a ver se podia entrar. Estavam sentados na mesa de reuniões que está junto à janela. Percebi que conversavam animadamente, sorrindo. Quando me viram, interromperam a conversa. Ele, educadamente, levantou-se para me convidar a entrar, ela mostrou-se surpreendida por me ver mas cumprimentou-me simpaticamente. Eu disse que não era urgente, que iria depois, e saí. 

Nesse dia à noite ela ligou-me, quis saber porque não tinha eu entrado, disse que eu tinha parecido pouco à vontade. Expliquei-lhe que por acaso até fiquei mas não por ela, que ele é que é muito discreto, que não gosta de ser interrompido quando está com alguém e que, portanto, não ia interromper a conversa deles tanto mais que o meu assunto era interno, não para ser falado perante uma pessoa de fora. Mas, já que ela ligava, aproveitava para perguntar se já tinha conseguido alguma coisa. Senti que a minha voz, involuntariamente, estava a deixar transparecer alguma impaciência.
'Uma enguia', disse ela. E quase me pareceu sentir que estava a desculpar-se. No entanto, confirmou a suspeita. 'Que há coisa, há, e fizeste bem em reportar. Agora que ele tenha dito alguma coisa, nem pensar. Nada. Escorrega por todos os lados. Quer conselhos em abstracto. E se acontecer isto, o que aconselharia que se fizesse? E é seguro usar o wifi nos aeroportos e hotéis? E pode deixar-se o computador no quarto de hotel? E como é que se pode perceber se alguém está com segundas intenções? E ri como se fosse curiosidade abstracta, como se estivesse apenas a querer mostra-se consciencioso, talvez até apenas para me agradar.  E faz questão, a toda a hora, de dizer que é descuidado, que é muito ingénuo, que confia em toda a gente, que acha que não tem nada de relevante que alguém queira apanhar. E muda de conversa, graceja, ou fica parado a olhar para mim. Mal eu tento espetar o palito no bolo perguntando alguma mais direccionada, ele foge, muda de conversa. Mas, se eu faço perguntas sobre as suas viagens, sobre como é fazer viagens tão longas, andar por tantos países e lidar com tanta gente tão diferente, aí ele fica agradado com o meu interesse e põe-se a contar. Sabes? É notoriamente daqueles tipos solitários, nunca deve falar com ninguém. Por isso, acreditando que o meu interesse é genuíno, desbobina, desbobina. E tem graça na maneira de falar, sabes, o tempo passa num instante porque o tipo, curiosamente, revela-se um bom conversador.
E eu: 'E não saem do mesmo sítio, não? Só conversa? E, entretanto, sabe-se lá o que está a acontecer... Não será de se passar para outra abordagem...?'
'Calma. Tenho estado num registo muito pro, chego ao fim da minha hora, mais coisa menos coisa, vou-me embora. Mas vejo que ele fica sempre com pena, por ele ficava ali a desbobinar durante muito mais tempo. Para a próxima, deixo-me ficar, faço-me de distraída, como se estivesse presa à conversa', disse ela.
'Escuta. Ando a notar uma mudança de atitude nos fulanos que supostamente estão interessados em comprar uma daquelas nossas empresas lá no cu de judas', e disse-lhe o país. 'Como se o interesse estranhamente estivesse a esmorecer. Cá para mim, é por aí. Como se isso tivesse sido o pretexto e agora já não precisassem do pretexto.
E ela: 'É muito isso que, como sabes, costuma acontecer. E já te disse, cá para mim ele tem a ver com isso.'
'Pois, mas, olha lá, se é isso, é grave e não sabemos quão grave. E tem que ser estancado antes que seja tarde demais. E ele afastado.', disse eu.
'Calma, mulher, dá-me tempo. E já estamos a seguir outros vectores. Calma. Mais uma ou duas conversas. E, já te disse, estamos no terreno.'
Não fiquei tranquila com a conversa. Aquele não era o ritmo habitual dela. Faz sempre o trabalhinho de casa bem feitinho, é especialista na empatia espontânea, nas afinidades que se descobrem inesperadamente e que tanto facilitam a aproximação. E se o próprio não tem redes sociais, tem a mulher, têm os filhos, os irmãos, e as pistas e as dicas vão parar às mãos de quem delas precisa sem que tenha que haver algum esforço. Portanto, como é que ao fim de três ou quatro conversas de uma hora cada, ainda estava no mesmo sítio?

