Mostrar mensagens com a etiqueta Ginjal. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ginjal. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, dezembro 27, 2019

O meu último dia de Natal do ano da graça de 2019 -- também com reportagem fotográfica




Esta noite estou verdadeiramente na ressaca. Aliás, a ressaca começou ao início da noite, na viagem de regresso de casa dos meus pais. Mal o carro arrancou, qual bebé, adormeci profundamente. Mas não fui só eu: os três que vinham no banco de trás do carro caíram igualmente no sono. Cheguei a casa quase inerte e assim me tenho mantido. 

De manhã, só os dois, tínhamos ido passear para a beira do rio, lugar de todos os retemperos.


Fotografei e foi o deslumbramento de sempre. Olhar a bela cidade através da lente tem outra magia, parece que os movimentos das gaivotas são coreografias, que as cores das casas o cenário, parece que os pormenores se salientam para passarem para primeiro plano, tudo parece muito belo e sereno. Olho tudo como a primeira vez e essa atenção descansa-me a mente e o corpo. Entrego-me, de todo, à boa sensação de ali estar.

Olhei as águas, a paisagem, aspirei o ar fresco. Tão bom. Fico sempre a sentir-me renascida.

Já aqui o disse algumas vezes: se calhar, sem o saber, isto tem em mim o efeito que a meditação tem noutras pessoas.


O ria ia cheio de frutos e daquela folhagem que as fortes chuvadas arrancam das margens e que as correntes puxam a caminho do mar.

O meu marido gozou logo: será que o Marcelo, qual sereia, vai atirar-se ao rio para o limpar? É que, na reportagem da véspera, ele diz que viu o Marcelo a apanhar daquilo. E eu até o gravei a fazer essa pergunta. Mas agora, ao ver se dava para colocar aqui, reparo que, como sempre, não mantive a máquina estabilizada e almareia só de olhar.


Voltámos mesmo a tempo de preparar o almoço, misto de restos e misto de coisa nova. É que logo, logo, chegou parte da turma que iria connosco, juntando-se aos restantes, em casa dos meus pais. Almoçámos e zarpámos. 

Como sempre, apesar de mais do que avisada para evitar os habituais abusos, a minha mãe voltou a preparar um banquete. Mesa farta. Tudo feito por ela. Uma coisa surpreendente. Não apenas o lanche foi dos bons como as meninas grandes ainda vieram carregadas de petiscos. Não sei que energia e boa cabeça é aquela: apesar dos oitenta e muitos mantém-se impecável e acho-a mais jovem de cabeça do que quando eu era miúda e vivia lá em casa. Os presentes que comprou para toda a gente, quase todas as compras para a casa, a orientação e acompanhamento de todas as rotinas relacionadas com o meu pai e, sempre que as tropas se reúnem lá em casa, lanche para todos. Uma força, uma agilidade, uma criatividade fantásticas. Quem me dera que seja genético e que tenha passado para mim e para os meus filhos e netos.


Desta vez não houve futebolada no jardim. Nota-se que os rapazes estão cansados. Em vez da bola, das lutas, das corridas e da confusão barulhenta, puseram-se a ver televisão. A maior agitação deu-se quando eles quiseram ver futebol e ela lhes rapinou o comando e quis pôr nos canais de desenhos animados ou coisa do género.

Os mais crescidos também já davam mostras de algum cansaço e talvez a mais fresca fosse mesmo a minha mãe.

O meu pai, apesar de não ver e de mal ouvir, parece que pressentia que havia movimentação e estava um bocado agitado. Por isso, felizmente os miúdos não estavam naqueles dias de grande fuzuê senão é que ele ficava mesmo inquieto.

De tarde os rapazes, os grandes e os pequenos, tinham estado a apanhar laranjas e, portanto, também trouxémos umas sacadas.  Umas laranjas sumarentas e doces de dar gosto.

De presente da minha mãe recebi o Nº5, eau de parfum que sempre me oferece, uma écharpe macia e quentinha numas belas cores quentes que coloquei logo e que ainda não tirei. Desdobra-se e fica uma capa de lã aconchegante.

E recebi um livro surpreendente. É um livro da autoria do seu médico de sempre, um médico que ainda tem mais idade que ela mas que é outro jovem de cabeça. Tenho estado aqui a folheá-lo e é bastante interessante, conjugando medicina e história. E, graça das graças, tem uma dedicatória que me é dirigida. 

Conheço estas figurinhas nem sei há quanto tempo.
Pelo Natal saem à cena.
Agora estão no móvel pequeno onde estão as fotografias dos cinco bisnetos, quando recém-nascidos:
é o presépio da casa dos meus pais

Estivemos também com o meu tio. Tenho-o achado mais caído. A minha tia tem estado adoentada e o alterarem a sua rotina de saírem todos os dias, está a deprimi-la e, a ele, está a causar abalo pois não apenas os seus hábitos se têm alterado como ver a minha tia assim o deixa também bastante triste. E a mim custa-me muito vê-lo assim. Para mim ele será sempre aquele meu tio amigo e cúmplice que, tal como o meu outro tio, ia comigo dar passeios de mota à socapa dos meus pais. Mas o tempo passa. Hoje, daqueles três homens muito jovens, o meu pai e os meus dois tios, desportistas, todos cheios de vida, um está acamado, outro já morreu e outro está a envelhecer a olhos vistos. Enfim. Vi que ele ficou contente a conversar com os sobrinhos-netos e, em especial, com o meu filho que lhe falou da empresa onde ele trabalhou a vida inteira.

