É verdade, Paulo. Sou meio desorganizada, confesso (e o 'meio' é auto-simpatia minha). Quando me dá para escrever folhetins, vou escrevendo em posts avulsos e, se algum dia quiser relê-los de fio a pavio, está bem, está.
Volta e meia os Leitores pedem-me: Porque é que, no fim, não faz um apanhado de todos os capítulos? E eu fico a pensar: Pois, devia mesmo ter alguém que me fizesse essa simpatia. Porque eu gosto é de escrever, não é de andar a organizar o que escrevo. Então, com luvas de pelica, sugiro ao meu marido: Olha lá, podias organizar um bocado aquilo. Mas nunca tenho sorte. Pergunta-me: 'Mas achas que sou maluco ou quê?'. E pronto, ficamos assim.
Mas hoje, deu-me para ser bem mandada e, portanto, do 1º ao último capítulo, aqui estão os links para todos os capítulos da história da Lu.
E só espero que lido assim, de seguida, não apareçam inconsistências. Escrevo na hora, sem pensar, sem ler o capítulo anterior -- e, no fim, poupo-me: nunca releio. Portanto, já sabe, se der com muitos disparates, faça o favor de fazer de conta que não dá por eles. Mas se forem de susto, então, faça a caridade de me informar. Está bem?
Vários dias depois, Lu completou as suas memórias. Mentalmente dizia em francês ‘mes mémoires’ e sorria. Escreveu sobre tudo o que se lembrou e foi apimentando a escrita com descrições circunstanciadas do que, também mentalmente e também sorrindo, designava por ‘sem-vergonhices’. Quando as releu, uma vez mais não sentiu a emoção que seria natural dada a natureza de alguns acontecimentos mas, de vez em quanto, alguma pena de si própria assomava-lhe ao espírito. Outras vezes, ria. Mas, de forma geral, era como se relesse factos alheios.
Desde há algum tempo uma ideia não lhe saía da cabeça: a vontade de tentar publicar aqueles registos. Sabia dos grandes riscos que correria. Riscos de toda a ordem, incluindo sérios danos reputacionais. Mas, como sempre lhe acontecia, a atracção pelo risco, senão mesmo pelo abismo, falava mais forte.
Uma outra ideia se tinha sedimentado e, sobre ela, nem se detinha a pensar nas consequências apesar de estar muito claro, para ela, que não seriam indolores. Mas, estranhamente, isso não a assustava. Pensava: ‘O que é que de pior me pode acontecer...? Ficar presa...?’ e sorria. Achava até graça à perspectiva. Seria uma nova experiência.
Assim, no dia em que concluíu o documento -- depois de ter ido à praia, como sempre agora o fazia -- tratou de criar cópias do documento. Depois ligou ao advogado e pediu se o podia visitar nesse dia.
Foi ao fim do dia mas antes enviou-lhe o documento por mail. A conversa demorou cerca de uma hora mas, logo de início, ela avisou que não valia a pena ele perder tempo a tentar dissuadi-la. Queria apenas que ele a acompanhasse e que balizasse o que ela deveria ou não esperar face ao que ia contar. Ele estava estarrecido, não queria acreditar no que ela queria fazer mas, depois, percebeu que ela estava irredutível.
No dia seguinte, levantou-se animada, com aquele seu velho espírito de guerreira. Mas, ao contrário de quando sentia urgência na derrora do adversário, agora sentia uma estranha serenidade. Sabia que ia enterrar a mulher que tinha sido e que ia destruir aquele que todos tratavam como um ídolo da gestão nacional.
Escolheu cuidadosamente a toilette. Queria-se sóbria para que toda a atenção estivesse nas suas palavras e não, como tantas vezes tinha presenciado, no seu decote, nas suas pernas, nos seus lábios. Maquilhou-se, também, de forma natural. Depois um colar muito discreto, os sapatos, a carteira. Quando entrou no carro, colocou uma música que lhe lembrava aquele que um dia o seu coração tinha pensado amar. Ou talvez tivesse mesmo amado. À maneira dela e dele, talvez se tivessem mesmo amado. Uma cumplicidade dissimulada entre duas almas demasiado gémeas. Ou talvez não, talvez fossem opostos, demasiado opostos. Não sabia distinguir. Sabia apenas que, de vez em quando, o que sentia por ele era uma atracção fatal, uma vontade louca de de despenhar, uma cegueira. Na verdade tinha abdicado da sua vida por ele. Ou talvez não por ele mas pela adrenalina que o interdito junto dele a fazia sentir.
O advogado já lá estava. Estiveram lá toda a manhã. Ela disse tudo o que lhe ocorreu e, apesar de não levar qualquer apontamento, o seu depoimento foi bem estruturado, claro, detalhado. Deixou também uma cópia do que tinha escrito. Nessa altura disse: 'Leiam-no como ficção, como um conto erótico, não liguem, tenho uma mente perversa, imagino coisas, cenas de sexo em locais impróprios. A essas partes não liguem. No resto podem acreditar. Em Tudo. Bem, em quase tudo que a mente é traiçoeira'.
Os que a ouviam e que tinham pedido licença para a gravar não tiravam os olhos daquela mulher tão bonita e que, dizendo o que dizia, se tornava enigmática. Sentiam-ma perigosa na sua sofisticada sedução, toda ela feita de inteligência e sensualidade.
Quando saíram, foram almoçar. Ela estava leve, alegre. Quando se separaram, o advogado lembrou-a: ‘Sabes o que te espera, não sabes, Lu…?’. Ela sorriu. Gracejou: ‘Quantos são? Quantos são?’
Foi a casa. Tomou banho, dormiu. Depois comeu qualquer coisa. Mudou de roupa, apanhou o cabelo. Pensou que aqueles brincos ficariam deslocados no contexto mas fazia questão de os levar. Presente dele. Jóias valiosíssimas.
Foi ao fim do dia que lá chegou. Quem ainda lá estava, olhou-a como a uma aparição. Ela sorria. Foi ao seu gabinete. Parecia-lhe cenário de um filme que já não era o seu. Subiu os estores, reclinou-se na sua confortável cadeira, abriu as gavetas, viu o creme das mãos, batons, um pequeno espelho de mão, canetas. Despojos de uma outra era.
Passado um bocado, ouviu aqueles passos que tão bem reconhecia. Ele entrou e fechou a porta. 'Que novidade é esta? Apareces assim, sem avisar? E não ias dizer nada? Vinhas e saías sem me dizer nada?'
Ela olhou-o, muito calma. 'Que ideia. Vim cá de propósito para falar contigo. Estava apenas aqui a matar saudades e já lá ia.'
Ele irritado: 'Vê lá, se queres que eu saia, saio, não quero incomodar'. Ela reparou que ele tinha envelhecido. Reparou também que, pela primeira vez, o via com uma camisa sem botões de punho. Pensou: 'Noutras alturas dir-lhe-ia: deixa-te desse mau feitio e desabotoa a camisa para eu me encostar ao teu peito' e ele obedeceria e ela encostar-se-ia, cheia de medo que alguém abrisse a porta. E depois beijá-lo-ia porque aquele medo abria-lhe o apetite.