Ná. Não estava a perceber. O que é que estava a passar-se?

Aquela não era a Clara que eu achava que tão bem conhecia.

(Mas será que conhecemos, verdadeiramente bem, alguma pessoa?)


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Estou a usar a Isabelle Huppert como Clara e o Clive Owen como Manel. Felizmente não preciso de me representar a mim.

Não sei porque estou a colocar aqui os bailados da companhia Malandain Ballet Biarritz. Se disser que é apenas porque gosto não sei se soará convincente.

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Tentarei continuar com esta 'história' mas, acreditem, não sei se conseguirei.

terça-feira, agosto 06, 2019

Como definir o que não pode ser dito?


[No seguimento de A oradora-surpresa]

Como prosseguir esta narrativa sem abrir demasiado o jogo? 

Não pensei ainda bem nisso. Só sei que tenho que ter alguma cautela. Costumo escrever sem pensar muito mas agora, pela sensibilidade do tema, não pode ser bem assim. A ver se consigo ou se, chegada a certo ponto, terei que interromper. Logo se vê. Se interromper, interrompo e só vos peço que não estranhem.

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Quando saí da conferência, já no carro, avisei a Clara que tinha dado o seu contacto ao Manuel. E escuso de dizer que os nomes deles não são estes. A Clara riu, 'Boa!', e eu também.

Mal tinha eu acabado de desligar, eis que chega uma chamada do Manuel.
‘Oi, Manel, então? Que é que conta?’
E ele a disfarçar (são tão imaturos, os homens): ‘Interessante, não foi? Temas oportunos… O que achou?' 
E eu: 'Gostei. Também achei interessante: um dia bem passado e algumas novidades. Mas vamos ver o que dizem os resultados do inquérito aos participantes.'
E ele, como se esse não fosse o tema do telefonema: 'E aquela doutora trouxe uma visão nova. Quem é que terá tido a ideia de a convidar?’  
E eu: ‘Concordo: a beldade que, pelos vistos, deixou os homens de cabeça à roda, é boa naquilo. Agora como é que ali foi parar não faço ideia, só sei que me pediram para acertar com ela alguns aspectos logísticos e, se quer que lhe diga, nem sei bem porque me pediram a mim, na volta, por ela ser mulher, aquelas cabecinhas pensadoras acharam que combinações com mulheres têm que ser feitas por mulheres. Enfim, é o que é... Mas, olhe, por sinal, até acabou por não me custar nada, achei-a, de facto, bem simpática.’ 
E ele, como quem não quer a coisa: ‘Ok. Olhe, estava aqui a pensar, não seria de lhe dar um toque a dizer que me deu o contacto dela para, caso eu, um dia destes, resolver ligar, ela não estranhar?’  
E eu: ‘Sim, está bem, eu dou um toque, na boa, fique descansado.’  
E ele, a disfarçar: ‘É que há várias coisas que ela ali disse que parece que se aplicam um bocado às minhas andanças, na volta ainda preciso é de algumas explicações…’ e sorriu fingindo que aquilo era uma graça, como se, de facto, o que quisesse fosse apenas conhecê-la melhor e estivesse a fingir que era outra coisa.  
E eu a pensar: 'Está bem, está, dança que o teu dançar tem graça'
O caso é que ele anda em negociações que envolvem empresários de outro país e não só o sector é crítico como tudo o que se relacione com esse tal outro país -- como dizê-lo? -- deve ser tratado com pinças.

Dias depois, encontrei-me com ela, casualmente, num pequeno restaurante de uma grande superfície. Mostrámo-nos surpreendidas com o encontro fortuito e logo ali, enquanto almoçávamos, mostrámos uma à outra o que tínhamos comprado nos saldos. Duas conhecidas que se encontram por mero acaso e mostram os seus bons achados. Banal.


