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sexta-feira, maio 24, 2024

Longos anos vão desde que o meu avô se entretinha a fazer empreita até ao apoio que a Hermès dá à arte do vime

 

Quando eu era pequena via muitas vezes o meu avô a escolher folhas ripadas, a estendê-las, a prepará-las para o trabalho. Creio que com canas fazia os moldes e depois ia entrançando em volta.

Leio que:

A empreita de palma consiste no entrançar de “tiras ripadas” da folha da palmeira-anã, em longas “fitas”, e é um dos elementos mais enraizados na cultura material algarvia. Era utilizada na realização de artefactos do quotidiano rural, no acondicionamento e transporte de bens e alimentos, em objetos para uso doméstico, nos trabalhos agrícolas, na pesca e em alguns objetos de uso pessoal.

(...) O modo de produção dominante pouco foi alterado ao longo dos anos. No início do processo, as folhas de palma são secas ao ar e depois ripadas pelas nervuras, resultando em “tiras” que variam de largura, em função do tipo de trabalho que se pretende. A “empreita” consiste na produção de longas “fitas” feitas a partir das tiras de folha entrançadas, de diversas larguras. Cada fita é arrumada em rolo à medida que é produzida, atingindo vários metros de comprimento. Tradicionalmente, as fitas são cosidas com “baracinha” ou “tamissa”, ou com tiras de palma, para dar a forma do objeto pretendido, criando um tecido contínuo com uma trama diagonal  (BRANCO; SIMÃO, 1997).

Não creio que o meu avô usasse ripas de palmeira-anã pois não tenho ideia de as haver por ali. Provavelmente usava algum sucedâneo. Mas quem sabe ele teria descoberto algumas dessas palmeiras. 

As cestinhas onde eram colocados os ovos das galinhas da sua capoeira ou as cestas das nêsperas ou das ameixas ou de outra fruta que apanhava nas suas árvores eram feitas por ele. Identicamente fez algumas alcofas úteis para transportar compras.

Quando eu era miúda, pedi-lhe que fizesse algumas para nós e sei que ele as fez, lembro-me de as ver em nossa casa, isto é, na casa em que eu vivia com os meus pais. Mas agora, quando lá andei a escolher e retirar coisas, não encontrei nenhuma. E tenho pena.

Também tenho pena de nunca ter fotografado o meu avô a fazê-las e de não lhe ter pedido que me ensinasse.

Gostava muito de assistir àquela sua arte mas creio que era a única, para além dele. A minha avó até se irritava pois preferia usar as suas taças de louça ou vidro e não aquelas, campestres, que transportavam a memória do Algarve. E os meus pais também não faziam questão. Provavelmente achavam-nas demasiado rústicas para a nossa casa.

Neste momento, as cestas de empreita feitas pelo meu avô só existem na minha memória. Com sorte existirão também na lembrança da minha prima.

Hoje, ao abrir o youtube, apareceu-me o vídeo abaixo. Gostei muito de ver. Fazer peças com as próprias mãos é, para mim, sempre muito especial pois uma parte de quem as faz fica ali.

Já agora, por curiosidade:

Hermès
Kelly Picnic handbag
(Very good condition)
Green, Wicker 77000 €
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Desvendando a arte do vime em Villaines-les-Rochers 

| Passos da Hermès em todo o mundo

Entre as ruas tranquilas e as casas de pedra de Villaines-les-Rochers, uma antiga vila na França, existe a tradição de trabalho em vime. Mãos hábeis tecem meticulosamente os finos ramos do salgueiro petite grisette, transformando-os em obras de arte. 

A arte do trabalho em vime é praticada desde o século VII em Villaines-les-Rochers e é perpetuada pelos cerca de cinquenta trabalhadores em vime e cesteiros da cooperativa local de vime criada em 1849. 

A Hermès, parceira desta estrutura há mais de quarenta anos, reforçou o seu compromisso ao longo do tempo, num espírito de criatividade constantemente renovada. Dos objetos domésticos, a colaboração estendeu-se à incorporação de bolsas e acessórios de moda, fomentando uma cultura de inovação e criatividade.

Ao promover estas competências excepcionais, novas vocações são inspiradas e o ofício continua vivo.


sábado, fevereiro 10, 2024

Cartas de amor
(em noite de debate de Raimundo versus Ventura e outros)

 

O dia foi um pouco puxado ou, então, sou eu que estou a chegar à fase de alguma descompressão. Não sei. O que sei é que, depois de jantar, adormeci no sofá, mas adormeci tão profundamente que o meu marido estava francamente admirado. Não apenas me acordou algumas vezes como me perguntou o que é que eu tinha. 

Por exemplo, perdi grande parte do debate do pobre Raimundo com o tresloucado Ventura. Quando vi, estava o Raimundo às aranhas, titubeante, a parecer que queria dar cabo do outro mas a fazer aquelas figuras tristes que fazem os cãezinhos minúsculos quando, lá em baixo, se põem a ladrar freneticamente junto às pernas dos cães grandes que não lhes ligam patavina.

Também só vi um bocado do comentário do Paixão Martins, sempre fino como nenhum outro, com o Calafate. 

De facto, não percebi que onda de pesado sono foi esta que me submergiu.

E ainda não me encontro totalmente refeita. 

Por isso, não vou relatar com pormenor as minhas peripécias com a NOS, não apenas telefonicamente como em loja (onde fui entregar os equipamentos que estavam em casa da minha mãe). Digo-vos apenas que é uma despersonalização da mais absurda que há. Reconhecem que erraram (isto é, não deram seguimento ao meu pedido de cancelamento, comprovadamente feito ainda o ano passado), constatam que o erro prossegue (apesar de ter entregue os equipamentos, o contrato continua activo) mas afirmam que têm que continuar a errar (leia-se, a enviar-me facturas relativas ao contrato da minha mãe) até ao fim do ciclo (?) e que só nessa altura é que posso apresentar uma reclamação e pedir que anulem facturas emitidas indevidamente. Explicam-me que, na realidade, compreendem que eu ache estranho mas que não podem fazer nada, 'é o processo'. 

Tanto se automatiza e tanto tentam tornar-se eficientes que se tornam burros.

Já no outro dia, quando estivemos sem comunicações durante três dias e eu me queixei ao jovem que cá veio, respondeu-me ele: 'Três dias? Três dias está é muito bom... Tem vezes que vai quase a uma semana ou mais...'. 

E um desgoverno a gestão das equipas de manutenção da NOS. Dava um post, tal a barafunda e o mau serviço. 

Mas adiante que não estou em condições.