No entanto, limitou-se a dizer: 'Podes ficar. É simples. Vim demitir-me. E vim dizer-te que hoje fui contar tudo.' Ele sentou-se, visivelmente transtornado. Ela continuou: 'Está tranquilo. Segui o teu conselho: levei o Manel'.
Ele olhava-a, sem coragem para fazer perguntas. Ela continuou: 'De muito, como deves calcular, já desconfiavam. Daí as buscas. Confirmei o que era de confirmar, expliquei os métodos, quem, como, quando, quanto. Deixei-lhes também o que andei a escrever. Entretanto, também vou ver se alguém quer publicar. Presumo que a minha vida, a partir de agora, seja diferente. Mas já andava farta de tanto esquema, de tanta optimização fiscal, de tanto parecer jurídico, de tanta, tanta treta, de tanta dissimulação. Estava farta de ti. Farta da vidinha estúpida de que tu tanto gostas. Farta da estúpida em que estava eu também a tornar-me. Farta de te querer e de nunca de ter, farta de não poder andar de mão dada contigo, farta de não sair disto, de não te mandar dar uma grande curva. Pois bem. Mandei. Ciaozinho'
Aproximou-se dele, deu-lhe um beijo na boca. Ele estava inerte. Ela aproximou-se da secretária e disse: 'Verdade seja dita que nem a dar beijos és bom, tudo muito na base do faz de conta'.
Tirou um envelope da carteira e entregou-lhe. Depois tirou os brincos e deixou-os junto do envelope: 'Foram pagos com o cartão da empresa, ficam aqui'. Calmamente tirou outros da carteira, muito simples, que colocou. Soltou o cabelo. Sorriu. E saíu.
Dias depois, as notícias davam conta de buscas na sede da empresa. E, sem surpresa, ouviu que ele tinha sido constituído arguido. Disse em voz alta: 'Sou mesmo uma femme infidèle.' Depois encolheu os ombros, suspirou 'Paciência'. E teve vontade de lhe ir dar um beijo.
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The End
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Este texto que acabei de escrever vem no seguimento do penultimo episódio deste folhetim:
Pela primeira vez desde há algumas semanas, Lu resolveu sair de casa. Arranjou-se, pegou em livros, na máquina fotográfica, no portátil, meteu alguns alimentos num saco térmico e foi para o campo.
Voltou a gostar da sensação de conduzir. Na estação de serviço olhou para as primeiras páginas dos jornais. Receava ver alguma coisa. Não, só o expectável. Quase lamentou. Inconscientemente, era como se preferisse que o que acontecesse não fosse de sua responsabilidade.
Quando chegou a sua casa, surpreeendeu-se com a altura dos arbustos junto à vedação. Floridos, as cores quentes do verão, aquele perfume doce e intenso de que tantas vezes sentia saudades.
As árvores, enormes. Tudo parecia ter crescido de uma forma inusitada. Um bosque tal como ela tinha sonhado quando o terreno não passava de uma matagal raso no meio de um terreno pedregoso.
Quando abriu a casa reconheceu aquele cheiro tão característico. A casa parecia guardar todo o ano a memória das noites de lareira. Sorriu como que agradecida. O ambiente mantinha-se familiar apesar do abandono a que ela ultimamente o tinha votado.
Quando saíu à rua pareceu-lhe ver passar, no chão, um pequeno vulto. Foi ver melhor e não viu nada. Talvez uma ilusão de óptica.
Saíu pelo campo, câmara fotográfica, disponibilidade para o encantamento de antes. Aproximava-se, baixava-se, redescobria o prazer de captar as quase invisíveis belezas que a natureza guarda apenas para os olhares mais atentos.
Enquanto ia andando, aspirando o ar limpo e perfumado e sentindo o canto dos pássaros, ia recordando todas as vezes recentes em que lá tinha ficado com ele.
No período em que tinha vivido com o outro, aquele a quem os pais tratavam como um filho e de quem sempre esperaram que viesse a vir um neto, ficavam lá todos os fins de semana e, por vezes, no verão, toda a semana. Mas ele era demasiado boa pessoa para a prender. Dele apenas vinha acalmia, compreensão, ternura, uma vida previsível, e ela queria fogo, desafio, desequilíbrio. Mal se separaram, no dia seguinte, já ela estava a reatar com aquele a quem mentalmente tratava por traste. Não era amor, não era desejo, era sobretudo o gosto pelo risco, por pisar o risco. E, a partir de certa altura, percebe agora, a vontade de o destruir.
As idas ao campo voltaram a ser mais esporádicas. Ele era casado, tinha uma agenda familiar, e ela não gostava de lá estar sozinha. Contudo, ambos tinham deslocações frequentes ao exterior pelo que era normal, para ele, dizer em casa que tinha que ir para fora mas que estaria de regresso um ou dois dias depois. Lu aceitava bem que assim fosse e tinha o cuidado de que ele, na medida do possível, não lesasse o equilíbio familiar. Por vezes, parecia que era maior o cuidado dela pela família dele, do que dele próprio. Ali, na casa de campo dela, ele sentia-se em casa. Dizia-se um homem do campo.
Aliás, dizia-se mais do que isso, dizia-se um agricultor. Mas ela dava desconto pois, mitómano como era -- mitómano ou megalómano, que, entre uma coisa e outra, ela nunca tinha conseguido optar pela classificação mais adequada -- ele achava que tinha alma de tudo, de empresário, de camponês, de nobre, de homem do povo, de marchand de arte, de benemérito, de intelectual, de connaisseur de mulheres, de vinhos e de rosas. Claro que com o dinheiro que tinha possuía herdades onde se fazia vinho, possuía obras de arte para dar e vender, era patrono de cinquenta mil organizações que a companhia ou a fundação a que presidia ajudavam. Mas ele, ele mesmo, era pouco mais do que um narciso contemplando-se no espelho da comunicação social, das redes sociais e, até, no site da empresa e, mesmo, na intranet onde fazia com que se cultivasse um verdadeiro culto de personalidade em torno do extraordinário senhor presidente.
Estar no campo sozinha, ficar lá à noite, era, pois, experiência nova para Lu. Mas estava a agradar-lhe.
Maravilhada pelas pequenas flores do campo, pela natureza em estado quase selvagem, Lu sentia-se sempre mais livre. Fotografava tudo, encantada com a luz, com o efeito de halo luminoso que parecia rodear as flores.