E, com esta visita e com este dia dei por encerrada a época natalícia. E, como é bom de ver, já se começou a falar do que será o almoço do primeiro dia do Ano Novo.

Tempus fugit. Vita brevis.

-----------------------------------------------------------------------------

E, nem sei bem se a propósito de alguma coisa, permitam que coloque aqui dois vídeos com bailados do Nederlands Dans Theater, um lugar muito especial. Talvez sejam dois presentes para quem me faz companhia aí desse lado. Já vêm fora de tempo mas pode ser que aquilo de Natal ser quando a gente quiser seja verdade.

Com músicas de Heinrich Ignaz Franz Biber, John Cage, Philip Glass, Johann Sebastian Bach e coreografia de Jiří Kylián: uma beleza do outro mundo



Sobre música de Igor Stravinsky e coreografia de Jiří Kylián: belíssimo


------------------------------------------------------------

Uma boa sexta-feira.

terça-feira, novembro 26, 2019

O que é boa arte?




Fiz uma pergunta no título mas não tenho resposta para ela. Gosta-se porque se gosta e não me parece que seja fácil explicar porquê. Na arte, como na literatura ou no amor deve seguir-se aquele princípio que o Mr. X nos ensinou: Julio Ramón 'Ribeyro propôs ter em mente que um bom trabalho não tem explicação, um mau trabalho não tem desculpa e um trabalho medíocre não tem qualquer interesse.'. Tal e qual. 


Se desde pequena convivi com livros, já o mesmo não posso dizer da arte. Até certa altura tenho ideia de apenas ter conhecimento de pintura 'clássica'. Havia em casa dos meus pais alguns quadros mas daquele género que considero trivial. Nem sei se era bonito ou bem feitinho, se calhar até era. Lembro-me apenas de que nada me diziam. Teria eu uns onze ou doze anos, a sala da televisão foi redecorada e lembro-me de ter ido com a minha mãe escolher um quadro. Provavelmente o meu pai também terá ido até porque o quadro era grande e só pode ter ido de carro para casa. Era um óleo que, do que me lembro, já tendia para o impressionista, senão para o quase abstracto. Era uma tela muito comprida e tinha um barco e todo ele continha cores solares, luminosas. Pela primeira vez eu via uma pintura de que gostava. Uma vez, foi parar lá a casa um livro de pintura e eu descobri um mundo novo. Apaixonei-me de tal forma por um do Paul Klee que convenci a minha mãe a deixar-me arrancar aquela folha e emoldurá-la. O que eu gostava daquela cara colorida, abstracta, circunspecta, o que eu gostava. Lembro-me de as minhas avós terem ficado admiradas com aquele quadrinho no fundo do corredor, não percebendo a graça que eu achava a tal desconformidade. 


Nas casas dos meus amigos ou dos amigos dos meus pais eu não via nada que me despertasse atenção. E quando íamos visitar museus, só me lembro de ver arte sacra, arte muito realista, muito naturalista, tudo coisas que nada me diziam. Uma reprodução da realidade, tal e qual o pintor a viu, a mim não me desperta interesse. Não quero saber tal e qual o que ele viu. Porque haveria de me interessar isso? Quanto muito interessa-me a impressão que a coisa lhe causou ou o ângulo diferente e imprevisto que torna a visão especial. Agora anjinhos suspensos em nuvens, cristos escanzelados, camponeses muito factuais, naturezas mortas completamente maçadoras, nada disso me parecia estimulante.

Por isso, quando me vi por minha conta, aos dezassete anos, sozinha em Lisboa, um dos lugares que, desde logo, mais me atraíu foi a Gulbenkian e não tanto o museu que já conhecia razoavelmente mas com as exposições temporárias, artistas modernos que traziam o ilógico, o inexplicável, a graça inocente, as cores e os traços quase infantis, as cores abertas, desprendidas do seu contexto.  A partir daí passei a procurar galerias, livros, exposições e quanto maior a abstracção, quanto mais surpreendente e provocador, mais eu queria ver.

Em algumas peças não encontrava 'arte' e não gostava mas, ao longo do tempo, o meu conceito de arte foi adquirindo matizes, foi sofrendo transmutações. Ainda não gosto de muita coisa, coisas que me parecem de mau gosto ou chachada pura, mas há outras que agora me agradam e que antes achava autênticos disparates.


De Lisboa passei para Madrid e para a grande curiosidade de tudo o que era novo, incluindo os pintores de rua. E também para Paris. Não o Louvre que sempre achei fora da minha escala, grande demais, gente a mais, demasiadas obras demasiado clássicas. Nem tanto o Pompidou, muito experimental, muito neutro. Em Paris, sim, o Jeu de Paume e, depois, o maravilhoso museu do Quai d'Orsay, lugar mágico, lugar de eterno retorno, lugar onde, por muitas vezes que o visite, sempre me emocionará, por vezes quase até às lágrimas. 

E daí para todos os outros. E a inexplicável sedução que Rothko exerce em mim? Ou Chagall? 

E, uma vez a mente bem aberta a todas as diferenças a todas as surpresas, o deslumbramento com as grandes telas de Caravaggio. Deus meu. Que carnalidade, que vida ali condensada, que materialidade. Que tormento não poder estar em silêncio, sozinha, diante daquelas telas, horas, horas a fio.

Ou a luz de Vermeer. Olhar e tentar perceber como é possível uma coisa assim, tentar perceber se foi um homem normal que fez aquilo. Ah, os grandes mistérios.