Tinha dito que ia fotografar o serviço de café (o tal que não é como aqueles de fundinho branco e florzinhas mimosas da VA, este é de uma fábrica na Baviera) que foi, adquirido pela minha mãe há certamente mais de cinquenta anos, por grande insistência minha. Aqui está, fotografado hoje, depois de ser desembalado e antes de ser devidamente arrumadinho num canto que lá consegui arranjar numa vitrina.


Não é lindão, mesmo?

Também estive a retirar cartas e fotografias e coisas que estavam misturadas nos sacos. Lembrei-me que estavam umas caixas grandes de cartão na garagem e já separei algumas coisas pelas caixas. Dentro das caixas ainda estão a granel e ainda devem ser agrupadas e organizadas. Mas tenho que ter tempo e disposição para isso. A menos que alguém me ajude. Mas também não sei se me apetece que se ponham a ler as cartas que me eram dirigidas, mesmo que de amigas.

Vou colocar as caixas nas estantes do compartimento do sótão que antes, quando a casa tinha outros donos, era a biblioteca privativa do senhor, apenas para as revistas e livros profissionais dele. 

Desencantei também uma saqueta com estojos de canetas. Presumo que fossem presentes que o meu pai recebeu. Claro que também não as usou. Guardou-as e agora vieram parar aqui a minha casa. Estão agora cá, numa gaveta, sem que eu também tenha uso para lhes dar.

No outro dia, em casa da minha mãe, também dei com uma coleção de leques numa gaveta de uma mesa de cabeceira. Ofereci-lhe alguns deles e só me lembrei disso ao revê-los. Ainda este verão lhe trouxe um do Algarve pois queixava-se do calor e nunca a via com leque. Afinal guardava-os todos bem guardadinhos. Como gosto muito de leques e tenho alguns que me parecem bem bonitos, coloquei um deles ao pé dos meus mais bonitos que estão como peça decorativa numa estante com portas de vidro.

Quanto às cartas do meu pai para a minha mãe, quando namoravam e ele estava longe, na tropa, a minha filha está cheia de curiosidade. Vai ficar surpreendida. Acho que vai ela, vai o irmão, vai o meu marido. Também eu estou pois desconhecia a faceta romântica do meu pai. Aposto que o meu marido nem vai querer saber, vai querer respeitar a contenção que o meu pai sempre revelou.

Estive a ver as fotografias dele quando era novo. Era um galã. Vestia-se e penteava-se de uma forma elegante e sedutora. Mas, ao mesmo tempo, era um desportista. Lembro-me muito bem dele a jogar futebol e a organizar torneios e lembro-me que fazia parte da equipa organizadora das equipas que praticavam todos os desportos. Por exemplo, os meus tios jogavam vólei. O meu pai acompanhava-os (e nem sei se também jogava, mas tenho ideia que eles é que jogavam a sério). Mas dois primos dele praticavam hóquei em patins. E eu adorava ir ver, à noite, esses jogos, sempre muito renhidos. Lembro-me bem de estar à espera deles e, às tantas, ouvir o barulho dos patins das equipas a descerem a rampa até ao campo e de achar que aquilo era uma excitação. E lembro-me de uma vez, em campo, se terem picado uns com os outros, já parecia que ia haver pancada, e de o meu pai, muito ágil, saltar por cima da barreira do campo. Pôs a mão em cima, deu balanço, e saltou lá para dentro. E eu fiquei com medo que se envolvessem à pancada com o meu pai no meio. Mas não. Com uma grande calma, lembro-me de ele ter posto uma mão no peito do primo, que era alto e bonito como um galã, do género do Belmondo mas mais bonito, e a outra mão no peito do outro, da outra equipa. E lembro-me de ele ter conseguido impor respeito e eles se terem acalmado e acabarem a dar um aperto de mão e, só então, o meu pai saiu do campo.

Mas, dizia eu, em família não me lembro de observar nele uma faceta romântica. E, afinal, ao ler as suas cartas, fico estupefacta. Ainda só consegui espreitar, e por alto, duas cartas. Sinto-me intrusa. Quem escreve uma carta de amor escreve apenas para a pessoa que ama, não para ser pasto para diversão ou especulação alheia.

Por exemplo, até as minhas cartas, as que foram dirigidas, me custa um bocado a ler. Declarações inflamadas, juras de amor eterno, diminutivos enternecidos, desenhos de corações... Bocados de um tempo passado. Já não somos os mesmos. Quem assim me escrevia já não é hoje assim e a que recebia aquelas palavras pingando amor já não sou eu. Quando me forçar a lê-las, admitindo que o consigo, terei que me esforçar para não as achar cansativamente ridículas. Felizmente não tenho as que eu escrevi senão sentir-me-ia, certamente, agoniada. E, isso, em especial, por, à posteriori, pensar que nada daquilo era verdadeiramente sentido. Se calhar, queria iludir-me, se calhar queria gostar, se calhar sentia-me bem por poder experimentar a sensação de parecer estar apaixonada. Mas na verdade não estava por aquele a quem escrevia as cartas. Portanto, ainda bem que não vejo o que escrevi. 

Mas adiante. Pode ser que um dia me apeteça partilhar aqui uma dessas inflamadas cartas de amor que recebi.

Hoje partilho uma página de uma das cartas que o meu pai escreveu à minha mãe. Aqui fica pro memoria. A sua letra manteve-se assim, firme, determinada, organizada, sem atropelos, com hastes e pernas pronunciadas. Isso diz muito da sua personalidade.


E partilho também uma das páginas da carta que o meu avô materno escreveu à minha avó. Afinal não é tão antiga quanto imaginei. Não sei onde fui buscar isso pois a carta não tem qualquer data e, como foi entregue 'por mão própria', não há carimbo. Mas penso que, no máximo, será de 1930. 

Diria que não era muito fã da sagrada arte da ortografia. Mas, na verdade, não sei se são erros ou se na altura se escrevia assim. 

Mandei antes à minha filha e ela deu-se ao trabalho de traduzir e de me enviar (porque eu estava um bocado impaciente para me concentrar nessa tarefa). Não escrevo aqui para não vos privar do prazer de tentarem descodificar por vós... 😃

Apaguei a nome da minha avó pois acho que devo manter estas coisas anonimizadas mas, por sinal, é um nome de que gosto bastante. 

Sei que eram apaixonadíssimos e que a minha avó ficou severamente abalada quando ele morreu, e ficou-o durante anos, creio para o resto da vida.


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E hoje fico-me por aqui. É tardíssimo.

Um dia feliz.

Saúde. Amor e encantamento e paixão. Paz.

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

Não faço a mínima ideia de quem eram os meus antecessores.
Seria interessante conhecer as minhas raízes?