Lembrou-se: ali mesmo, naquele caminho em que ia, ele a olhar para ela, a pedir-lhe que se virasse em contra-luz, queria fotografá-la no meio das flores. Depois, como tantas vezes o fazia, pediu-lhe que se despisse. Fotografou-a assim, nua, banhada pela luz do cair da tarde. Lu, lembra-se de, naquele momento, ter dito: Já não vou poder ter um filho, já é tarde demais. E não me desculpo por isso. Não sei como deixei passar o tempo, não sei que prioridades foram as minhas, não sei como cheguei a este ponto. Ele olhara-a, perplexo: 'A que propósito vem agora isso?'. Ela continuara: Um acabei com ele, outro na prática também. E agora dava tudo para ter um e tenho medo de tentar, é tarde demais. Ele abraçara-a: 'Não penses nisso'. Com distanciamento, ela respondera: Tens filhos, tu. Não sentes falta de mais. Aliás, pouco ligas aos que tens. Eu não tenho nem vou poder ter. Ele protestara: 'Não digas isso. Claro que ligo. Adoro os meus filhos. Mas esquece. Tens uma vida plena, Lu'. Ela não respondera. Só uma pessoa muito desprovida de muita coisa poderia achar que ela tinha uma vida plena. Tinha uma vida vazia, isso sim. E não mais deixara de ter esse pensamento sempre presente.
E ia andando, fotografando, olhando a bela e protectora serra ao longe e pensando que, à noite, no computador que felizmente não se tinha partido, ia escrever sobre isso. E ia também contar a discussão terrível que tiveram no escritório na véspera do dia em que ela tinha acordado com um formigueiro nos dedos e vazia, ausente, quase se deixara cair num poço sem fim. Ia contar como tinha descoberto o esquema, como o confrontara com isso, como o ameçara, como negara que sempre tivesse sabido, ia contar como, quando ele insistira que ela sabia, que sabia desde sempre, lhe dera uma bofetada e de tal forma violenta a bofetada que os óculos dele tinham voado, que, quando ele se preparava para lhe devolver a bofetada, ela lhe tinha atirado à cara um monte de papéis, de como o tinha visto, furioso mas meio perdido, sem óculos, o chão pejado de papéis. Ia descrever, com pormenor, a forma habilidosa como, durante anos, as contas foram falseadas.
E, enquanto ia pensando em tudo isto, Lu ia caminhando, fotografando. As flores, os frutos.
Ao regressar a casa, já lusco-fusco, de novo um pequeno vulto branco correndo. Assustou-se. Procurou. Não viu nada. Quando estava quase a entrar em casa, a mesma sensação, de novo um pequeno vulto correndo, sem deixar marcas.
Ficou parada junto à porta a olhar. Quase a anoitecer. Os pássaros quase silenciosos. E, de repente, a impressão de estar a ser observada. Olhou em redor. E, então, ao fundo, não um mas dois, dois pequenos vultos brancos. Aproximou-se devagar. Fugiram na direcção da vedação. Foi ver.
Do outro lado, no meio do mato dois gatinhos brancos. Pequeninos. Olhavam-na, ar assustado. Lindos. Ela fez bssschh, bschhsch, gatinhos, gatinhos lindos. E ali ficou a olhar para eles e eles para ela. Certamente filhos da gata branca que, furtivamente, por lá via passar de vez em quando.
Uns bebés tão lindos. Goastava de lhes poder fazer uma festa.
Quando regressou a casa, as lágrimas corriam-lhe pela cara. Talvez emoção por ver que tinham nascido lá, filhos daquela sua amada casa, uns gatinhos tão bonitos. Mas também talvez tristeza pela sua vida tão vazia.
Depois percebeu que tinha acabado de tomar uma decisão e, conhecendo-se bem como julgava conhecer-se, sabia que era uma decisão sem retorno.
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O título do post foi extraído do poema de 'Indócil' de Maria Teresa Horta in 'Poesis'
Excepto obviamente as de Kate Moss, as restantes fotografias foram feitas por mim, este sábado, in heaven.
Amira Willighagen, com a condução de André Rieu, interpreta O Mio Babbino Caro de Puccini
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Este texto, que acabo de escrever, vem na continuação de:
Estava calor. Apesar das janelas estarem abertas para o ar circular, Lu sentia-se transpirada. Foi tomar um duche. Estava a sair da casa de banho, nua, o cabelo molhado, quando ouviu tocar à campainha e, em simultâneo, bater à porta. Ouviu chamar por ela. Passado um bocado, a chave a rodar na porta.
De novo ele, outra vez zangado: 'Só podes estar mal da cabeça. Aqui fechada, sem atenderes o telefone, sem responderes a mails, sem abrires a porta. E desististe de ir trabalhar? Não te parece que já chega desta palhaçada? Se não queres voltar a trabalhar, demite-te. Se estás passada, vai ao médico, mete baixa. Isso é um burnout. Trata-se. Agora ficares em casa fechada é que não resove nada. Merda. E nem pensas que me preocupas?'
Lui, serena, nua, de frente para ele: 'Não, não penso que te preocupo. E sabes há quanto tempo não gozo senão umas duas semanas de férias por ano? Faz as contas. Se tudo o que dei à empresa não serve de nada, nem sequer para, por uma vez na vida, poder descansar, então deixa que me farei pagar de outra forma'.
Ele sorriu ao de leve: 'Já estás melhor...'
Lu não ligou à piada. Limitou-se a esclarecer: 'Estou a escrever as minhas memórias, preciso de tempo. E cada vez me sinto mais descansada, mais leve e cada vez me lembro de mais coisas'
Foi como se tivesse sido alvejado. Olhou-a com ar aterrado. Depois deixou-se cair numa cadeira, ombros tombados: 'Merda, Lu. que conversa é essa? Se os gajos cá voltam... Tu estás a arranjar lenha para te queimares. Para nos queimarmos. Merda. Não faças isso. Deita tudo fora'.
Ela saiu da sala sem dizer nada. Pouco depois regressou com um vestido que lhe cobria levemente a nudez. Sentou-se em frente dele: 'Se soubesses como me faz bem relembrar alguns episódios da minha vida. Gosto de escrever. Parece que escrever abre os diques da memória. Não vou deitar nada fora. Quando acabar mostro-te. Afinal és um dos personagens. Acho que vais ver que estou a retratar-te com lisura. Não podia ser de outra forma. Sou fair em qualquer circunstância. Acho que, no fim, até posso ver se a editora da fundação está interessada em publicá-las. 'As memórias de L. O que achas? Será um título suficientemente sugestivo?'.
E, dizendo isto, reclinou-se um pouco no sofá e colocou um pé sobre ele, deixando ver que estava sem roupa interior.
Ele olhou mas não reagiu. Noutra altura teria saltado sobre ela, guloso e impaciente. Limitou-se a dizer 'Ainda vais dar cabo de nós. Para que é isso?'. Ela olhou-o com olhar vazio, indiferente à ansiedade dele, que insistia: 'Responde. Estás a ouvir? Qual a ideia? Posso saber?'
Lu, como se estivesse a fazer um esforço, condescendeu em responder: 'Não tem nada a ver com 'nós'. Existe algum 'nós'? Que eu saiba, não. E tal como não preciso da tua protecção para coisa nenhuma, também acho que deverias ser menos medroso até porque ficas patético assim, a mostrar que tens medo de mim. Ridículo...'
Ele levantou-se, irritado, 'Estás a ser parva. Não tenho medo. Mas acho absurdo que estejas a entregar o ouro ao bandido'.