Um dia, há muitos anos, uma prima minha dada às artes perguntou se eu já tinha ido ver a exposição da Paula Rêgo. Fui taxativa: não, nem iria porque me parecia tudo muito disforme, forçadamente repelente. Ela sorriu, disse: 'Olha que não, olha que não. Vai ver e vai com a mente aberta. Sei que vais gostar'. Hesitei. Ao fim de algum tempo, fui. E rendi-me. De repente nem percebia como tinha sido possível não gostar. De facto, gostava, gostava muito. Olhava para aquela outra que não gostava sem a identificar comigo, como se tivesse sido outra pessoa, uma estranha, uma rude criatura. E Graça Morais. A Graça Morais no casa-musei da Vieira da Silva. Que maravilha. E Pomar.  E tantos outros. 

Porque gosto de uns e não gosto de outros? Se calhar pela mesma razão que me leva a gostar de uns escritores e não de outros, a gostar de umas pessoas e não de outras. 


E ocorreu-me pensar nisto pois, há bocado, ao abrir o YouTube, o meu amigo algoritmo tinha um vídeo que, segundo ele, era recomendado para mim. Marc Jacobs: between collections. Fui ver. E gostei. Caraças, gostei mesmo. Estupor do algoritmo que sabe levar-me na boazinha, que me conhece mesmo, que adivinha os meus gostos. A casa e as obras de arte de Marc Jacobs. Nem comento a graça que é ouvir conversar uma bicha dada às artes. E que não me venham com tretas de preconceitos: não sou homofóbica. Nem pouco mais ou menos. Convivo assiduamente com uma e, lá está, se a minha filha me diz que não percebe como tenho paciência para me dar com a bicha eu nem tento explicar. Sim porque sim. Mas, à parte esse suplemento de graça, as obras que ele ali tem. Que casa bonita a dele. Como eu gostaria de visitá-lo. O que eu gostaria de ser aquela ali, a conversar com ele sobre obras de arte, sobre moda, sobre modelos, sobre fofocas, sobre costura, sobre o seu processo criativo, sobre as cidades onde tem lojas.


E ocorreu-me também o vídeo abaixo (Why is modern art so bad?) que Leitor, a quem agradeço, me enviou e que me levou a dizer-lhe que o que Robert Florczak ali diz são banalidades sobre extremos, sobre caricaturas, obras que não representam o que globalmente se pode designar por arte moderna. E ele já me respondeu dizendo que não tenho razão, que o pintor o professor Robert Florczak é objectivo e que há arte e arte. Seja. Cada um pensa conforme sabe ou pode. Eu gosto de várias obras que Marc Jacobs tem em casa e, se calhar, não gostaria de ter nenhuma das pintadas por Florczak (e digo isto por dizer pois, na verdade, ainda não pesquisei para ver como é a arte que ele produz).

Mas fazer o quê? São os nossos genes, as nossas circunstâncias, o ar que respiramos, a nossa pele, o nosso olhar, afinidades que jamais saberemos explicar. Gosta-se porque se gosta. E é bom gostar.

Mas, então, cá está o anti-vídeo de Florczak, um genuíno anti-Jacobs.


--------------------------------------------

As fotografias que usei para ilustrar o post foram feitas este domingo no Ginjal e eu olho aquelas paredes como uma galeria de boa arte a céu aberto. Quando falo no Ginjal invariavelmente as pessoas dizem que não se percebe como é que nunca mais aquilo é arranjado, que aquilo é uma decadência de dar dó. E eu penso que tomara que qualquer obra nova ou de reabilitação que ali façam saiba preservar a beleza extrema e fatal daquelas paredes sobre as quais todos os dias alguém escreve ou pinta uma coisa diferente. Mas, lá está, gostos não se discutem.

A primeira fotografia, a dos ramos da árvore, e a última, a da gaivota, levaram um banho de cor -- e ainda bem que vocês não são curiosos e não me perguntam porque as tingi daquela maneira porque não saberia responder. Ou melhor, talvez pudesse tentar mas, tenho a certeza, soar-vos-ia a conversa de maluca.


Desejo-lhe a si, a si em especial, uma boa terça-feira.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Podia ficar-me pelo meu encantamento in heaven ou pela maravilhosa decadência do Ginjal.
Mas prefiro chamar a vossa atenção para aquilo que sabem.





Fim de semana tranquilo. Mas não estive na melhor forma, estive um pouco adoentada. Resfriei-me na sexta-feira e mais do que pensava. 

No sábado estive no campo. De tarde, pensei que estava melhor, pus-me a passear por entre as árvores, andei nas minhas deambulações, nem dei pelo frio. 

Voltaram a aparecer as pegadas de bicho grande, a terra escavada. Eu estava longe mas pareceu-me o meu nome chamado pelo meu marido. Era ele mesmo: tinha visto aquelas marcas, quis alertar-me não fosse haver javalis por ali. Mas não. Provavelmente só por ali andam à noite. Pelo menos, assim o espero.


O que é curioso é que aparentemente andam a lavrar a terra com o focinho ou com as patas exactamente nos mesmos sítios onde andaram antes. A minha mãe no outro dia, quando lhe mostrei fotografias de tantos cogumelos, disse: 'Se calhar, também por lá tens trufas'. Não sei, não faço ideia. Mas, ao ver como a terra está, fico com a ideia de que há animais por ali a quererem encontrar alguma coisa. Será mesmo trufas? Nem sei como descobri-las. Sei que se parecem com torrões de terra pelo que não faço ideia de como procurá-las. E há também muitos cogumelos arrancados, meio comidos.