E, entretanto, pusemos a conversa em dia. Naturalmente falámos por meias palavras e em voz baixa, mantendo o tom solto de quem troca informações sobre blusinhas, perfumes, pechinchas.
Diz-me ela: ‘Olha, sabes?, confirmei a nossa intuição. Cá para mim ele está mesmo na mão de alguém. Não tenho ainda provas... mas, olha, não devem tardar. No meio de piadas e veladíssimos piropos, e, olha lá, o tipo até tem graça, veio com conversas vagas, pediu conselhos abstractos, tudo a fingir que não era com ele, sempre como quem não quer a coisa, sempre que era para o caso de alguma vez vir a acontecer uma coisa a alguém, frisando que era informação geral para um just in case, sempre tudo intercalado com gracinhas charmosas, tudo meio a brincar. Ou seja, embora disfarçando, fazendo-se de descontraído e até a fingir que estava a fazer um charminho, cá para mim é uma questão de tempo até eu perceber o que se está a passar.' 
Sorri. Conheço a peça.
Certeira, ela continuou: 'Conta-me lá outra vez: como é que ele é? Com a mania que é engatatão?’ 
Reavivei-lhe a informação: ‘Viaja muito. É rara a semana em que não sai. Tenho-o por desconfiado e reservado. Geralmente meticuloso. Gosta de analisar ao detalhe o que tem em mãos. E não é pessoa que alardeie conquistas ou feitos. Faz-se, até, de humilde, gosta de se fazer passar por alguém que não tem ‘manha’. Mas também tem fama de não saber ceder a flausina que se lhe insinue. Contam-se-lhe alguns namoricos, já sabes, nestas coisas não é fácil distinguir o que é do que parece.’  
Ela não se admirou, ficou por um instante a pensar e depois concluiu: ‘Digo-te: são um perigo, tipos assim.’  
Confirmei: ‘Os piores’. 
Ela quis ainda saber: ‘E domina os gadgets ou é só fogo de vista?’ 
Fiquei na dúvida: ‘O que não faltam são outros mais info-excluídos que ele. Por isso, por aí não é dos piores. Mas, na verdade, acho que se limita a usar o básico e dificilmente tem entendimento para muito mais. Agora, como deves ter reparado, é só do bom e do melhor. E tem, por exemplo, uma coisa que não aprende nem por mais uma. Mas isso é ele e acho que quase todos os outros: tem que estar sempre ‘ligado’ porque se não vir os mails durante mais do que o tempo de voo, receia que as empresas se afundem’. E encolhi os ombros. Há causas perdidas.  
Ela também. ‘Típico.’
Depois combinámos algumas coisas mas naquela nossa forma, que só nós entendemos, e despedimo-nos da mesma forma alegre e descontraída com que nos tínhamos encontrado.

Nessa tarde, acidentalmente, cruzei-me com o Manel no escritório.
Ele, como quem não quer a coisa: 'Simpática, aquela doutora... Como é que ela se chama...?' 
'Quem?', fiz-me eu de sonsa.  
'Aquela que foi à conferência...' 
'Ah, a Drª Clara. Sim, também me pareceu. Já falou com ela?' 
E ele, blasé mas sem conseguir esconder a hesitação: 'Sim... Batemos umas bolas... nada de especial. Mas por acaso até acho que tenho alguma coisa a aprender com ela. Tenho estado a pensar e estou capaz de a convidar a dar um salto até aqui... O que acha? Acha que ela está para isso...?' 
Fiz-me eu de 'nem aí': 'Ah, isso não faço ideia. Não sei se ela dá explicações ao domicílio... Em que contexto lhe pediria isso?' 
Aí ele hesitou. 'Pois, essa é a minha dúvida. Mas se calhar até podíamos contratá-la. Porque não...? O que acha...?'  
Continuei a fazer-me de desinteressada no assunto: 'Sim, talvez. Porque não? Ausculte-a. Logo vê.'
E assim ficámos.