'Quem está a ser parvo és tu, ó empresariozinho caguinchas. Quem é que te diz que não estou simplesmente a contar uma maravilhosa história de amor?', e ela esboçou um sorriso.
Mas ele não achou graça 'Deixa-te de merdas, Lu. Sou casado, não me trames'
Ela ajeitou o cabelo que, entretanto, secava, rebelde: 'E olha lá, ó cagãozinho, e quem é que te disse que tens lugar na história dos amores da minha vida? Só lá apareces nos momentos de comédia e é na qualidade de emplastro. Ou nos momentos de suspense. O grande empresário, tão incensado, tão galardoado mas, de facto, um parvalhão, um vendido, um corrupto, um assassino.'
Ele olhou-a perplexo. 'Piraste...? Trata-te. Estás maluca. Assassino? Tem cuidado com o que dizes, Lu, tem cuidado, estou a avisar-te. Ouviste?'
'Digo, sim: assassino. Quantas pessoas já morreram por tua causa? O que se suicidou, esqueceste? A dos Jurídicos a quem empurraste para uma aventura suicidária. Lembras-te? E o que morreu em casa da mãe, depois de lhe terem amputado as pernas?... Queres mais...?'
'Não estou a gostar desta conversa. Estás passada. Esse era diabético. Que é que eu tenho a ver com isso? Está calada que não estás a dizer coisa com coisa. Cala-te.'
'Não limpes a tua consciência, presidentezinho. Eu lembro-te. Ele não queria aparar os teus esquemas. Era um homem íntegro. O que fizeste para o afastar... lembras-te? Humilhaste-o, perseguiste-o. Não descansaste enquanto o homem não saíu da companhia. A companhia como tu dizes, enchendo a boca. A empresa cujas contas ele queria manter transparentes e de que tanto se orgulhava. Saíu pela porta baixa, descartado como um inútil. Não saía de casa. Arranjou uma depressão. A mulher não aguentou. Deixou-o. Ele foi viver para um andar pequeno. Continuou fechado em casa, não queria ver ninguém. Não se mexia, não se tratava. Sim, diabético. Foram as filhas que levaram o médico lá a casa. Tarde de mais. Tiveram que lhe cortar as pernas. Quando saíu do hospital, foi para casa da mãe, uma idosa desfeita por ver o filho, antes um executivo bem sucedido, agora um inútil farrapo. Obeso, inválido. Morreu pouco depois, paragem cardíaca. Toda a gente falava disso. Fazias de conta que não tinhas nada a ver com o assunto. Lembras-te da carta que as filhas escreveram para a empresa? E tu que fizeste?'
Lu parecia calma mas ele estava cada vez mais assustado. 'Esquece. Não vale a pena, estás maluca e eu não estou para ouvir estes disparates. Estás paranóica, como se tudo tivesse a ver com tudo e como se eu fosse a mão que tudo destrói. Esqueces-te da obra social, esqueces-te de todos a quem ajudamos a ter uma vida melhor?'.
Lu reagiu: 'Uma merda. Fazes o que fazes -- e tu, tu mesmo, de facto não fazes a ponta de um corno -- apenas para termos benefícios fiscais, para ficares bem nessas gaitas da responsabilidade social, para receberes prémios chorudos que colocas sabemos bem onde. Guarda as aldrabices para quando dás entrevistas ou para quando tiveres que te defender. Comigo não. Mais do que tua confidente ou amante, sempre fui tua cúmplice. Sei de tudo. Contigo sempre partilhei a responsabilidade, a insensibilidade, a arrogância, a frieza. Não te esqueças disso.'
'É verdade. Portanto, pensa bem. Se me tramares, tramas-te também a ti. E porque haverias de o fazer? Fiz-te algum mal? O que é que aconteceu?'
'Nada. Não aconteceu nada. Simplesmente um dia acordei com formigueiro nos dedos, sem quase saber de mim. Na verdade, percebo agora, foi como se tudo o que andava a viver me estivesse a sugar a existência'.
'Merda, Lu. Apaga o que escreveste. Volta para o trabalho. Preciso de ti. O ambiente está muito mau. Depois das buscas, aquela merda está de cortar à faca. E já falaste com o Manel? Aqueles gajos não brincam em serviço. Tu vê com o Manel.'
'Não vejo nada. Estou sob escuta e tu também. Quando aqui andaram a revistar a casa até podem cá ter deixado microfones. Não sei nem quero saber. Mas é uma questão de tempo'
'Porra, Lu. Sabes lá tu se estamos sob escuta... Sabes lá se arranjam alguma ponta por onde pegar. O que não faz sentido é facilitar. Apaga tudo, apaga as merdas que andas a escrever, anda trabalhar, vamos voltar ao que era'.
Aproximou-se, estendeu os braços, baixou-se na direcção dela. Ela endireitou-se. Depois levantou-se e olhando-o nos olhos disse com indiferença 'Ao que era...? Impossível. Sob todos os pontos de vista. Todos. Apesar de muitos me desejarem, por comodismo servia-me de quem me estava mais à mão. De ti. Eras um objecto fácil. Agora acho que está na altura de não me contentar com amostras, com deturpações. Está na altura de arranjar um homem de verdade'
Irritado, ele dirigiu-se para a porta. Então, viu o computador sobre uma mesinha pequena e, com inusitada violência, deu-lhe um pontapé, atirando tudo ao chão, a mesa, o computador, o copo de sumo. E saíu, atirando violentamente com a porta.
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O título deste post é parte do poema 'Perdição' de Maria Teresa Horta in 'Poesis'
Lorraine Hunt e a Philharmonia Baroque Orchestra interpretam "With Darkness, Deep," da ópera "Theodora" de G. F. Handel
Depois de um dia de ausência -- de novo uma ausência -- Lu saíu da abulia e voltou a si, à sua rotina. Durante todo o dia escrevia memórias, tentando localizá-las no tempo. Aos poucos, ia conseguindo cartografar a sua existência que dias antes lhe parecia vazia.
Agora, a rotina estava mais consolidada. Escrevia até estar exausta, os músculos doridos, a nuca em fogo.
De manhã, quando chegava à sala, relia o que tinha escrito na véspera. Espantava-se com o que ali encontrava. Era a sua vida, disso não tinha dúvidas, mas era como se se tivesse passado num tempo que não era o seu ou como se apenas tivesse sido espectadora do que se tinha passado.
Naquele dia, tinha acordado a pensar num episódio que, na altura, a tinha divertido.