O campo está verde, lindo. Tudo se cobre de musgos, de líquenes. Não consigo olhar para os campos e ver ali o ocaso de nada. Pelo contrário, o próprio processo de transformação das folhas rubras em nada, misturando-se e preparando-se para a a dissolução final, tudo me parece um fenómeno maravilhoso, de uma beleza difícil de reproduzir ou descrever, como se tudo estivesse a nascer, a acontecer.


As cores e os perfumes e as aragens enchem o espaço bem como o canto dos pássaros que parecem andar mais felizes e livres do que nunca. 

Fotografo, fotografo. Parece que nunca vi tamanha beleza, parece que é um milagre que estou a testemunhar pela primeira e única vez, parece que é uma bênção de que me é dado fazer parte.


O sentimento de pertença que ali sinto envolve-me toda, todas as células do meu corpo. Uma paz, uma felicidade, uma harmonia tão absoluta, uma total fusão com a terra, com o ar que transporta cheiros e cantos, com a magia da luz cuja cor muda os cenários em minha volta. Um estado de encantamento, de puro e agradecido encantamento. Não sei dizer de outra forma.


Convencida de que já estava bem, fui à noite a casa dos meus pais. Por precaução, levei a echarpe em volta do pescoço, a tapar-me a boca. Embora um resfriado não seja contagioso, não quero que haja o risco de lhes passar alguma coisa.

Mas talvez tenha voltado a apanhar frio. Este domingo de manhã estava outra vez um pouco congestionada mas, como não tenho paciência para estar fechada e me apetecia ir a um sítio onde não ia há algum tempo, fomos ao Ginjal.


E, de novo, aquela sensação de alegria pela descoberta. A cada vez que lá volto as paredes estão diferentes. Como um ser vivo que se transmuta, assim aquelas velhas e decadentes paredes: sempre novas, cada vez mais belas. 


Fotografei, fotografei. Como é possível um lugar assim?

Lisboa vista dali é bela, magnífica. Tão bonito tudo. E tão bom andar por ali. A maré muito cheia, as águas muito perto, aquela frescura boa, molhada, aquele cheiro a beira do rio, aquela vastidão, aquela perfeição que as paredes grafitadas, tingidas, devastadas pelo tempo apenas complementam. E o rio, largo, imenso. E os barcos e as gaivotas e as pessoas. Tudo tão bom, tão bonito.


E, de novo, devo ter apanhado algum frio pois voltei a sentir-me pior. Felizmente a mim o chá quente e uma sesta fazem milagres e voltei a sentir-me boa. 

Estive a ler. Cercada de livros, no conforto desta minha sala tão acolhedora, com um chá quente, com uma luz a incidir nas páginas e pouco mais, eu estou nas minhas sete quintas.

O meu marido antecipou-se-me e está ele com o Augustus do Stoner. Não faz mal, leio-o a seguir. Estive com aqueles livros em que os arquitectos falam das suas casas, mostrando como é o lugar onde vivem. Gosto do que dizem os arquitectos (alguns arquitectos). Casas, objectos, memórias, o espaço, a luz, o interior e o exterior, o conforto, a simplicidade, a história das suas vidas, a partilha -- uma maneira interessante de falar das coisas.

E agora que aqui estou, depois de há bocado ter escrito sobre a Joacine e o Livre, estou a ouvir a chuva, a ouvir música, sons bons que se misturam, feliz e tranquila, sentindo o conforto bom da minha casa.

--------------------------------------------------------------------------------------------

Antes de começar a escrever vinha com a ideia de falar um pouco mais sobre como é impossível romper com o sistema (seja lá o que isso, na realidade, significa) estando dentro do sistema como, por vezes, ingenuamente parecem acreditar os que se deixam encantar por falas aparentemente rebeldes como as do Livre (e digo isto simpatizando com o Rui Tavares a quem acho um homem genuinamente bem intencionado).

E tinha a ideia de mostrar um vídeo que me impressiona bastante. E impressiona-me não apenas pelo vídeo em si mas porque fico a pensar que o mundo poderia ser um lugar menos perigoso se mais pessoas, em lugares de decisão e poder, pensassem e agissem como parece que o protagonista deste vídeo, Feike Sijbesma, CEO da DSM, pensa. Mas não sou ingénua. As disparidades são tão abissais, o mal feito ao planeta é tamanho, a estupidez intrínseca dos humanos é tão destruidora que não é a visão solidária e inclusiva de uma pessoa, ou de cem pessoas que sejam, mesmo de mil pessoas, mesmo de cem mil pessoas que vão fazer a diferença.

Ou talvez seja. Talvez.

Talvez se muitas vozes se levantarem, talvez se, em vez de se propagarem mentiras, intrigas, futilidades e disparates nas redes sociais e na comunicação social, se difundirem bons exemplos, gritos de alerta, passos no caminho certo, talvez progressivamente haja uma leve inflexão no sentido da destruição, talvez nos desviemos da rota para o abismo que temos vindo a trilhar. Talvez. 

You know


_______________________________________________________________________

Sergei Polunin está lá em cima no lugar das bandas sonoras mas, obviamente, é mais, muito, muito mais que isso. Não deixem, por favor, de ver como ele voa.

-----------------------------------------------------------------------------

E uma boa semana a todos a começar já por esta segunda-feira.