 


É verdade e já várias vezes aqui o referi. O passado não me interessa. Há algum tempo a minha mãe queixou-se que só tardiamente soube onde tinha sido baptizada porque a sua mãe não ligava a nada disso e pouco conversava sobre esses aspectos. Fiquei muito admirada. Disse-lhe: 'Eu também não sei onde fui baptizada, também nunca me contou'. Ficou desconcertada. Depois disse-me onde tinha sido como se eu devesse saber. E eu, como de facto, também não ligo, esqueci-me no momento seguinte.

Também sei que ele e a minha mãe tinham inúmeros primos, grande parte deles espalhados pelo país e pelo mundo mas também nunca me interessou saber que é feito deles. De uns ou outros tenho fugazes ideias, chegaram a ir visitar-nos ou às minhas avós mas sempre foram vidas tão diferentes e longínquas que nunca investi o meu interesse.

Mas lembro-me de um evento singular. Havia uma prima com quem a minha avó materna se dava muito. Não sei se era prima direita daminha avó ou da minha mãe ou se era filha de alguma prima direita. A minha avó era muito nova. Teve a minha mãe, acho, com 16 anos. Encobriu a sua verdadeira idade creio que para parecer que tinha sido aos 17. Só quando morreu é que isso foi descoberto. Toda a vida festejámos os seus anos numa data errada.

Fui ao casamento dessa prima. Devia ir pelos trinta ou trinta e picos quando se casou. Aliás devo ter sido, uma vez mais, a menina das alianças. Depois teve uma filha, por sinal muito bonita.

Até que um dia um burburinho, conversas a meia voz. A minha mãe, a minha avó, uma das minhas tias. Já eu devia ser quase adolescente. Percebi que havia um segredo prestes a ser revelado. Não sei como, presumo que foi trama cujo conhecimento me foi subtraído, o que sei é que a minha avó tinha recebido uma carta, tinha havido troca de correspondências. E que ia haver um encontro intermediado pela minha avó, em sua casa. A dita prima, o seu amoroso e dedicado marido e uma jovem mulher, já casada, espanhola. Sua filha. Toda a gente para morrer.

O encontro deu-se, contou a minha avó que foi muito emotivo, o marido da prima aceitou aquela mulher espanhola que diziam ser belíssima, muito parecida com a sua irmãzinha portuguesa.

Tinha vindo também com o marido, com um filho bebé. Foram conhecer os meus país a nossa casa. Era, na realidade, um espanhola toda ela sentimento e emoção, encantada por ter encontrado a família portuguesa que procurava há tanto tempo.

Nunca mais soube dela. Se calhar a minha mãe sabe. Eu não. Esqueci-me.

Sobre os meus avós, maternos e paternos sei que vieram do Algarve. 

O meu avô paterno, um aventureiro que em adolescente, tendo o pai fugido do país, andou por Espanha e por França e que me encantava por falar francês, tinha traços orientais,

A minha avó paterna, algarvia típica, relativamente baixa, senhora do seu nariz, tomava decisões sozinha que deixavam o meu pai furioso, em especial quando vendia terrenos, casas, propriedades em zonas que já estavam a bombar. Decidia que não queria chatices e desfazia-se de tudo, quase sempre a preços irrisórios. Lembro-me da estupefacção e irritação do meu pai e dela se estar a marimbar. O meu avô também. Eram coisas que tinham sido herdadas por ela, que fizesse o que quisesse. Até nisso a sua calma era oriental.

É do lado dessa minha avó, que tinha vários irmãos, que conhecemos mais tios e primos mas, apesar disso, a maioria anda pela Austrália, pela França e sabe-se lá por onde mais.

O pai desse avô foi o senhor morgado que, tendo perdido tudo no jogo e nas 'mulheres', partiu para a Argentina (ou para a Venezuela) sem se despedir ou deixar algumas indicações. Durante décadas ninguém o procurou nem ele procurou a família. Perdeu-se-lhe o rasto.

Do lado da minha mãe havia o pai dela, invulgarmente alto, invulgarmente muito louro, com olhos invulgarmente azuis. Não faço ideia das suas origens nem da sua família. Morreu novo, num horrível acidente. Presumo que se tenha pedido a ligação à sua família.

Da mãe da minha avó materna era prima de um presidente da República e já contei que, quando morreu, vi correspondência dessa bisavó com primos algarvios, invulgarmente cultos e divertidos. Não sei onde param essas cartas. Essa minha avó teve vários irmãos, um dos quais lutador pela democracia que viveu entre prisões, deportações e clandestinidades. Mas sobre as origens mais para trás não faço ideia.

Quando vejo estes vídeos em que é revelada a geneologia até tempos longínquos a pessoas que não faziam nem ideia, fico a pensar como seria a minha reacção se descobrisse coisas das quais nunca sequer suspeitei. Faz diferença a gente conhecer as nossas raízes mais profundas? Não sei. Diria que não. Mas sei lá.

Jeff Goldblum reacts to Family History in Finding Your Roots | Ancestry


Um dia bom
Saúde. Rápidas melhoras a quem delas precisa. Paz.

sábado, agosto 20, 2022

Boas memórias. Cozinhar para os outros.

 


Estou a ver um maravilhoso programa de culinária no 24Kitchen com Silvia Colloca que fala de comida italiana. Cozinha ao pé dos convidados numa bela varanda rodeada de natureza. Conversa, envolve a conversa, a comida e o ambiente com sorrisos. Há ali leveza, boa disposição. A partilha de experiências e de memórias ao ar livre e em volta de uma panela de onde se evolam os belos cheiros dos cozinhados é uma coisa boa.


E a luz das imagens traz alegria. O ar livre e os verdes dão saúde, mesmo quando visto através da televisão.

E ao ouvir falar de iguarias italianas lembrei-me de quando fui ter uma reunião numa empresa em Milão. Para começar, fui à vontadinha pensando que se poderia ter as reuniões em italiano pois tinha a ilusão de que, mais coisa menos coisa, as parecenças entre o português e o italiano seriam suficientes para nos entendermos. Ilusão. Nem pouco mais ou menos. Há palavras tão diferentes que bloqueiam o entendimento de toda a frase. Acabámos por ter que usar o inglês o que me deu muita pena pois adoro o italiano.


Mas o que quero contar é que os nossos anfitriões tinham reservado um restaurante especial para nos levar. Avisaram que era fora da cidade e que íamos comer a genuína comida campestre italiana. Não faço ideia onde era. Não tenho qualquer sentido de orientação espacial nem memória para nomes de restaurantes. Sei que era mesmo no campo. Uma estrada de terra batida ao longo de um ribeiro. Havia uma casa branca, o restaurante propriamente dito, e, cá fora, uns paus espetados na terra e uns panos, como que lençóis brancos atados com nós do próprio tecido, fazendo uns toldos artesanais. Havia trepadeiras, havia vasos com flores. Por baixo de cada lençol havia uma mesa de madeira comprida e uns bancos corridos. 