Tinham combinado que uma certa pessoa não era 'grande espingarda' e que, portanto, deveria saltar. Falavam assim: 'aquele não é grande espingarda, tem que saltar'. Há já algum tempo que ele a mantinha ao corrente do que fazia para que fosse o outro a querer sair de livre vontade: atribuía-lhe objectivos irrealizáveis, não lhe dava as condições mínimas para que ele conseguisse fazer alguma coisa, 'apertava' com ele dia e noite, em privado e em público. Ela lembra-se agora bem de como um dia, numa reunião com a grande mesa orlada de gente, ele ter interpelado o outro, perguntando-lhe como estava um determinado assunto. O outro queria explicar as dificuldades mas ele não o deixava. O outro era sucessivamente interrompido 'não quero desculpas, quero resultados', dizia ele com voz melíflua, sem levantar a voz mas deixando aperceber uma violência em crescendo. Ninguém ousava interromper aquela tortura. 'Não conseguiu fazer nada do que se pretendia. Avanços: zero. Certo?' e, quando o outro, uma vez mais, queria invocar a impossibilidade da missão, ele a interromper, voz seca, 'Sim ou não?'. O outro, quase sem voz: 'Não' e ele 'Ok, era o que eu queria ouvir', logo mudando de assunto, deixando o pobre homem humilhado, isolado naquela mesa cheia de cobardes. Lembra-se de assistir a isso sem emoção, sem compaixão, quase achando graça à crucificação do outro.
Dias depois, ele disse-lhe 'vamos ali falar com o gajo, vamos arrumar o assunto'. Ela não percebeu: 'E que tenho eu a ver com oassunto?'. 'Tens, vais ficar com a incumbência de o despachar e arranjar alguém para o lugar dele'. Aceitou sem protestar. Tudo aquilo lhe parecia normal. Era assim que as coisas se passavam.
Na sala, grande e propositadamente desconfortável, uma mesa em U, aberta ao meio, ele e ela de um lado, o outro. longe, em frente. De novo um interrogatório feroz, de novo o outro a derrapar, a fraquejar e ele, sem dó, a apertar. De vez em quando, ele virava-se para ela, pedia-lhe opinião e ela, cínica, tão cínica, improvisava ali uma solução qualquer. Reparava que o outro abanava a cabeça, achando que o que ela dizia não fazia sentido mas ela respondia: 'Está a abanar a cabeça? Não concorda? Mas tem alternativas? Se tem, porque não as pôs ainda em prática?' E o homem, infeliz, a acabar por fazer aquilo que se esperava dele: 'Desisto. Estou a dar cabo da minha saúde. Não aguento mais isto. Demitam-me.' e ele, frio, 'Nós demiti-lo... ? Não senhor. Nós contamos consigo, ora essa'. E então, finalmente, a rendição total: 'Então, demito-me eu. Não aguento mais isto'.
E ele, frio, 'Muito bem, se sente que a saúde não está bem, não quero ficar com esse peso na consciência. É escrever uma carta e entregá-la à doutora, ela encarregar-se-á de tratar das coisas o melhor possível. A companhia tem esta tradição, tratar com humanidade todos os seus'.
E, quando o pobre coitado, arrumava os papéis, derrotado, amedrontado, ele encostou-se mais a ela e disse em voz baixa 'Nisto só vejo um problema' e ela, já solidária na preocupação: 'Sim... qual...?' Ele, voz sussurrada: 'É a mesa ser aberta, vê-se tudo. É que essas pernas estão um apetite'. Lembra-se de como teve que disfarçar, cheia de vontade de rir.
Mas, logo que o outro saíu, desforrou-se: provocou-o, vingou-se da maldade dele mas toda ela era malícia -- e queria lá ela lá saber da maldade dele ou do triste destino que esperava o outro pobre, era mais um assunto resolvido e o resto era conversa -- naquela altura já só queria era divertir-se. E, então, depois de muito o tentar, deixou que, ali mesmo, ele provasse o fruto proibido.
Enquanto escreve, e escreve com distanciamento, olha a mesa em frente e pousa o olhar no belo objecto de vidro que, um dia, ele lhe ofereceu.
Foi outro daqueles dias. Fazia anos. Tinha querido ter um dia de férias, ir à praia, ao cinema, descansar. Na véspera, à noite, um telefonema dele. Era a atribuição de bolsas de mérito a jovens que se tinham candidatado. Apresentavam um projecto, havia uma comissão que fazia uma selecção e uma validação técnica, depois um júri que analisava as candidaturas seleccionadas e, então, havia uma sessão solene, com convidados e, no fim, era atribuído um prémio especial. Pelo meio havia música, projecção de filmes. Ela deveria estar presente, claro, mas, com antecedência, fizera saber que não ia poder ir. Pois de véspera, à noite, uma vez mais ele dizia que não podia ir, um compromisso de última hora, ela que o representasse. Ela que não. Não lhe disse que fazia anos, disse apenas que precisava de descansar, que tinha planos, que há que séculos ele estava avisado. Mas ele não sabia receber um não como resposta e ela não tinha paciência para o contrariar.
Foi. Contrafeita. Quando ao fim do dia chegou a casa, aborrecida, estava ele à porta do prédio, presente na mão. Foram a beijar-se no elevador preparando-se para festejar o aniversário. De vez em quando ele conseguia surpreendê-la: teria jurado que ele não se lembraria que fazia anos e, afinal, tinha aparecido com aquela peça tão bonita, a mesma que uma vez ela tinha desejado, num dia de verão, quando tinham ido à procura das obras do Pde Manuel Antunes. E ali estava ele, terno como um namorado, beijando-a, olhando-a nos olhos, pondo-lhe um chapéu sobre os cabelos despenteados, pedindo-lhe que se despisse para ele, que desabotoasse a camisa, devagar. E ela fazendo o que ele pedia mas não para prazer dele mas para seu próprio prazer. Gostava de ver o efeito que o seu desejo provocava nele.
Depois, mais tarde, corpo com corpo, ele foi o de sempre, convicto e falando indecências. E, só pela forma desprendida e obscena dele se entregar ao sexo, ela lhe desculpava tudo o resto.
O que também não era bem verdade pois, para ser completamente sincera, não lhe atribuía culpas nenhumas, de nada, já que ela, compactuando com ele, na prática era igual.
Depois, já tarde, nessa noite, ele sentou-a, nua, ao seu colo e puxando-lhe o cabelo para um lado, disse-lhe: 'Escuta. Fixa este nome: MyGodess. Era para ser para mim mas houve uma troca de mãos. Fica para ti. Tens lá um presente. Considera que é um bónus. Vou deixar aqui os dados.'. Ela olhou, sem grande interesse. ouviu palavras como 'o pêlo do cão', 'offshore', 'tudo certinho, limpinho'. Mexeu nos papéis. Viu um número com alguns zeros. Não estranhou. Era esse o mundo em que também se movimentavam.
Era já de madrugada quando ele se levantou, 'Tenho que ir. Reuniões de partir pedra, estas, as horas passam e não se chega a lado nenhum. Sorte tem a minha mulher que é artista, não tem que aturar estes gajos, chatos, que só estão bem a pôr areia na engrenagem. Estou farto de lhe dizer isso, a sorte que tens, sabes lá a seca que são estas reuniões que vão pela noite dentro'. Ela olhou-o de lado, divertida. Não que o achasse um bom malandro, talvez antes um belo sacana. Mas até por isso lhe achava graça.
E, escrevendo tudo isto, parecia-lhe que tudo se tinha passado há muito tempo. E, no entanto, pensando bem, não fora assim há tanto. E não sentia pena nem arrependimento pois parecia que as recordações eram de outra que não ela.