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[E a ver vamos se haverá continuação]

Talvez um dia destes explique porque estou a usar fotografias da Isabelle Huppert como Clara

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segunda-feira, agosto 05, 2019

A oradora-surpresa





Foi a oradora surpresa. Quando o anfitrião a apresentou, disse o seu nome e disse que era uma conceituada especialista na matéria. Depois de vários oradores homens, a audência, também maioritrariamente composta por homens, foi surpreendida por uma mulher que, ainda por cima, era bonita, elegante, moderna.

Já antes tinham ficado surpreendidos ficaram quando, no coffee break, a viram surgir, no jardim. Olhavam uns para os outros, tentando perceber se alguém a conhecia. Ninguém. Seria a oradora surpresa? 

Depois, enquanto ela falava em tom jovial, cheia de ironia e muito descontraída, brincando com os jargões da área, com as ditas buzzwords, com os hábitos de todos quantos a olhavam, via-se como estavam agradados, divertidos. E ela foi intercalando pequenos vídeos que tinham tudo a ver com o lado mais lúdico do que ali se tratava e nada a ver com aquilo a que toda aquela gente estava habituada.

Com aquele jeito feminino de pôr o cabelo para trás das orelhas, ela deixava ver os brincos de pérola, modernos e grandes, quase um toque de irreverência numa toilette que não se podia dizer que fosse completamente clássica, uns jeans e blaser escuro, blusa branca, saltos altos.

Como a sua intervenção foi junto à hora de almoço, tinha sido, naturalmente, convidada para se juntar aos demais participantes. Escusado será dizer que, no fim, houve inúmeras questões e que, ao sair da sala, estava rodeada de cavalheiros que colocavam questões e ofereciam cartões de visita. Ela desculpou-se, tinha-se esquecido de trazer os seus cartões, E brincou, dizendo que era curioso que na era das relações virtuais ainda se usassem os cartões de papel para as pessoas se apresentarem. Os senhores sorriram com alguma atrapalhação, notoriamente sentindo-se antiquados perante aquela mulher moderna.

Ficou na mesa dos mais importantes, à direita do mais importante e rodeada por várias gradações de importantes. Disse que estava com calor, disse que não levassem a mal que tirasse o casaco. Os senhores precipitaram-se a dizer que ora essa, que estivesse à vontade, que iam fazer o mesmo. E logo todos tiraram o casaco. A blusa dela era branca, simples, discreta, e, quando se inclinava, o decote deixava antever um fio de ouro, muito fino, quase invisível, com um finíssimo coração em filigrana que se escondia quando ela, femininamente, ajeitava a blusa. 

Todos a queriam servir. Todos lhe contavam coisas. Ela sorria e ouvia. De vez em quando fazia uma observação que os deixava surpreendidos ou contava algum episódio que os fazia ficarem parados a escutá-la com surpresa e interesse. De vez em quando, o inusitado das suas palavras, fazia soltar gargalhadas entre os restantes comensais. 

A meio do almoço, o interesse dela parecia estar sobretudo focado no senhor importante que estava ao meu lado. Fez uma ou outra pergunta de circunstância a que ele respondeu, encantado com o interesse dela. Mas logo os outros solicitavam o seu interesse e, para todos, ela tinha uma palavra, uma graça, um sorriso.

O que estava ao meu lado tentava, então, captar de novo a atenção dela. Numa das vezes ela fez uma observação sobre uns negócios em que ele andava envolvido, e de que tinha falado antes, que o fez ficar ainda mais agradado: 'Ah... quer-me cá parecer que sabe mais desse assunto do que quer dar a perceber... Conte lá o que é que sabe...' e ela, sorrindo, coquette, 'Ora, apenas o que se vai sabendo por aí, nada de mais...'. E ele, contente por ela saber e se interessar por esses assuntos, logo ali contou alguns aspectos mais picarescos. Mas foi sol de pouca dura pois todos queriam disputar a atenção dela.

No fim do almoço, ela despediu-se agradecendo a simpatia do convite, o bom almoço e a boa companhia. O senhor mais importante tinha um presente que ela agradeceu.