Os comensais em todas as mesas conversavam animadamente. Lembro-me de virem grandes taças de comida e era comida apaladada, com molhos suculentos. E nós ali no meio do campo, no mais inesperado restaurante. Parecia uma animada reunião de família.

Andei à procura na net mas não descobri. Pode até já não existir. O mais parecido que encontrei foi este aqui acima.

Outra coisa de que me lembrei ao ver o programa (na parte do gelado de morango) foi de quando, em pequena, ia apanhar morangos com o meu avô. A casa dele era geminada de um dos lados. À frente e do outro lado tinha um jardim que era mais o pelouro da minha avó. Nas traseiras, num terreno que ia em socalcos por ali acima, o meu avô tinha a sua horta. Plantava batatas e cebolas e isso ocupava a zona maior. Depois tinha feijão verde que trepava por umas canas cruzadas e que eu gostava imenso de ir apanhar. 

O tomate alongado também trepava por canas. O meu avô apanhava-os com as ramas e entrançava-as, guardando suspensos na casinha que avia no quintal e onde cebolas e tomates suspensos pelas respectivas ramas aguentavam o ano inteiro. 

Outros tomateiros eram menos atrevidos, cresciam mais modestamente, sem se arrebitarem tanto. 

Tinha também alhos, alfaces, couves, salsa, coentros. E tinha árvores de fruto. E depois, num canteiro elevado, havia morangos. Eram miudinhos mas carnudos, macios, muito docinhos. 

O meu avô chamava-me para ir com ele. Eu acreditava que ele precisava da minha delicadeza de gestos. Dizia para eu agarrar com cuidado, para não os desfazer, para torcer ao de leve para se desprenderem. Por vezes, antes ia à arrecadação onde guardava as ferramentas e trazia uma tesoura preta. Cortava os pezinhos dos morangos com cuidado. À medida que os íamos apanhando, íamo-los dispondo com cuidado numa cestinha. Chegavam incólumes à cozinha. Aí a minha avó abria a torneira e lavava-os em água corrente. Ensinava-me a pegar neles com cuidado e dizia que os morangos tinham que ser sempre muito bem lavados pois estavam em contacto com a terra e nunca se sabe que bichos ou porcarias por lá andavam. O meu avô não queria saber do que dizia serem os exageros dela. Muitas vezes apanhava-os, limpava-os com a palma da mão e comia-os assim mesmo. Mas eu, por via das dúvidas, limpava-os bem. De resto sempre gostei de lavagens.

Ainda hoje tenho esses cuidados apesar de, se calhar, os morangos que compro no supermercado nem saberem o que é terra.

E depois há o gosto em cozinhar, a vontade de fazer o que a gente vê nem que seja em fotografia e, ao saber o que é, começar logo a pensar em como fazer e, logo, logo, em introduzir algumas variações. Por exemplo, vi o que a turma do meu filo tina jantado num restaurante no interior algarvio: açorda de galinha e ensopado de javali. Pedi ao meu filho que me falasse da açorda. Falou e agora estou com vontade de fazer. Se calar vai ser o nosso jantar de sábado. Falei à minha filha e ela disse que estava adjudicado. Do ensopado de javali não sei, teria antes que ter o dito. Mas se calhar ficará bom se for feito com pernil de porco.

Também tenho uns chocos que congelei fresquinhos, por amanhar, sujos da sua tinta. Tenho que fazê-los cozidos, com as suas entranhas. Só é preciso tirar, antes de servir, a saqueta da tinta que está em baixo e que tem matéria áspera. Cortados aos bocadinhos, a gomosidade dos interiores, azeite, cebola crua às lasquinhas, salsa. Bom demais.

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E é isto. Por ora, nada mais me apraz dizer. 

Deixo-vos apenas com um vídeo que mostra Silvia Colloca para quem ainda não a conhece.


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Nota: a tecla do h no meu teclado hoje deu-lhe para entrar em greve. Uma luta para que colabore. Por isso, se derem por falta dele em algumas palavras, por favor relevem, ok?

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Desejo-vos um bom sábado
Saúde. Boas partilhas. Gratas recordações. Paz.

terça-feira, novembro 17, 2020

Reparar danos, ficando a coisa melhor do que era.
Kintsugi. Dourar memórias.
Uma dança do início e do fim dos tempos

 



Hoje não consegui ler. Tenho o livro ao meu lado mas ponho-me a ver televisão e o tempo vai passando. Primeiro vi a entrevista de Fátima Campos Ferreira a Lídia Jorge. Superei a aversão que tenho à forma como a Fátima Campos Ferreira fala -- quase como se estivesse a falar com crianças ou com atrasados mentais, a fazer perguntas parvas, frequentemente a apelar à lamechice -- só para ver e ouvir Lídia Jorge. Não é escritora de minha especial afeição mas acho uma certa graça à forma como ela fala do Algarve rural. Há ali raízes que mergulham num chão que também sinto como um pouco meu. Toda a minha família foi, até certa altura, algarvia. Todos os meus quatro avós são algarvios. Contudo, saíram de lá ainda muito jovens. Para os meus pais, o Algarve era apenas a terra dos seus pais, tios e avós. Para mim, o Algarve ainda é uma realidade familiar ainda mais distante. Contudo, quando ouço falar do Algarve penso sempre no que são os caminhos do acaso.

Já aqui o falei: se ainda não o ocuparam, ainda deve lá estar um terreno que era do meu bisavô e que, em herança, passou para o meu avô paterno. As irmãs ficaram com a casa grande, ele com aquele terreno. Mas nunca ninguém tratou de nada. Milagrosamente, o terreno e as casas grandes, que cheguei a conhecer, tinham escapado aos pagamentos de dívidas do pai dele. Fugiu do país para fugir às dívidas de jogo e às avultadas despesas com mulheres, depois de ter perdido outras casas e outras terras. Como não havia certidão de óbito do meu bisavô para fazer a habilitação de herdeiros, não se passou para o nome do meu avô. Depois foi o meu avô que morreu e também ninguém mexeu uma palha. O meu pai também já cá não está e tudo continua na mesma. Nem eu nem a minha prima estamos para isso. Trabalhos para quê? 

Do lado da minha avó paterna, foi o mesmo desinteresse: tinha herdado terrenos e casas. Desfez-se de tudo. Conheci apenas uma propriedade contígua a uma que tinha sido sua: era a casa de uma sua sobrinha, uma casa grande, um terreno imenso com alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras, uma ribeira, animais. Eu gostava daquilo. Muito sol, muita liberdade. Campo, campo. O meu pai ficava doido com o que a mãe fazia, vendendo tudo por tuta e meia, grande parte das coisas a essa sobrinha de quem ela gostava muito. O meu pai achava a prima uma oportunista e a minha avó não gostava que ele falasse assim da prima. Essa prima tinha nome francês. Tinha nascido em França. Não sei que voltas deram os meus antepessados. Como o meu pai e o meu tio não queriam saber de contratar pessoal para apanhar e secar as alfarrobas, os figos ou para fazer azeite, a minha avó, sem os consultar, achava que não valia apena ter tudo aquilo. Com os terrenos a valorizarem-se exponencialmente, ela não queria saber disso. 