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Este texto que acabo de escrever vem na continuação daquele outro que escrevi quando me sentia mergulhada em tristeza: Numa noite sem palavras.
Depois de muito escrever, um dia viu-se sem palavras.
Não se assustou. Limitou-se a aceitar a triste condição.
Fechou as janelas, apagou as luzes e deitou-se no chão. De olhos abertos, fixando a leve penumbra. Quase sem pensar.
Depois fechou os olhos. Sem palavras que acompanhassem a desistência.
E, no entanto, do chão, como que subindo da terra, chegavam-lhe sons, talvez súplicas, talvez preces, talvez apenas silenciosos lamentos. Silenciosos lamentos subindo da terra. Ou, talvez, descendo das estrelas.
Não tentou percebê-los pois bastava-lhe senti-los. Olhos fechados, os braços cruzados sobre os seios nus, um abraço imaginário que, de longe, lhe chegava, um sussurro longínquo que parecia tentar serená-la, a ela, abandonada, sem palavras.
Ouvia uma música mas não sabia se a ouvia, se a sonhava. Alheada, atenta apenas ao silêncio que adivinhava subindo do coração de quem, lá longe, abrindo as mãos, soltava na noite palavras transparentes, generosas como pássaros cantando na suave madrugada.
Mas nada a consolava porque ela estava como que sem vida.
Tinha ouvido de estradas da morte, de vidas perdidas, de casas queimadas, sabia da cinza que tudo cobria, dos escombros onde as memórias se tinham desfeito, de um homem que sofridamente falava da mulher e das filhas perdidas para o fogo, da avó que quis salvar a neta e com ela se perdeu, sabia de todas essas aflições sem retorno. E, apesar de, nesse momento, lhe parecer que nada mais poderia haver no mundo, impedia as lágrimas, como se as suas lágrimas não fossem dignas da dor alheia, como se não pudesse sofrer por eles, sobretudo porque se sabia cobarde ao não perceber como poderiam aquelas pessoas voltar a viver depois de tamanho sofrimento. As palavras como que tinham sido sugadas por aquela desmesurada inclemência. A compaixão que sentia não era nada face à coragem dos que sabiam continuar de pé. Ela não. Ela caída, exangue, quase sem respirar. As palavras tinham desaparecido e as que, de longe, lhe chegavam em vão tentavam acordá-la. Em vão. Em vão. Um sono pesado parecia abater-se sobre o seu corpo derrotado. Ouvia-se dizer, como se o dissesse sem palavras, apenas com um olhar triste como nunca ninguém o tinha visto: deixa-me chorar.
Lascia Ch'io Pianga, ouvia como que num sonho emudecido, perdido entre pesadas nuvens. Lascia Ch'io Pianga.
E, então, as súplicas pararam, a música estancou, a penumbra escureceu. E, como que perdida num imenso vazio, entre silêncio e sombras, deixou que as lágrimas corressem, sem palavras, inundando a desolada noite.
Tinha agora o costume de se sentar no chão, os vidros das janelas completamente abertos. Descobriu uma agenda antiga e um lápis e ia tentando recordar, ano a ano, alguma coisa que, na sua vida, tivesse sido relevante. Como não o conseguisse, passou a fazer ao contrário: tentava recordar algum acontecimento marcante e tentava perceber em que ano tinha isso sido.
De início não se lembrava de quase nada mas, aos poucos, parece que a memória começava a despertar.
E sentia que esse exercício mental lhe fazia bem, parecia que até lhe trazia apetite. Um dia viu que já não tinha em casa quase nada que comer. Vestiu-se de forma descuidada; mas, antes de sair de casa, voltou atrás, pôs a t-shirt por dentro dos calções, colocou um cinto e um colar -- reminiscências de quando, uma eternidade atrás, não saía de casa sem se sentir irrepreensível (e irresistível). E foi ao supermercado. Soube-lhe bem. O ar da rua, a sensação de liberdade, a simplicidade da situação, tudo lhe foi agradável.
Quando voltou, arrumou tudo, tomou outro duche para se refrescar, e com gosto, dirigiu-se à sala. Escolheu uma música e pôs-se a pensar e a escrever. Não podia falar, dissra-lhe ele, mas podia escrever.
E os dias foram passando. E, aos poucos, foi adquirindo uma nova rotina: pegava num copo de sumo de laranja, em miolos de amêndoa, sentava-se no chão, pegava num banquinho que lhe servia de mesa e, muito concentrada, preparava-se para o exercício. Não sentia emoção ao trazer para o tempo presente acontecimentos que julgava ter esquecido. Encarava isso com a disciplina com que sempre se entregara a todos os trabalhos.
E portanto, era assim que os dias iam passando: de manhã tomava banho, ia para a cozinha já a pensar em episódios que tinha recordado, comia um queijo fresco ou um iogurte e uma peça de fruta -- mas estava absorta e, logo de seguida, como se fosse hábito antigo, dirigia-se para a sala. De facto, quase se sentia motivada.
Um dia, lembrou-se da ida à Argentina. Tinha-se entusiasmado com a perspectiva de ir para um país lá tão longe mas, de facto, não era pelo país, era apenas porque tinha imaginado que ele ia aproveitar para ir com ela, quase como uma lua de mel. Afinal não conseguiu. Ou disse que não conseguiu. Nunca conseguia. Provavelmente o medo de andar de avião tinha falado mais alto. O homem tão corajoso nos negócios deixava de dormir e tinha que tomar ansiolíticos de cada vez que tinha que andar de avião. Frequentemente, à última hora, inventava uma desculpa e arranjava maneira de ir alguém por ele. Tantas horas de voo para nada. Uma viagem tão difícil, mau tempo no ar, passageiros com ataques de pânico. Depois reuniões complicadas, demoradas. Muitos do outro lado e ela sozinha, apenas com o advogado local. Gente que parecia afável e afinal tão enganadores. Supostamente já estava tudo combinado, ia lá apenas para firmar o acordo e eles, sem que nada o fizesse prever, traiçoeiramente, davam o dito por não dito e queriam introduzir cláusulas que desvirtuavam o acordo.
Podias ter lá ficado mais uns dias, dissera-lhe ele, tom de censura. Talvez. Mas tudo aquilo lhe trazia impaciência. Tinha ido contrariada por ele não ir. E aborrecia-se por ter que, uma vez mais, atravessar o mundo sozinha. E sempre de cara alegre. Até que, naquela vez, não conseguiu manter a aparência, fartou-se. E regressou. De mãos vazias, sem acordo, cansada. Podias lá ter ficado. Não devias ter desistido tão facilmente. As palavras dele naquele seu tom superior, blasé. Fosse ele, pensa ela ainda, tanto tempo depois.
