Isto não está fácil, confesso. Não me apetece escrever. No domingo à noite deitei-me tarde, atordoada. Os resultados das eleições viraram-me do avesso. Eram seis da manhã e ainda não dormia. Já o dia clareava e eu sem sono. Depois acordei às oito e picos e parecia-me que já não tinha sono. Forcei-me a dormir mais um pouco. Mas pouco mais. Íamos ao ginásio e depois ainda tínhamos várias coisas a fazer. Ou seja, mal dormi.
Por isso, de tarde, lá para as cinco, deitei-me ao sol, na espreguiçadeira, e adormeci. Não muito pois as nuvens passavam a vida a cobrir o sol e ficava frio.
Há pouco, estávamos a ouvir o Paixão Martins, adormeci de novo. Micro-adormecimentos mas o suficiente para não ter conseguido acompanhar com seguimento.
Ainda não recuperei do entorpecimento, do estupor catatónico em que, interiorente, fiquei.
Do que me chega, há pessoas bem na vida, instaladas, umas que ainda guardam ressentimentos do 25 de Abril e que votam no Chega pois acham que o Ventura vai ajustar contas com esse passado. Outras, quadros em boas empresas, querem simplesmente rebentar com 'isto tudo'. Se calhar, pessoas mal sucedidas na sua vida pessoal (mas isto já sou eu a dizer). Quando pergunto a quem conhece essas pessoas o que é que, na verdade, elas acham que o Ventura pode fazer por elas, a resposta é que isso não é questão que se ponha. Não pensam tão longe, limitam-se a querer rebentar com as coisas. O que vem a seguir é tema que não lhes ocupa o pensamento. Outro caso, nos antípodas, um conhecido que não estudou muito, que começou a trabalhar, trabalho pouco qualificado, faz uns 'ganchos' ao fim de semana para compor o ordenado. Vota no Chega porque diz que os 'outros' não fazem nada por ele, acredita que o Ventura é capaz de fazer. Pergunto: mas fazer o quê, em concreto? A resposta é a mesma: o pensamento dele não vai até esse ponto.
No outro dia, vi na televisão uma dessas que vive certamente numa realidade pobre, suburbana, mas que deve sentir que vive numa realidade alternativa ao viver permanentemente nas redes sociais. Percebe-se que, certamente, tem como ídolos algumas conhecidas influencers. Usava várias vezes a expressão: 'quero tudo a que tenho direito'. Ao ver as influencers andarem pelos hotéis, pelos ginásios, institutos de beleza e restaurantes, sonha, certamente, atingir esse patamar. Pela conversa, acredito que vote Chega. Deve ser daquelas que acha que o Ventura diz tudo o que tem a dizer, não tem medo de nada, tentam calá-lo mas ele não se fica. Ou seja, veem-no como um líder que merece ser seguido. Claro que se lhe perguntarem o que é que o Ventura pode fazer por ela, não saberá dizer. Isso já é uma segunda derivada e o raciocínio não vai tão longe. Se lhe perguntarem também em que é que os 'poderosos e corruptos' de que o Ventura tanto fala a prejudicam, claro que também não saberá o que dizer.
O Ventura navega nestas águas turvas da ignorância, do ressabiamento, da ilusão. Em bom rigor, de concreto ele não promete nada. Aliás, de concreto, ele não diz nada. Limita-se a apresentar-se como um líder, o que está aqui para salvar os descontentes, o enviado de Deus, o que vai vingar os que se sentem prejudicados. As pessoas acreditam nele sem precisarem de provas, tal como acreditam em Deus sem precisarem de provas ou tal como, antes, acreditavam no PCP sem cuidarem de saber em que país é que aquele modelo comunista funcionava. As pessoas que votam no Chega, em larga maioria, fazem-no por uma questão de crendice, de fezada.
Numa reportagem de há pouco tempo, um pastor evangélico, no Seixal, um que aluga quartos num armazém sem condições, dizia que recomendava o voto no Chega. Os iguais reconhecem-se.