Rui Tavares está perplexo com a Joacine? Eu não estou.
[Aliás, aproveito para dizer porque não votei no Livre]



Claro que poderia fazer um post a explicar porque não votei em cada um dos partidos que não mereceram o meu voto mas vou centrar-me no Livre, dada a comédia a que assistimos, uma paródia digna de rábula dos saudosos Gato Fedorento. 
Joacine diz que se absteve porque não percebeu como é que o Livre queria que ela votasse (e isto, em si, já é extraordinário pois como é que se explica que ela não tivesse a sua própria ideia sobre o assunto?) e o Livre diz que não percebe aquela inexplicável abstenção, já que o programa do Partido é claro e que, para mais, ela nunca tentou aconselhar-se. Depois foi ela que, baixando ainda mais o nível, veio dizer que foi ela que ganhou o lugar na Assembleia e não o Livre. E agora é o Rui Tavares que vem dizer que percebe que os portugueses estejam perplexos porque ele também está. 
Tudo isto parece uma brincadeira, uma infantilidade, um perfeito nonsense.
Os ideais do Livre não me parecem mal. São boas orientações, bons princípios. Defendem valores que, em abstracto e de forma geral, me parecem globalmente correctos. 

Só que nestas coisas, entre os ideais e o ser capaz de os sustentar e ser capaz de identificar o trilho certo para lá chegar -- e ser capaz de se manter no trilho -- é outra conversa. Como agora toda a gente diz: são outros quinhentos. Em tempos dizia-se de outra maneira: que de boas intenções está o inferno cheio. E admito que sim. 

Estar na Assembleia da República a representar o povo, defender os seus interesses, saber discernir a linha de rumo através de um orçamento, saber avaliar propostas ou saber elaborar outras, perceber a essência dos temas em sede de comissões, saber interpretar os 'jogos' e ter o 'calo' para afirmar a sua posição sem se deixar levar, etc, etc, etc, requer mais do que o enunciado abstracto de boas intenções mesmo que a espuma mediática lhes empreste o aspecto de sabedoria e determinação.

Ser contra o sistema é coisa bonita de se dizer mas quase impossível de concretizar estando dentro do sistema. Pode parecer pessimismo ou cinismo. Mas é o que, na verdade, penso.

O mais que pode acontecer para mudar o sistema (e será sempre um mudar muito relativo: será sempre um percurso lento, errático, de pára-arranca, erros e breves sobressaltos) é haver quem, de forma lúcida e clara, interprete a evidência dos factos de forma a tentar conduzir a consciência colectiva a ir mais para um lado ou para outro. 
Por exemplo: 
  • As crises financeiras -- que deixaram à vista o que os fundos abutres e toda a especulação desregulada, a fuga ao fisco e a lavagem de dinheiro, os offshores e tudo o que rodeia tudo isso, provocaram na economia real: descalabro de muitas empresas, explosão do desemprego, corte de rendimentos e etc, -- fizeram inflectir ligeiramente a opinião das pessoas. 
  • Identicamente, haver quem prove que, para ultrapassar as crises, o melhor é reforçar a liquidez circulante, aumentar a confiança, e animar a economia e não secar tudo isso, é também uma forma de 'abrir' as mentes a um sistema mais desempoeirado. 
  • Ou ir, inteligentemente, tentando provocar consciências através da evidência de que a pobreza ou as desigualdades mesmo que longínquas acabam por vir bater à porta de todos nós.
Se o Rui Tavares é uma pessoa que se percebe ser culta e séria, já muito do que o envolve parece ser puro idealismo, qualquer coisa de adolescência tardia, alguma vacuidade disfarçada de desalinhamento -- e isto à custa de alguma encenação acarinhada pela comunicação social. E, não sei bem porquê, parece que isto continua a ser música para os ouvidos de uma certa intelectualidade que ainda sonha com uns vagos amanhãs que cantam.

No entanto, a verdade é aquela que, ao fim de um mês, já está bem à vista. Tudo espremido é capaz de não ser muito mais que zero.


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

As fotografias foram feitas hoje no Ginjal e estão aqui não para ilustrar o texto mas apenas porque foram feitas num dos lugares mais lindos do mundo

domingo, julho 07, 2019

Do Ginjal pela manhã à praia à noite, passando por mais um encontro familiar e a terminar no Panorâmico de Monsanto com a Madame M



Depois de eu ter estado constipada, foi o meu marido que a apanhou. De manhã ainda foi comigo para matarmos saudades da beira do rio, nesse lugar mágico que é o Ginjal, eu a fotografrar as mil coisas diferentes desde a última vez, a parar, encantada, a cada passo.  Mostro algumas das muitas com que tentei matar saudades. Lugar de mil fascínios, este. E, logo ali, Lisboa a bela, a magnífica.


Mas, a seguir ao almoço, o meu marido, mais 'atacado', decidiu ficar em casa. Está com tosse, sente-se bastante apanhado, sente-se cansado. Por isso, fui só e o resto do pessoal para casa dos meus pais.

Festejámos, os meninos brincaram, riram, pregaram partidas e foi aquele chinfrim do costume. Quando dei por mim, tinha as calças todas salpicadas de tinta azul. A menininha também mas, como a tshirt tem florzinhas e pintinhas, disfarça. As minhas calças é que estão uma desgraça. Tenho que ver se há maneira de salvá-las. Ela diz que o irmão é que estava com uma caneta azul. Não sei como foi que aconteceu. Mas, isso é peanuts face à alegria incomparável de estarmos juntos, felizes. O bebé perguntou pelo avô, foi à procura dele. Está habituado a ver-nos sempre juntos.