Outra vez. Há quanto tempo? Seis, sete anos? Fez passar a ideia de que estava ali para desenvolver a empresa que tinham comprado a preço de salto. Era a CEO. uma mulher na administração de uma empresa praticamente toda masculina. Os trabalhadores confiantes. Depois de tanta incerteza, finalmente novos donos, finalmente, na administração, alguém que apostava na empresa. E ela sabendo que não, a fingir. Sem preocupações morais, como se estivesse apenas a cumprir uma missão, cínica, cínica todos os dias. Mas, na altura, nem pensava nisso. Decidiu o fecho de delegações, a rescisão de contratos. Emagrecer, ganhar o direito à sobrevivência - dizia. Insensível a casos pessoais. Depois, quando os custos estavam mais equilibrados, nova fase: conquistar quota de mercado. E repetia os clichés todos, o empowerment, a leadership, e decidia formação para todos, e apregoava a felicidade na organização, a motivaçao, vamos todos vestir a camisola, remar na mesma direcção. E, quando os resultados melhoraram, quando a noiva se tornou apetecível, vendeu a um fundo, sabendo que no pacote ia mais uma sangria, o despedimento de mais de metade daquela gente motivada e feliz.
Aquele que tinha sido o seu braço direito, um que orgulhosamente dizia que fazia parte da mobília, ingénuo e dedicado à empresa, sentiu-se traído. Ela sabia que ele seria o primeiro a ser contactado para se ir embora mas não apenas não o avisou como, a partir do momento em que realizou a operação, lavou as mãos das consequências. Sabia que os novos donos não tinham rosto e, portanto, também não existia vestígios de compaixão -- e os trabalhadores identificados como excedentários ou iam a bem ou iam por despedimento colectivo. E ela sem querer saber disso para nada. O encaixe foi excelente. A operação rendeu-lhe um bónus e pêras. Soube que o tal se tinha suicidado. Paciência. Cabeça fraca, disse. Lembra-se da conversa no gabinete do Mr. Big Boss, ela encostada à mesa de reuniões, sedutora, indiferente aos danos colaterias da sua gestão eficaz. Era bem sucedida, conseguia sempre avultadas mais valias para o accionista, e isso era a única coisa que lhe interessava. E ele, olhando a vertiginosa mulher que gostava de o desafiar: 'És perigosa, não és? Não queria ser teu inimigo...' e olhava-a, ar malicioso -- e ela gostava de o tentar, gostava de lhe mostrar que era capaz de o ultrapassar pela direita e pela esquerda.
E, com afinco, Lu escrevia todas estas memórias.
Sem auto-complacência, sem falsos moralismos, páginas e páginas. Escrevia tudo aquilo de que se lembrava. De repente, as recordações -- que dias antes pareciam estar a esvair-se -- voltavam. E voltavam com toda a nitidez.
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Este texto que acabo de escrever vem no seguimento de Sou aquela que transgride o abismo da paixão. Faz parte de um folhetim a que ainda não dei nome. Continuo agarrada a um nome muito inconveniente. Três letrinhas apenas. Mas não pode ser.
Não sendo esse, só se fosse Lu, uma mulher muito perigosa. Mas não sei.
Todos os dias, por mera rotina, se pesava mas, também todos os dias, se esquecia de reparar no peso. Reparava, isso sim, que a magreza avançava mas isso estava longe de a preocupar. Era como se vivesse desligada dos assuntos normais, incluindo o da necessidade de se alimentar. Foi consumindo o que havia no frigorífico e na despensa, mas cada vez comia menos porque o organismo parecia precisar de cada vez menos alimento.
Era raro o dia em que não ouvia tocar à campainha mas nunca abria a porta ou, sequer, perguntava quem era. Se era de manhã, pensava que devia ser o carteiro, se era de tarde, pensava que devia ser distribuição de publicidade. Também o telefone tocava várias vezes mas apenas falava com a mãe. Eram sempre conversas breves mas a mãe não estranhou pois nunca a filha tinha tido tempo para cortesias ou carinhos. Um dia acordou a pensar que tinha que voltar a ligar para o trabalho e assim fez mas não prestou atenção às palavras preocupadas da secretária, nem atendeu aos seus conselhos. Limitou-se a dizer que tinha sucedido um imprevisto e que ia gozar férias antigas, ela que a avisasse quando os dias estivessem quase a acabar. E agradeceu e desligou. Parecia não conseguir suportar a sua vida de sempre.
Um dia resolveu esvaziar a estante onde guardava os discos e os cd's. Tudo espalhado pelo chão. Não se lembrava de ter comprado grande parte do que via. Nem sabia de que se tratava. Pensou que, se calhar, alguém que lá tinha morado os teria comprado. Pensou: a viver aqui durante muito tempo apenas um. Mas, depois desse, vários por lá tinham ficado algumas vezes. Talvez não vários mas alguns. Não tentou lembrar-se de todos. Economizava energias. Ou talvez tudo aquilo, ou quase, tivesse sido recebido como presente. Provavelmente não tinha tido tempo, sequer, para os ouvir uma única vez.
Um em especial parecia-lhe ali completamente deslocado, em contramão. Pô-lo a tocar.
Depois encostou a cabeça à janela. E aos poucos foi escorregando até ficar deitada no chão, braços e pernas abertas, a olhar fixamente o tecto. E as lágrimas voltaram a correr.
Nessa noite, estava ela ainda nua, tocaram à campainha. O telefone também já tinha tocado várias vezes. Não prestou atenção. Depois ouviu bater com a mão e ouviu gritar o seu nome.
Continuou indiferente.
E, então, ouviu a porta a abrir-se. Estava ela sentada num banquinho baixo a ver fotografias e a tentar decifrar o significado de umas palavras escritas num papel
Sou aquela que trangride
o abismo da paixão
Ora corpo que se entrega
ora escrita no seu voo
entre o fogo e a razão
quando ele se aproximou. Ela olhou-o sem curiosidade. Ele baixou-se, segurou-a pelos ombros, levantou-a. Perguntou-lhe como que com raiva: 'Mas o que é isto? O que se passa? Não atendes o telefone, não dizes nada, não respondes aos mails, não respondes quando tocam à campainha. Não te ocorre que nos preocupamos contigo? Estás doida ou quê? Ou doente? Que magreza é esta? O que é isto? O que se passa?'
Ela olhou-o nos olhos, indiferente.
Ele abraçou-a. Ela manteve-se como morta.
'Já foste ao médico? Aconteceu alguma coisa?', perguntou ele várias vezes.
Ela respondeu com uma voz que não parecia a sua. 'Não aconteceu nada. Apenas me apeteceu arrumar a casa'
Ele olhou em volta. A casa estava caótica. Livros, discos, molduras, papéis, objectos indistintos, tudo espalhado pelo chão.
'Tu não estás bem, Lu. Tens que ir ao médico. Veste-te, vou levar-te às urgências.'
Ela disse com uma voz muito tranquila: 'não. Estou bem'.
'Mas aconteceu alguma coisa? Conta. O que foi? Alguma coisa deve ter sido', insistiu ele.
Então ela sentou-se, séria e formal como se não estivesse nua e desamparada, e falou com uma voz que parecia, de novo, a sua. 'Estiveram cá. Remexeram tudo. Levaram coisas, pastas, papéis, o portátil da empresa.'