Porque é que nestes subúrbios há tantas igrejas maná, evangélicas, do sétimo dia e coisas assim? O que é que aqueles pastores fazem pelas pessoas? Nada. Ficam-lhes com o dinheiro e prometem coisas, umas divinas, outras estratosféricas. E as pessoas acreditam, gostam.
Não sei como se combate isto. As pessoas com ética, com sentido de responsabilidade, honestas, não recorrem à mentira, às promessas vãs, não se prestam ao papel de fazerem vídeos estúpidos, manipulados ou falsos, apelando à vingança ou difundindo mensagens xenófobas ou racistas, nem usam a ignorância das pessoas para explorarem as suas emoções, os seus medos, os seus anseios. Ou seja, as pessoas decentes não são capazes de usar as mesmas 'armas' que os populistas. No fundo, o terreno está livre para que os do Chega, os das igrejas alternativas ou outros movimentos do género, possam ocupá-lo e aproveitar a crendice, a ingenuidade ou os ressabiamentos de quem ali se sente entre iguais.
Como se explica a uns e a outros, ao milhão e trezentos mil que votaram no Chega, que o que está a ser feito no País é isto e aquilo, que há contas e orçamentos, que, no caso dos que ganham menos, não pagam impostos e podem usufruir de tudo (hospitais, escolas, policiamento nas ruas, etc.) sem pagarem nada. ou que há um défice demográfico no País e os imigrantes são necessários, úteis e deveriam ser recebidos de braços abertos?
Como falar com pessoas que não querem ouvir coisas 'complicadas', cujo tempo de atenção se esgota com uma frase de cinco palavras, que não querem saber da ética dos líderes que adoram? Que apenas querem imaginar um eldorado em que elas serão tratadas como princesas com tudo a que têm direito e eles serão machos, viris, ricos, com grandes carrões?
Aqui, em França, na Alemanha, em Itália, nos Estados Unidos... agora ou há cem anos... como se combate o populismo?
Acresce a isso, a circunstância presente, ubíqua, desregulada: como se combate o efeito nefasto das redes sociais?
Não sei.
Ou será que nem vale a pena matar a cabeça a tentar matar a charada? Será que é esquecer esta franja que sempre votará irracionalmente? Ou não? Será que deve é haver um pacto entre a comunicação social para não dar cobertura aos populistas? Ou quem está no Governo deve, simplesmente, focar-se em resolver problemas concretos e divulgar eficazmente a sua resolução? Ou não é bem isso e o melhor mesmo é ser-se capaz de criar uma utopia -- mas uma utopia realizável -- e deixar que as pessoas que precisam de acreditar em miragens tenham algo com que sonhar... e depois concretizar esses sonhos?
Em paralelo, enquanto se pega pelos cornos (ou de cernelha) o populismo, tentando impedir que cheguem mesmo ao topo, há que construir uma alternativa. Vi na TVI uma caracterização do eleitorado do Livre e da Iniciativa Liberal: um alinhamento entre escalões etários (gente mais jovem do que nos outros partidos) e formação académica (largamente com formação superior). Reforçou a minha convicção de que o futuro passa por aqui. Tivesse eu menos uns quantos anos e era bem capaz de fazer de tudo para explorar as convergências entre eles e tentar arranjar uma plataforma que fosse o motor de um movimento progressista, dinâmico, arejado, que atraísse mais gente, que gerasse iniciativas agregadoras, que avançasse com propostas de melhoria nos diversos sectores da sociedade, que mobilizasse mais gente para participar na construção de novas propostas de acção.
Enfim. Ando para aqui às voltas, preocupada com o mundo cada vez mais estúpido, disfuncional e distópico em que vivemos.
Vou ver se durmo melhor esta noite. E vou ver se, durante o dia, me entretenho mais a olhar e a fotografar as florzinhas que estão por todo o lado. Estão viçosas, lindas, os campos estão cobertos, felizes da vida como se a os temas da política lhes passassem totalmente ao lado.