Quando se afastou para ir para o carro, os senhores que se preparavam para ir para a sala onde decorreriam as apresentações da parte da tarde, ficaram a olhá-la. Apanhou o cabelo, pôs uns óculos escuros (e só eu devo ter reparado que não eram os mesmos que trazia à chegada). E, sorridente, caminhou com segurança e elegância apesar do piso ser de calçada e de estar de saltos bem altos. 


Ao reentrarmos para a sala, só se lhe ouviam elogios. Alguns senhores, como quem não quer a coisa, perguntaram-me se eu lhes poderia ceder o contacto dela. Disse que lhe pediria autorização e que, consoante a resposta dela, logo daria ou não. Apenas abri uma excepção com o senhor que, ao almoço, estava sentado ao meu lado. A esse dei logo. Sobre os outros, não a macei.

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(Talvez continue)

quarta-feira, novembro 15, 2017

Where the wild roses grow

-- O FIM --





E, então, Benedita deixou-se levar por aquela estranha intuição que parecia tomar conta dela, como se se visse como a lente de Filipe a iria ver. Sabia escolher o ângulo de luz, sabia elevar o queixo e deixar descair o ombro para que os seios tombassem de forma mais evidente, sabia encostar os lábios para que a inocência fosse mais sentida, sabia deixar esvair o olhar para que a tentação fosse mais subtil, sabia mostrar a curva do torso, a elevação da anca, a melancolia que pede protecção, o apenas adivinhado meio sorriso, o movimento casual do cabelo. 

A música tocava e Benedita nem a ouvia, entregue ao prazer de se deixar capturar. E toda ela se entregava. E se o sabia fazer. Sabia deixar que o corpo se esgueirasse, que a camisa se entreabrisse, que a saia se levantasse num assomo de pecado, que os olhos se toldassem e não por arrependimento, que o coração lançasse um silencioso grito, um apelo sem palavras, só a luz pousada na pele, só o olhar de Filipe pousado nela.


Ao movimentar-se sabia exactamente a forma como a câmara a captaria. Filipe mal se mexia. Se com algumas modelos tinha que circular em volta delas para descobrir a melhor perspectiva, com Benedita não era preciso. Ela transfigurava-se mal sentia a objectiva apontada na sua direcção. 

Era, então, um perigoso felino, uma leoa vagarosa, uma gata dengosa, um cavalo sem rédeas, um pássaro em pleno voo, uma boneca dócil e profana, uma deusa espiritual. Uma wild, wild, oh so wild, rose. Umas vezes, não mais que uma criança vaporosa ou talvez uma mulher com mil histórias; outras, uma alma vadia, uma selvagem tentação, uma perdição consentida.

Não falava. Apenas olhava. 


Ela própria vestia e despia roupas, descobria-se e logo se cobria com véus invisíveis. Sem hesitações ou pudor, o seu corpo aparecia ou encobria-se como se estivesse sozinha. Filipe, como sempre, ficava em êxtase olhando aquele corpo disponível mas inacessível, aquele corpo desejado e sempre negado. Um corpo como um instrumento usado com mestria. Um corpo sem alma, sem rédeas, livre, livre.


Meninha assistia, encantada mas com traços de tristeza no rosto. De todas as vezes que via Benedita a ser fotografada sentia aquele desgosto antigo que feria como uma lâmina já familiar. Gostava de ter um corpo assim. Não tanto o rosto mas o corpo. Gostava de ter uns seios que enchessem as mãos que os segurassem. Gostava de ter umas ancas que ondulassem para que, quando estivesse deitada, se elevassem como uma montanha suave.

Zezinho diz-lhe que é linda assim mesmo, com seu corpo quase liso, que não pense mexer nele. Mas Meninha não quer saber. Anda a juntar dinheiro. Faz maquilhagem, faz limpeza, passeia cão, toma conta de menino, canta em bar, faz o que aparecer. Já andou a informar-se, já foi a médicos. É muito caro mas um dia ela vai ser capaz de pagar para esculpirem seu corpo.