Ele sentou-se. 'A sério...? Também aqui? E não disseste nada? Falaste com o Manel?
Ela respondeu: 'Disseram que não podia falar contigo nem com ninguém. Deves saber disso. A ti devem ter-te dito o mesmo. Não sei o que estás aqui a fazer.'
A voz ansiosa, as mãos nervosas, ele estava mais velho: 'Mas com o Manel devias ter falado, é o teu advogado.'
Fria, indiferente, ela: 'Não quero saber de nada. Nada faz sentido. Preciso de descansar. Olho para trás e nada faz sentido. De tudo o que vivi, não sobrou nada. Tudo se confunde, não consigo encontrar uma linha condutora, parece que foi tudo um equívoco.'
Ele, cada vez mais preocupado: 'Tu tens que ter cuidado com o que dizes, tens que te tratar, não podes falar.'
Ela olhou-o longamente, sem emoção. Não reparou como ele ficava cada vez mais assustado. Depois disse-lhe: 'Já é tarde, vai-te embora antes que a tua mulher te faça uma daquelas cenas.'
Ele encolheu os ombros e tentou abraçá-la mas ela rejeitou-o. Fez o gesto de o acompanhar à porta. Depois, quando ele estava a dirigir-se para a saída, chamou-o: 'Olha, lembras-te de quando fui a Marrocos, as temperaturas tão altas, eu não queria ir, e tu quase impuseste que eu fosse, uma oportunidade de vida ou de morte, dizias...?'. Ele olhou-a, sem compreender. Ela continuou: 'Lembras-te de como me dizias que eu andava bonita? E eu dizia que não queria ir, que naquela altura não?'.
Enquanto falava, segurava um leque rendilhado em azul turquesa. 'O primo do príncipe ofereceu-me este leque na segunda vez que foi ver-me ao hospital, estava tanto calor lá'.
Ele olhava-a sem perceber. 'Ao hospital? Mas que hospital?'.
'Resolveu-se por si. Eu não sabia o que fazer. Melhor para todos. Estava sem coragem para acabar e sem coragem para continuar. Aquele calor, a violência daquelas viagens e daquelas intermináveis negociações resolveram o assunto'
Ele estava encostado à parede: 'Nunca falaste nisso. Devias ter-me dito.'
'Para quê? E as negociações correram bem. Era o que te importava. Mas sabes o que percebo agora? Que, disso tudo, o que sobrou foi o leque. Até o prémio chorudo que recebi na altura se evaporou. Belos investimentos que fiz na minha vida...'.
Ele não disse nada. Deixou que ela o levasse até à porta. Iam em silêncio.
Ela não soube que, logo que chegou à rua, ele deitou a mão à cabeça, esfregando o cabelo, preocupado. Ela não soube que ele ia telefonar mas que logo se arrependeu. Ela não viu que ele era agora um homem acossado. Ela não viu que ele ia curvado, magro também. Ela não viu que, quando arrancou no carro, por uma vez ele ia devagar, como se não soubesse qual o seu destino.
E outro dia veio e, de novo, o formigueiro nos dedos. Começou a habituar-se. Se olhava num relance para o espelho, pensava que as feições estavam outras. Mas também a isso começou a habituar-se.
Porém, um cansaço começava também a dobrar-lhe a vontade. Achou melhor tirar uns dias de férias. Ficava em casa, dormia, olhava pela janela, escrevia, ouvia música. Mal comia. Uma manhã pensou que podia aproveitar para arrumar algumas gavetas.
A casa estava quente e ela estava nua.
Tirou tudo, espalhou no chão roupas, papéis. Quase não se podia andar, de tal forma a casa ficou caótica.
Foi buscar sacos grandes e começou a separar, para dar ou para o lixo, roupas antigas, extractos bancários, facturas da água, da luz.
De vez em quando ficava parada a olhar, sem se lembrar de vestidos, blusas, documentos. Encontrou um envelope cheio de fotografias. Custou a reconhecer-se. Não tinha ideia de quando seria aquilo. Com um vestido preto, justo, de alças, muito decotado, todo brilhante, talvez revestido a lantejoulas. Os lábios, pintados de vermelho, pareciam mais cheios. Sorria e seduzia quem a fotografava. Mas quem? Olhou com atenção, tentando perceber onde tinham sido tiradas. Via uma lareira. Numas fotografias estava a dançar mas não se via mais ninguém. Pela pose e pela expressão, era notória a intimidade.
Fechou os olhos, tentando lembrar-se. Mas logo o pensamento deslizou para uma preocupação: seria normal não se lembrar? Estaria tudo bem com ela? Levantou-se, foi até ao espelho, olhou-se bem. Em voz alta, perguntou: Está tudo bem comigo? Ficou a olhar, como se esperasse resposta.
Foi, de novo, até aos armários que estava a tentar arrumar e, de repente, lembrou-se de um dia, muitos anos atrás. Um homem fazia-lhe uma festa no cabelo, abraçava-a, perguntava-lhe se ela não queria pensar melhor. Não. Não precisava. Estava certa. Admira-se agora de como estava tão segura da sua decisão. O homem segurava-lhe as mãos, queria que ela pensasse bem. Depois queria acompanhá-la. Não. Não queria.
Lembra-se bem. Foi sozinha. Quando ia a entrar vacilou. Mas não se deteve. Estava no início. Pensava que ainda não era gente. Nunca mais quis pensar no assunto. Só agora. Tenta recordar-se do ano em que isso teria sido. Teria agora vinte anos, vinte e qualquer coisa, talvez. Não sabe bem. Ocorreu-lhe que nunca tinha pensado se era menino, se menina.
Não sabe também desse homem tão gentil. Porque acabaram? Lembra-se dele. Encostava a sua cabeça à dela, De noite, beijava-lhe os ombros. Disso lembra-se.
Lembra-se que ele, anos mais tarde, lhe telefonava de vez em quando a saber se ela estava bem. Perguntava também pelos pais, pelo trabalho. E ela nunca lhe perguntava nada.
Continuou a arrumar papéis. Encontrou um com um poema manuscrito.
Este é o labor
de fogo
nesta avidez insensata
de existir
entre a lírica
e o corpo
pela fundura do poço
a navalha da paixão
a rosa do alvoroço
Não reconheceu a letra. Quem o teria escrito? Tentou pensar mas o pensamento não fluía. Não se lembrava nem da ocasião em que o poema aparecera nem de quem poderia tê-lo escrito. Admitiu que podia ser a sua letra. Mas, se calhar, não. Um rosto perpassou-lhe, então, pela memória. Fechou os olhos. Releu. Sentiu que não continha as lágrimas.
Passado algum tempo, disse, então, quase em surdina: Uma vida sem rasto, cada vez mais sem rasto, o rasto a esvair-se.
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O poema que inseri no texto chama-se 'Fogo' e é de Maria Teresa Horta inPoesis, o livro que eu queria trazer, e trouxe, da Feira (e do qual é também o poema que serve de mote ao meu texto de hoje no Ginjal & Lisboa, a love affair)