E o meu pai tinha vários primos e quase todos debandaram, para França, para o Canadá. A filha mais velha de um dos primos, um pouco mais nova que eu, ainda apareceu uma vez, parisiense de gema. Elegante, bonita. Não a vi, contou-me a minha mãe. Sei que tem uma irmã, também parisiense, também muito bonita. Até nunca mais. Não sei como poderia saber deles. Perderam-se no mundo, sem quererem saber de laços familiares. Nem eles nem eu.

Do lado dos meus avós maternos, era outra coisa, gente mais citadina. Do lado da minha avó, só sei que era gente dada à política, um irmão que vivia na clandestinidade, primos da minha bisavó que eram gente de cultura e da política, feitos e factos conhecidos, um deles faz parte da história política e cultural do país. Muito primo e prima. A minha mãe e o meu tio ainda mantiveram laços com os primos mas pouco entusiasticamente. Eu nada sei deles. Soube quando era pequena. Íamos a Faro visitar as primas da minha mãe. Uma casa grande na cidade. Tenho ideia que as portadas estavam quase fechadas, a casa sombria, móveis altos e escuros. 

Do lado do meu avô materno nada sei. Todo ele era diferente: muito alto, muito louro, de olhos claros. Não sei se tinha família, nunca ouvi falar. Tenho ideia que a minha mãe dizia que era de Alte. Mas não garanto. Não sei se tinha irmãos, não sei se a minha mãe teria primos desse lado. Não sei se a minha mãe conheceu avós do lado do pai. Também nunca me lembrei de lhe perguntar. 

No entanto, curiosamente, os meus avós maternos guardaram até ao fim da sua vida muitos hábitos da sua infância e adolescência algarvia. E falavam nesses tempos, uma ancestralidade que lhes ficou colada à pele. 

Havia também na rua dos meus pais, a rua da casa em que cresci e onde a minha mãe vive, uma vizinha algarvia. Conhecia parentes dos meus avós. Falava sempre desses tempos, desses hábitos. Ouvido de fora, tudo aquilo era muito irreal, antigo, as coisas descritas com explicações que pouco tinham de racional. O meu pai aborrecia-se: ignorância. Não conseguia aguentar um minuto daquelas histórias ou recordações. Impacientava-se por achar que era ignorância a mais. A minha mãe não, a minha mãe achava graça, gostava daquelas conversas. A vizinha dizia mal os tempos dos verbos. Em vez de 'fomos' dizia 'foramos'. A minha avó, quando relatava o que os familiares e conhecidos diziam, usava os verbos da mesma maneira. O meu pai irritava-se, dizia-lhe que parecia que não sabia falar. Ela dizia que estava a imitá-los. O meu avô ouvia aquilo e não dizia nada, não se metia em discussões. 

Gostava de fazer cestos. Já o contei. Sei que me repito mas gosto de recordar esses gestos vagarosos em tardes que me pareciam eternas. Apanhava folhas que punha a secar e, depois, sentado num banco baixo, punha-se a entrançar aquelas folhas resistentes: baracinha. Penso tantas vezes: porque não consegui conservar nenhum desses cestos se gostava tanto deles? Ali ele punha a fruta ou os ovos que a minha avó ia buscar à capoeira. O meu pai não ligava nada àquilo, acho que nem olhava. A minha mãe também achava que aquelas cestinhas tinham algumas imperfeições. Eu não, eu adorava.

Não sei se por tudo isso, gosto de ouvir a Lídia Jorge a falar do seu Algarve, das suas histórias de antes, daquele Algarve rural, antigo, as raízes bem fundas em tempos de outros tempos.

A Lídia Jorge não falou nisto mas falou em coisas que me fizeram lembrar isto.

E, a seguir à Lídia Jorge, virei para o Master Chef Australia. Pura magia. Ver criar obras de arte daquela forma é para mim um prazer. A forma arrojada e inteligente como combinam ingredientes e a perfeição dos gestos deixam-me presa. Gosto mesmo. E mais gostaria se pudesse provar...

E, nesta mansidão, o tempo vai passando e eu aqui preguiçando.

Tirando isto, posso apenas acrescentar que ontem ao fim do dia colei aquela grande taça de cerâmica onde estava o aloé vera, que se partiu. Depois de muito procurar, descobri um tubo com alguma cola-tudo. Temi não ter trazido nenhum tubo da outra casa mas, surpreendentemente, encontrei um. Colei e depois atámos um arame fininho em volta do rebordo para ajudar a manter a coesão entre as partes. O meu marido acha isto uma coisa do além. Por ele, partiu-se, vai fora. Eu não. Acho aquele grande vaso uma peça mesmo bonita. Falei-lhe no kintsugi. Ele não sabia o que era e também não quis saber. Eu é que não tenho nenhuma tinta dourada, senão haveria de tornar o vaso ainda mais bonito.

Sempre me custou deitar fora coisas de que gosto. Se estão danificadas, penso que devo tentar recuperá-las e não desfazer-me delas. No fundo, tenho este meu lado zen. O meu avô paterno tinha traços orientais. Traços e atitude. Pescava nas horas vagas, cuidava da horta, fazia cestos, lia. Era uma pessoa calma, silenciosa. Nunca o vi gritar, nunca o vi exaltar-se. Entretinha-se com coisas simples. Eu gostava muito dele. De pequena até ele ser bem velhinho sempre tivemos um amor muito grande um pelo outro. Custou-me muito quando ele cegou. Sentia-se muito diminuído por não poder fazer nada do que gostava. Ninguém merece.


Hoje à hora do almoço, fomos buscar terra lá abaixo, enchemos a taça, transplantei uma planta que tinha trazido do supermercado e da qual não me lembro do nome. Coloquei umas pequenas estacas de outras plantas para compor. Se me lembrar, amanhã mostro. Na entrada de lado há um pequeno terraço para que se sobe por um lance de meia dúzia de degraus. Já lá coloquei umas quatro plantas. A ver se se dão ali. Acho que está a ficar bonito. 

Pelo meio, trabalho, essencialmente reuniões, confecciono as refeições, faço uma caminhada, vejo as laranjas a crescerem nas árvores. O tempo precioso que antes gastava no trânsito agora uso desta forma. Podia usá-lo para conseguir deitar-me mais cedo... mas esqueçam, isto é genético: sou noctívaga, nada a fazer. E estou bem assim, obrigada.