Então, enquanto Beny se perde em seus delíquios, rebolando e se mostrando, insinuando e escondendo, Meninha vai comparando para avaliar o que teria que fazer: enxertar aqui, retirar dali, preencher no cantinho, disfarçar ou acentuar na curvinha.

Nem ouviu quando Filipe lhe disse: 'Vá Meninha, agora tu.'.

Benedita reforçou: 'Acorda, Meninha. Vem. Deixa o Filipe fazer de ti uma diva'.

Meninha despertou. Sem nada dizer, limpou as lágrimas que tinham voltado.


Depois, 'Não. Não, Filipe. Esquece. Não sou lindeza que nem Beny. Continua deixando que Beny dê conta de teu juízo... Eu fico só vendo.' e tentou rir.

Mas Filipe não ligou: 'És linda, sim. Deves pôr a cabeça de muito homem à roda'.

Meninha confirmou: 'Muito homem me quer pegar, sim. Dou desejo nos homens e nem eu sei porquê, que me vejo no espelho e não vejo aquele abismo que puxa os homens. Mas puxa, sim.' E ficou calada. Até que logo depois: 'E muito homem já me pegou, sim. Deixei. Me pagava as conta. Me habituei a não ligar. Deste que deixei de meninar, já eu me entregava. Nem sei. Dez, doze anos. Nem sei. Um corpinho ainda por fazer. A fome faz isso, o abandono, a vontade de uma cama, de um bolo na pastelaria, de um sapato novo.'

Filipe, já aflito: 'Deixa, Meninha, não pensa nisso. Deixa. Não quer fotografar, não fotografo'.


E então Benedita, abraçando Meninha: 'Deixa isso para trás, não penses. Filipe tem razão. Deixa só que ele fotografe teu rosto para veres como és tão linda. E alegra-te, menininha. Não deixes que o passado te deixe triste. Já passou. Olha, sorri. Vai, Filipe, apanha este olhar tão bonito.'

Filipe fotografou. Mas o ambiente estava ensombrado. Meninha ajeitava a juba de Meninha e chamava: 'Vá, Filipe, agora, vá, olha o jeito doce dela'. Depois puxou-lhe a blusa para baixo, de um lado, deixou o ombro à mostra. 'Vá, Filipe, vê como é bonito o ombro dela'.

E, então, como que ganhando coragem, Meninha se pôs de pé. Limpou os lábios, com a costa da mão tirou a pintura dos olhos, quis que seu rosto ficasse nu. 'Vá, Filipe, fotografa.' E começou a despir. Benedita sentou-se, o coração descompassado. O pudor de Meninha não deixava nunca que o corpo se descobrisse. E agora...

'Vá, Filipe, vá disparando', desafiava Meninha, a voz rouca, como se em sofrimento. 'Olha bem, olha pr'a mim, vai, vê o corpo que tanto homem já pegou'.

Filipe obedeceu. Meninha puxando a sua roupa. 'Vá, Filipe, dispare. Apanhe uma wild rose como nunca viu'. O traje caindo devagar. Nem Filipe nem Benedita falavam. Mal respiravam.


Meninha já não falava. O rosto triste, triste. Estava revelando o seu corpo. O seu corpo de menino à vista. Seu segredo exposto. Seu silêncio desnudado.


Encobrindo sua vergonha, de frente, o seu corpo ainda em bruto, ainda por esculpir. Incapaz de uma palavra. Nem Meninha, nem Beny nem Filipe.

Depois, achou a última coragem que faltava e descobriu o que faltava mostrar.

Nenhum falava. Nem uma lágrima ousava correr. Apenas o silêncio ocupando o vazio que, de súbito, tinha ocupado todo o espaço.


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The end

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Meninha
(Filomeno de seu verdadeiro nome; aka Jaye Davidson fazendo de Dil)
interpreta The Crying Game



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O episódio que acabaram de ler, o nono e último do folhetim 'Where the wild roses grow', vem na sequência de:
Oitavo episódio: Memórias com lágrimas
Sétimo episódio: Noite de histórias
Sexto episódio: Noite de juízo
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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