De lá, uma parte foi para um jantar de amigos e outra parte veio comigo cá para casa e, de cá, resolvemos ir jantar à praia. E, no fim, fomos passear à beira mar e os meninos quiseram ir brincar para a areia, junto ao mar banhado pelo luar. Estavam felizes, aquilo para eles eram uma aventura. Ver os barquinhos dos pescadores no areal solitário, correrem ali numa longa extensão deserta, a luz da noite e a tranquilidade do mar envolto em negrime -- tudo novidade para eles. O meu marido lamuriou-se em voz baixa, só para mim: 'Como estou constipado desta maneira, não arranjaram melhor programa do que quererem vir para a praia às tantas da noite'. Disse-lhe para puxar a gola do blusão mais para cima.

Chegámos a casa lá para as onze e meia. Agora é quase uma. E, claro, estou com sono. É o qe dá ter os dias como tenho e só pegar no computador a estas horas.


A minha mãe também deve ter ficado ko. Os meninos estão cada vez maiores, mais barulhentos, brincam muito. Fizeram concurso de salto em comprimento no quintal, apanharam limões e depois guerra de limões, treparam muros e foram para o telhado da casinha das ferramentas. O bebé imita os outros e por lá anda a fazer das dele. Mas quando lhe dizem que não pode subir as escadas sozinho e que tem que esperar que os outros venham, ele percebe, senta-se no degrau de baixo e fica pacientemente à espera. E ela, a mais linda, faz a roda na relva, faz esquemas em folhas para distribuir por todos com o jogo das letras, pede que eu lhe faça trancinhas e até tenta ensinar o pai a fazer ballet. E lancham, e cantam, e bate palmas. E a minha mãe ri, contente por ver aquela família tão bem disposta. O menino que mais se preocupa com a finitude da vida pensa e, dirigindo-se à bisavó, começa a formular a pergunta: 'Então... e quando o avô...' e hesita, não sabe como dizer. Mas depois continua, arranjando maneira de tornear a ideia que lhe ocupa o pensamento 'quando o avô estiver a dormir... com quem é que tu conversas?' E a minha mãe percebe mas desdramatiza: 'Então, eu tenho sempre coisas para fazer, estou sempre entretida' E ele, 'Então, se calhar tens que falar mais ao telefone, não é?' E a minha mãe diz que não é preciso estar sempre a conversar, que vê televisão, que vai às compras. Ele escuta, apreensivo. 

Mas logo alguém fala de outra coisa, logo a brincadeira o puxa noutro sentido.


No fim, a minha mãe, toda chateada, diz que tinha uma quiche e que se esqueceu de o dizer. O meu filho diz que não faz mal, que leva metade, que até lhe dá jeito. E a minha filha diz o mesmo. E cada uma embrulha a sua metade em papel de alumínio. E a minha mãe fica logo toda contente. E bolo também. Cada um leva seu pedaçp. E levantámos a mesa mas é escusado pensar que fica pouco por fazer, por onde aqueles cinco passam é como se um pequeno vendaval por ali tivesse passado.

E isto tudo para dizer que não vi televisão, não sei de notícias, nada. No outro dia li um texto do Nabokov sobre o Tolstoi e gostei muito, até assinalei as páginas para aqui transcrever algumas passagens. A inteligência é fundamental num escritor. A escrita, para me prender, não tem que ter apenas elegância e fluência, tem também que revelar inteligência. De preferência tem que surpreender-me pelo seu fulgor. Lampejos de inteligência. Gostava de ser capaz de ir ali buscar o livro para vos mostrar mas é-me impossível. 


Um dia ainda hei-de habituar-me a arranjar maneira de escrever menos para poder vir até ao blog a horas mais decentes. Se eu fosse capaz de não me deter aqui por mais de cinco ou dez minutos, pequenos haikus, aforismos, uma música, uma frase, coisa simples assim, talvez a coisa fosse mais racional e os meus horários mais decentes. Por exemplo hoje, entre as três e as três e um quarto tive quinze minutos livres. Mas nem me ocorreu aqui vir pois já sei que desato a escrever e escrever, uma coisa torrencial, e levo quase uma hora senão mesmo mais. Ainda não aprendi a ser concisa. E devo dar com cada seca a quem aqui vem na esperança de descobrir coisa que se aproveite...


E, portanto, nada tendo eu a reportar, deixo-me ficar pelo documentário da Madonna sobre o seu último trabalho. Não alinho nessa de dizer mal dela, de achar que ela se sente superior a nós ou de desdenhar de tudo o que ela diz. Acho sinal de inferioridade essa coisa de embirrar com tudo o que seja novo, estrangeiro, endinheirado. Pelo contrário, gosto de quem gosta da minha terra. E ao ver o Panorâmico de Monsanto, lugar tão extraordinário, não poderia ficar indiferente. Fico até a achar que deveríamos ficar-lhe reconhecidos por Madonna reconhecer a beleza daquele lugar decadente e tão estranhamente abandonado.

The world of Madame X


Madonna em Lisboa



E a todos desejo um belo dia de domingo

segunda-feira, abril 15, 2019

Mergulha comigo






Por muito que possa parecer o contrário, por vezes apetece-me o silêncio das palavras escritas, como se me apetecesse conceder-me o direito à sua rarefacção. Apenas olhar, pensar, ouvir música. Ou nem isso.