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Despeço-me com um vídeo comovente que invadiu a comunicação social depois de ter invadido as redes sociais. Tocante. Marta Cinta, bailarina, doente com Alzheimer, recorda a dança ao ouvir o Lago dos Cisnes. Tão extraordinário, tão comovente. Que seres vulneráveis e indefesos somos.


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Desçam, por favor, pois a entrevista da enfermeira  Alisyn Camerota é digna de ser vista e revista

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E uma terça-feira feliz. 
Saúde. Força. Ânimo.

sexta-feira, julho 31, 2020

A minha dúvida existencialista a propósito das arrumações





Depois da melancia, não sei o que posso escrever mais pois tenho ideia que é preciso ter cuidado com o que se ingere a seguir, parece que a dita pode encortiçar. Na volta é mais um daqueles mitos urbanos. Mas, por via das dúvidas, tenho que ter cuidado com o que vou dizer a seguir. 

E o que tenho a dizer -- passando ao lado das grandes causas da humanidade e dos casos algo complicados com que tive que me deparar ao longo do dia -- é que, ao fim do dia, voltei às minhas arrumações. Deixei quase para o fim um móvel que tenho na sala de jantar. Há o louceiro e há o aparador. O que mais temia era este aparador: uma verdadeira arca do tesouro. Cheio como um ovo com tesourinhos deprimentes. Tremo de lá mexer. Ao longo de anos fui para lá enfiando tudo e mais alguma coisa. Coisas do enxoval, coisas herdadas, presentes que diferentes ofertadores e que atravessam épocas, estilos díspares, utilidade por vezes duvidosa. Numa ginástica que desobedece às leis da física, encaixo, sobreponho, enfio. E lá fica tudo, esquecido.


Em dias de festa ou de maior número de comensais, tenho que me afoitar e, quase a tacto, enfiar a mão e, devagar, qual jogo do micado, tirar a travessa, a terrina, o balde gelo ou a taça de vidro em forma de morango para servir os morangos, de maneira a que tudo não se desmorone e não aconteça uma desgraça. Depois, no fim do dia, depois da louça lavada, é o castigo final: conseguir que o espaço volte a acomodar a peça que, à primeira, à segunda e à última vista, parece não caber. 

Há bocado, quando o meu filho me ligou e perguntou o que temos feito, lá lhe contei que continuo (continuamos) nesta faena, que parece que não acaba, que aparecem peças em quantidade infinita. Ele passa-se: diz que nada daquilo serve para o que quer que seja, que só serve para encher, que não percebe, que nada daquilo tem qualquer valor. Pergunto-lhe se acha que deite fora serviços da vista alegre, travessas e terrinas de valor, garrafas de cristal, coisas assim. Diz: cristal é aquela coisa que é feita de chumbo. Digo que pois é mas que deve estar inertizado, que não deve ter problema, são peças atlantis, coisas de valor, não vou deitar fora. Diz que não se lembra de eu servir vinho ou água naquelas garrafas de cristal. Pois não, tem razão, mas é que acho que não se justifica, sei lá, tenho medo de partir. Digo: quando eu e o teu pai formos desta para melhor, tu e a mana fazem um leilão. Ele diz: podes fazer isso em vida. E pronto, ficamos assim. Esta conversa é recorrente. Os meus filhos não ligam muito para este género de coisas. Nem muito nem pouco. E eu, para dizer a verdade, acho que agora também não. Mas as coisas foram-se juntando. Vou fazer o quê com elas?


O meu marido, neste processo, ficou com o pelouro das estantes. Sim, que posso ser maluca mas parva acho que não sou. Não me arriscaria a pô-lo a mexer em louças e vidros. Assim como assim os livros não se partem. Mas, quando vou ao pé dele, está passado. Diz que encontra livros absurdos, que não percebe porque foram comprados. Para alguns encontro explicação. Para outros não. Coisas que vêm de mil anos antes, que se vão adquirindo porque se resolveu fazer uma colecção, sei lá. Diz-me: metade deles iam mas é para o lixo. Aborreço-me. Jamais (dito em francês, se faz favor). 

Mas a verdade, verdadinha, é que, por dentro, fico cheia de dúvidas. E das existencialistas que são as que custam mais. Dúvida existencialista é como bolha do sapato a roer o pé. Para que ando eu com tanta tralha agarrada a mim? Mas, se não quiser andar, faço o quê? Desfaço-me de peças valiosas? Não sou como a minha avó paterna que vendia por tuta e meia propriedades no Algarve porque os filhos não davam mostras de ligar àquilo, não queriam saber da apanha das alfarrobas ou das amêndoas. Quando davam por ela, já ela tinha despachado tudo. Ou a minha avó materna que tinha um móvel que eu achava o máximo e que, quando um dia disse que gostava de ficar com ele quando ela não o quisesse mais, obtive de resposta: Onde é que isso já vai... Já o vendeu a um antiquário qualquer que por lá passou a saber se ela queria desfazer-se de algumas coisas. Desfez-se do que calhou, sem ligar a nada. Família desapegada a minha. Quando os meus avós morreram, quer os paternos, quer os maternos, nenhum dos meus primos quis o que quer que fosse. Eu sim. Coisas simbólicas. A enxada do meu avô, o cadeirão onde ele via televisão, os copinhos de vidro coloridos da minha avó. Tive pena que já não houvesse a grande avenca que estava no parapeito da sala, numa janela com as portadas meio fechadas porque 'a avenca gosta mais do escuro e do fresco'. Dou valor a coisas que têm vida agarrada.


No fundo, no fundo, prefiro a simplicidade, os ambientes arejados. Mas o que faço a tudo o que a vida me foi pondo no regaço?

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Bem, isto vai longo demais, tenho que parar. Começo a escrever e distraio-me. Sorry.

As fotografias são da autoria de Terry O’Neill e achei por bem ir buscar Liszt, La leggerezza, pela mão de Martha Argerich 

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E, como agora ando numa de coisa divertida e sorridente como forma de vos dizer 'até já', aqui vos deixo com mais um destes vídeos deliciosos e ternurentos. Have a big smile.


E queiram descer caso queiram aprender a comer melancia em sociedade

E um dia feliz. Saúde e alegria.

quinta-feira, outubro 24, 2019

O meu avô. A vida simples.
[E Li Ziqi que mostra como se comem as castanhas chinesas, como se fazem candeeiros e cestos, etc.]





O meu avô, que viveu uma vida longa, teve uma infância difícil. Contudo, isto sou eu a dizer porque a ele nunca ouvi um queixume nem o meu pai ou a minha avó alguma vez o referiram. Já o contei. De família abastada, o meu bisavô cedo se perdeu em mulheres e jogo, perdendo casas, terras, animais e, quando nada mais restava que a casa onde vivia com a mulher e três filhos pequenos, creio que para escapar a dívidas e vexames, fugiu para longe e, esqueci-me e ainda não me lembrei de perguntar á minha mãe, foi para a Argentina ou para a Venezuela. Não faço ideia o que aconteceu a seguir. Só sei que, ainda adolescente, o meu avô se fez à estrada e começou a trabalhar onde calhava. Presumo que se deslocasse a pé. Ou, então, de bicicleta. Andou de bicicleta até aos oitenta e muitos anos. O meu pai e o meu tio tinham medo, diziam que ele já não ouvia bem, que já não tinha idade para andar de bicicleta. Ele fingia que não ouvia, e continuava a fazer o que queria. Lembro-me dele com a cana de pesca em diagonal nas costas e a cesta para o peixe presa atrás.


Trabalhou em França e eu gostava imenso de o ouvir a falar em francês. Depois, não sei como, foi parar onde se fixou. Ali trabalhou até se reformar, vivendo perto. A casa tinha um terreno ao lado, onde tinha árvores de fruto e uma horta. Depois o terreno subia em socalcos onde ele, em pequenos talhões, plantava alhos, cebolas, favas, batatas. O terreno ia até lá muito acima. Acedia-se aos níveis superiores por caminhos, degraus, caminhos, degraus. Cá em baixo, tinha ainda uma capoeira grande; mas isso era pelouro da minha avó.

Lembro-me do meu avô sempre ocupado. Sempre que possível, ia à pesca e vinha carregado de peixes que eu pedia sempre para arranjar, as mãos mergulhadas nas vísceras, os dedos nas guelras puxando as tripas que vinham agarradas, ensanguentadas. E a minha avó sempre com medo que tivesse ficado um anzol na goela e eu ficasse presa. 


Ou, então, tratava da horta ou apanhava fruta. E a minha avó sempre a zangar-se por ele não limpar bem os pés no tapete que havia à porta da cozinha e levar terra agarrada aos sapatos. E ele a fingir que não ouvia. Mas nas mãos dele tudo passava por cuidados que me maravilhavam. Ele apanhava as cebolas e os alhos com a rama e entrançava-as, fazendo réstias que pendurava naquilo a que chamávamos 'a casinha'. Também o tomate. Havia tomate maduro todo o ano pois não se estragavam. A casinha tinha pouca luz. Talvez fosse por isso. Não sei. Quando alguma galinha ficava choca, era também nessa casinha, não tão pequena quanto isso, que se deitava a galinha, numa cama que lhe faziam, onde estavam os ovos. Por isso, era aí que nasciam os pintainhos. 

No quintal, havia ainda a casinha das ferramentas e a bancada onde estava um torno. Contudo, penso que o que ele aí fazia tinha sempre a ver ou com fazer um portão de madeira, ou uma escada para ir à fruta, ou um banco de madeira para a capoeira. Coisas assim, simples.


E tinha uma arte. E essa arte fascinava-me. Dos seus tempos de criança tinha-lhe ficado a lembrança da cestaria. Devia evocar a lembrança das pessoas da terra e, aos poucos, foi tentando reproduzir os movimentos e cada vez fazia melhor. Creio que ele falava em palma. Creio. Eram folhas estreitas e finas que ele abria ou dobrava. Tenho ideia que umas vezes fazia com as folhas secas e outras com elas ainda frescas. Fazia cestos para guardar os ovos, cestos para a fruta. Não eram muito perfeitas e, portanto, não se usavam como objecto decorativo. Mas eu gostava tanto. Gostava em especial quando ele os fazia com asas de lado ou uma única, ao alto, grande, a meio. Tenho ideia que uma vez pensei que queria ficar com uma recordação e quis uma dessas cestinhas. Mas com as mudanças de casa, com o tempo a passar, às tantas, perdi o rasto a uma que tinha. Não sei como foi possível. Ficou apenas a terna recordação.


Eu olhava para aquele avô com um grande fascínio. Como viveu até tarde, lembro-me especialmente dele quando reformado. Depois de almoço, sentava-se no cadeirão de madeira que agora tenho lá em casa, in heaven, ligava a televisão ou o rádio, pegava num jornal ou num livro, lia, e, por vezes, dormitava. Tirando isso, andava sempre ocupado. Nunca se zangava, nunca protestava. Por ele estava sempre tudo bem. A minha avó queixava-se do reumático ou das artroses, queixava-se dos filhos, queixava-se da outra nora que a afastava do filho, queixava-se de uma ou outra vizinha, queixava-se de ele trazer muito peixe e de ela já não ter paciência para o arranjar, queixava-se de ele ser pouco cuidadoso com o quintal, com o jardim e com as flores. Ele fazia de conta que não ouvia e, à socapa, sorria para mim. 


Sempre tive uma grande cumplicidade com ele. Quando deixei um namorado, ela preocupou-se e, quando apareci logo com outro, preocupou-se ainda mais. E quando aos vinte lhe disse que ia casar ainda mais preocupada ela ficou. Ele não. Ele não dizia nada, apenas sorria, deixava-a fazer os dramas. Não era bem dramas, era mais como se fosse uma agonia que ela tentasse disfarçar sem o conseguir. Nesse dia em que, em casa dos meus pais, eu lhes disse que dentro de um mês ia estar casada e que ela ficou arrasada ele ficou como se nada se passasse. Apenas veio ao pé de nós, de mim e do meu namorado, e disse: ela casou-se aos dezoito e ao fim de pouco tempo, já o teu pai tinha nascido e, pouco depois, o teu tio. Eu tinha vinte e cinco mas ela tinha dezoito. Por isso, aos vinte parece-me uma boa idade. 

Isto do lado desse meu avô.
Esqueci-me de referir um aspecto que talvez explique muitas coisas. Ele tinha umas feições levemente orientais que o filho mais novo herdou e de que uma das minhas primas ainda é portadora. Penso que talvez por isso tivesse aquela paciência de chinês.
Do lado da minha avó do lado da minha mãe era também sempre uma actividade mas aí uma coisa mais restrita: era renda. Fazia rendas lindas. Colchas, toalhas de mesa, rendas para lençóis, entremeios de mesa. Nunca estava sem nada que fazer e era altamente produtiva. Tenho várias coisas feitas por ela. 'Tirava' por amostras, 'tirava' por revistas, 'tirava' por onde calhasse. Eu adorava ver a destreza daquelas mãos.


Talvez por isso, quer a minha mãe, quer o meu pai sempre foram muito activos, sempre ocupados, muito habilidosos. Com o que calhasse. Contudo, lembro-me especialmente dessa actividade e criatividade depois de reformados pois antes a vida profissional ocupava-os bastante. 