Where's somewhere I can cross the sea
In a land that's lost and free
With my darling close to me
At least where I'm supposed to be

Yeah somewhere on the ocean breeze
And around the swinging trees
You're the only one for me
That is where I long to be

Someday

You're somewhere out upon the beach
Out of range and out of reach
With the truest love of mine
Underneath the bluest sky

Yeah far away from any time
We'll watch the lazy sun go down
With my sweetheart I lay down
That is where I will be found

Um céu em azul real que resolvi tingir com um azul virtual

quarta-feira, janeiro 02, 2019

O meu primeiro dia de 2019
[Com a ementa do Almoço de Ano Novo]





Comecei o ano como gosto: a cozinhar para a família. E haveriam de chegar ruidosos, brincalhões, sorridentes. Os mais pequenos logo correndo uns atrás dos outros, o bebé com palavras novas, muito bem ditas: bacalhau, cereais, bochecha. Os outros perseguem-se, saltam, e, quando passam ao pé dele, soltam: 'Bacalhau', ao que ele responde prontamente: 'Bacalhau'. Hoje tivemos cá outro menino e, portanto, a minha menininha mais linda estava ainda em mais minoria. Trazia uma bonita maquilhagem (para crianças) que ainda valorizava mais os seus belíssimos olhos. Era ela e cinco rapazes. Vale-lhe a atenção da tia que vai desenhar com ela para a ensolarada secretária e a quem ela retribui penteando-lhe a farta cabeleira, fazendo tranças, ou seja, fazendo a tia sentir-se próximo do nirvana.


Ao almoço a mesa, apesar de bem comprida, é cada vez mais curta. Um dia destes teremos que equacionar fazer aquilo que já fazemos in heaven quando a lotação também quase se esgota: ter segunda mesa. Por enquanto, dado que o bebé ainda fica numa cadeirinha que é posta um pouco afastada  num canto de forma a não ocupar lugar à mesa e dado que ainda vão cabendo, ainda que já um bocado apertados, temos resistido a isto das duas mesas até porque ter toda a gente à volta da mesma mesa é parte da felicidade destes dias.

Depois de almoço, para além de jogarem à bola na sala (com uma bola muito levezinha...) e de andarem às lutas, o menino mais velho pegou na minha máquina e começou a filmar os outros a cantarem, a dançarem e a fazerem performances, cada uma mais maluca do que a outra. A seguir, para ver se sossegavam, fiz-lhes uma sabatina política e geográfica tendo ganho o mais novo (o mais novo a seguir ao bebé, claro, o que tem seis anos) evidenciando, uma vez mais, que é uma surpreendente esponja que absorve e assimila tudo o que ouve. É que até as palavras francesas diz com sotaque francês (como um Macron pronunciado como um parisiense de gema).


Quando saíram, levando a habitual marmita com o que sobrou, e depois da casa minimamente arrumada, resolvemos ir dar um passeio até ao lugar que, para mim, é um dos mais bonitos do mundo, talvez nem especialmente pelo lugar em si mas, sobretudo, pela assombrosa vista que dele se tem. Lisboa, magnífica, sob uma luz dourada, os navios deslizando num Tejo muito azul e muito tranquilo.

Quando regressámos já a noite começava a tombar e eu, mal me apanhei em casa, pus-me a ler o livro da Anabela Mota Ribeiro com entrevistas e fotografias de Saramago e Pilar e, apesar de ser bem interessante, adormeci.

Agora já estou no turno da noite. Já escolhi a roupa para amanhá, já pintei as unhas, já estive a ver as fotografias e os filmes, e, antes de me atirar ao tapete, aqui estou para vos dar conta destes meus pequenos nadas.


E, para os que são dados a culinárias, conto o que foi o Almoço de Ano Novo.

Para entradas: brás de farinheira, molhinhos, iscas às tirinhas.

Conto como fiz:
  • Brás de farinheira
Numa frigideira, coloco azeite com cebola cortada às rodelas muito finas. Frito em 'lume' não muito forte até a cebola estar bem macia. Junto o recheio de meia farinheira (usei da Beira Baixa) cortado aos bocadinhos. Mexi e fritei ao de leve. Juntei sete ovos grandes (uso matinados) e juntei um pacote pequeno de batata palha com pouca gordura e pouco sal. Envolvi tudo, ao de leve, até não se identificarem os ingredientes.
  • Molhinhos
Para quem não saiba, trata-se de rolinhos, presos por um cordel, de dobrada branca, muito fina, muito bem lavada. Compro-os já feitos em molhinhos. Apesar de já virem muito bem lavados, coloquei-os, ainda assim, de molho em água com abundante vinagre. Assim estiveram durante umas duas ou três horas. Depois coloquei-os numa panelinha para ficarem cobertos por água com um fio de azeite, sal, uma cebola, umas folhas de louro e um ramo de salsa. Coze durante muito tempo, talvez umas duas horas ou mais, a panela sempre tapada. Depois escorro, tempero com azeite e vinagre balsâmico.
  • Iscas
Não tem história mas pode haver quem não saiba. Compro cortadas fininhas. Frito numa frigideira com azeite, alho abundante e louro. Não devem ficar queimadas, nem secas, nem cruas. Para isso, o 'lume' não pode estar muito forte e devem ser viradas amiúde. Depois de prontas, cortam-se às ripinhas fininhas e servem-se assim. 