E, talvez também por isso, eu seja como sou, incapaz de estar sem nada que fazer. Contudo, vejo-me limitada. Limitada, desde logo, em tempo. E, talvez tão importante como a falta de tempo, é o sentir-me limitada pelo preconceito de recear não saber fazer. O receio contraria a confiança e para se fazer o que se quer é preciso ser-se afoito. E para se ser afoito é precisa ignorância. Ora, se a gente se põe a pensar muito, estraga a ignorância, perde a afoiteza e lá se vão os sonhos.

Mas, senhores, que vontade sempre tenho de fazer coisas. Pintar, fazer tapetes, fotografar (como estas fotografias que fiz no outro dia in heaven), cozinhar, varrer, escrever. E outras coisas. Tantas outras coisas.


. . .   &   . . .

Já aqui mostrei muitas vezes aqueles vídeos que, para mim, são uma fonte de tranquilidade. Os movimentos serenos da jovem Li Ziqi, os seus passeios pelos bosques, a forma harmoniosa como se move, os gestos ancestrais no manuseio de frutos, de flores, o fogo, os preparados que faz, a comida que confecciona, as peças que talha. Tudo me faz ficar presa a olhar. Mesmo que não perceba o que faz, mesmo que não saiba que produtos usa. Mesmo assim eu fico a olhar. Penso que era uma vida assim que eu gostava de ter. Uma vida simples, sem tempo, sem pressa, sem ruído, embalada pelo canto dos pássaros. 

Fazer coisas bonitas para a casa.

(E foi por vê-la a fazer cestas que me lembrei tanto do meu avô)



Os frutos secos do Outono



Mas quem é Li Ziqui que tem milhões de seguidores?


Desejo-vos uma quinta-feira tranquila e boa

quarta-feira, abril 04, 2018

Vintage violets




Há coisas que se fixam na nossa memória como se tivessem sido tocadas pela graça da eternidade. No largo espaço do tempo -- onde se albergam várias geografias, muitas pessoas ao longo das suas múltiplas idades e memórias fragmentadas de acontecimentos ocasonais -- essas coisas permanecem incólumes, como se o tempo se tivesse detido para as conservar, frescas e belas, dentro de nós.


Essas coisas (ou pessoas) especiais preservam-se no ambiente em que um dia tocaram o nosso coração. Pode ser, por exemplo, um sorriso avistado numa varanda suspensa, entre flores e sobressaltos. Pode ser o canto do mar saltitando nas rochas, rompendo por entre uma gruta numa longínqua tarde de verão ou o nosso nome descoberto entre ruínas, tempos depois de lá termos estado com alguém que escondia o seu amor.

Ou uma luxuriante avenca no fundo parapeito interior de uma larga janela ocultada por espessa cortina. De um verde secreto e sereno, a terra sempre húmida, o vaso dentro de um prato alto sempre molhado. Na sala dos meus avós. O cadeirão onde o meu avô se sentava, ali sob esse largo parapeito. A minha avó com uma tesourinha, cortando as folhinhas secas, passando a mão pela frescura viçosa das hastes repletas de folhinhas pequeninas e perfeitas como um denso bordado.

Depois disso já houve outras avencas. Mas nenhuma bela e farta como a daquela janela por onde a luz não era autorizada a entrar. Sempre que me lembro de avencas, é daquele vaso ali que me lembro Eternamente ali. 

Como o perfume fresco, subtil, delicado, que ofereci à minha mãe. A essência da violeta. Um frasquinho pequenino, muito bonito. Como o vasinho de violetas que tive na minha primeira casa, aquele ninho de amor no alto de uma torre de onde se via o mundo a toda a volta. 

E agora -- contei-o aqui -- recebi um inesperado vasinho de violetas pelo Natal. Estamos em Abril e estão ainda vivas as florzinhas e aveludadas as macias folhas.

Penso no largo parapeito da minha avó. Não tenho nenhum parapeito assim nem as violetas são parecidas com a grandiosa avenca do vaso da minha avó. 

Está na bancada de pedra da minha cozinha, junto ao tabuleiro da fruta. As cores luminosas das laranjas, das maçãs, das bananas, a luz coada passando pela cortina de renda, e o vasinho de violetas. Olho e penso que gostaria de guardar na minha memória o sentimento de harmonia que dali me vem. Mesmo quando as laranjas doces e sumarentas tiverem sido comidas e as florzinhas definhado, mesmo então eu gostava de ver ali as cores e a suavidade destes momentos.

Em vão tenho procurado um perfume tão suave e intangível como o daquele que, quando era ainda menina, ofereci à minha mãe. Mas todos os que encontro não são tão eternos e elegantes como aquele. Ontem, ao passar os olhos pelo Bois de Jasmin dei com um texto sobre violetas, Vintage Violets. Encantei-me a lê-lo.
Swan-down puffs, lace camisoles, ivory fans, tulle skirts, satin shoes… If these words evoke an appealing vision for you, then you’re the right candidate for a Victorian violet perfume. While the 19th century under the reign of Queen Victoria is often described as conventional and stuffy, the favourite aromas are anything but. 
Despite its reputation for being dainty and demure, violet has a complex scent with a fascinating history.
The Victorian era was a period of great change in society, and the simple example of a violet cologne is a good illustration of the dynamics of the time. 
Violet waters became popular long before Victoria was crowned, highly sought after for their sweet scent with nuances of raspberry and rose. At first, fragrances based on this flower were derived from Parma violets via the painstaking process of collecting tiny blossoms and extracting their essence. It made violet a costly and luxurious perfume available only to a select few.
Violets and other floral notes were usually blended with musk and amber to give them depth and character. 
Guides to contemporary etiquette urged women to select light and delicate perfumes, but fragrances rich with sandalwood, balsams and ambergris were much loved. 
Queen Victoria herself favoured Ess Bouquet, a bold choice that during her 1855 trip to France confounded Parisian mavens. A perfume “with a detectable hint of musk” on a royal persona seemed surprising, risqué and yet intriguing. (...) 
It might make you understand why Napoleon Bonaparte, a character far from demure and retiring, selected the violet as his signature flower.
Victoria Frolova refere os perfumes de violeta que mais aprecia. Infelizmente, que eu saiba, nenhum se vende em Portugal.

Mas não faz mal. Vive ainda dentro de mim a eterna fragância da mais perfeita essência, aquela que guardo desde a minha meninice e que agora sinto colorida pela doçura da minha memória.


The Passion of the Saintpaulias, Lou Bermingham

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PS: Desaconselho a descida até ao post abaixo. O cheiro a galinha (e ainda por cima a galinha pouco séria e pouco inteligente) estragaria a qualidade olfactiva do ambiente que se vive no post que acabaram de ler.

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