Para prato de substância: bochehas e queixadas de porco

Fiz em tachos separados e já explico porquê.
  • Bochechas
Num tacho coloco azeite no fundo, duas grandes cebolas cortadas aos bocados, uma cenoura grande às rodelas, salsa e coentros abundantes, as bochechas, dentes de alho, vários dentes de alhos, cubro com mais duas cebolas e rego com um pouco de vinho branco e mais um pouco de azeite. Depois de ferver, baixo o calor e fica a cozinhar em calor brando, o tacho tapado. Talvez também umas dias horas.
No fim, coloco as bochechas num tabuleito findo, com cuidado para não se desmancharem. Escorro a parte mais líquida do caldo que se formou no tacho e, com a varinha, desfaço a cebola, os alhos, a salsa, a cenoura até ficar um molho muito cremoso. Rego, então, as bochechas com esse molho espesso e saboroso.
  • Queixadas
As queixadas têm osso e fiz à parte para poder moer o molho das bochechas à vontade, sem receio que o caldo contivesse lascas.  
As queixadas foram feitas quase da mesma maneira mas juntei também alecrim e louro, porque, aqui não ia moer. Foram servidas assim mesmo. 
Para acompanhar tinha puré de maçã. Comprei feito, sem açúcares adicionados, puro purá de maçã cozida. 
  • Fiz ainda arroz de substância para acompanhar
Chamo-lhe de substância mas é assim: Num tacho coloco azeite e alhos com carne de vaca e porco picadas, não muita. Junto também um bocadinho, pouco de chouriço de carne cortado aos bocadinhos. Depois juntei cebola picada e salsa. Juntei ainda uma cenoura grande ralada. Juntei o dobro da quantidade de arroz em líquido (uma parte do caldo escorrido das bochechas e a parte restante em água). Ficou a cozinhar. Depois juntei o arroz. No final, quando tinha um pouco de caldo, juntei um ramo de hortelã e mexi para o sabor se misturar.

Houve alface para salada.

Depois uvas e tarte de framboesas e árvore de natal de limão (os bolos, como habitualmente da Padaria Portuguesa).

Acompanhámos com tinto alentejano, um monocasta, Sangiovese 2013. Sumo de laranja para crianças e para quem não é dado a vinhos.

---------------------------------------------

E fiz questáo de fotografar uma vez mais aquele navio que me enche de pena e espanto: o Rio Arauca continua fundeado a meio do Tejo há mais de um ano com um grupo de tripulantes que de lá não pode sair, apenas contando com a boa vontade de uma empresa que manda regularmente mantimentos para que, ao menos, sobrevivam,


------------------------------------------------------------------------

E permitam que termine este post com um vídeo que nada tem a ver com o que acabei de escrever. Mas tem a ver comigo, com o meu amor à natureza, com o meu respeito e veneração pela diversidade e beleza da natureza.

A história de Pamela Gale Malhotra e do marido Anil que há duas décadas cuidam de um bocado de terra, um espaço maravilhoso que parece mesmo o paraíso na terra


Sejam felizes em 2019.

segunda-feira, julho 02, 2018

Das rolas, das cabras, das medusas -- e do desejo



Estávamos a passear, eu, a minha filha, os dois meninos. Falávamos não sei de quê. Das pinhas, talvez. Do desenho do banco de pedra que fiz debaixo dos pinheiros. Os meninos por ali e nós conversando. De repente aquele agitado rumor. Olhámos. Uma rola soltava-se da azinheira ou da aroeira e, naquele bater apressado de asas, levantou-se por entre as ramagens e foi para outro lugar onde não fosse perturbada por vozes humanas. Os meninos já não conseguiram ver. Mas eu e a minha filha sim. Grande, cor de prata e de pérola quase rosada.

O cheiro acre da penugem nova
da jovem rola fiel, solitária,
dos próximos pinheiros exilada,
entontecia os seres que a rodeavam
para escutar a paz do seu arrulho
-- os seres tão diversos de três reinos,
o gato negro, a pedra e eu no mundo.

Estão por todo, os pássaros in heaven. Mas mal se vêem. Conseguem esconder-se entre as folhas. Cantam, cantam. Se me ponho estendida ao sol, eles distraem-se e, então, abeiram-se. Vejo-os sobre os muros, saltitando no chão, voando de brincadeirinha de ramo em ramo.


Mas a fruta debicada prova que estão sempre atentos, sempre presentes. Como as uvas e os figos ainda não estão maduros, têm sido poupados. Mas as ameixas, como começam a ganhar cor e doçura, já estão quase comidas.


Quando íamos a caminho do terreno do lado de lá, aquele que foi limpo com uma máquina, o menino a quem em tempos chamava ex-bebé, o mais novo da minha filha, disse: 'O que eu gostava era de ter aqui animais'. E eu disse que eu também, uma cabrinha para comer o tojo e as silvas. Ele disse que ele queria um bode. E que lhe haveria de chamar Bodão. Bode Bodão, disse, sorrindo. E eu fiquei calada, a lembrar-me que esse era o nome pelo qual chamava a mãe dele um amigo que foi amigo de coração durante muitos anos. Depois, mal chegámos ao pé desse terreno, ele exclamou: 'Ah, este sítio era ideal para termos animais!'. E o seu mano veio ver mas não se entusiasma com estes temas da vida no campo, quer ser cientista e modificar o DNA para prolongar a vida humana. Ouço as coisas que ele diz, as suas investigações por vir, e fico sem saber o que dizer. Penso que prolongar a vida humana não é forçosamente bom. Mas não quero dizer-lhe isso nem tenho ideias feitas sobre o assunto. Ponho-me é a pensar na cabrinha que gostava de ter.

Falei com uma cabra
Estava só no prado atada
de erva saciada molhada
pela chuva balia

Aquele monótono balir era irmão 
da minha dor. E eu não lhe respondi primeiro
por graça depois porque a dor é eterna
Era esta a voz que eu sentia
enquanto a solitária cabra balia

Era uma cabra de rosto semita
Lamentava-se do mal alheio
da alheia desdita


E, posto e disposto tudo isto, e não querendo pensar em qualquer desdita (nem na pulga maldita), ao fim da tarde, depois de umas compras, fui fazer uma caminhada rente ao rio. Espantei-me com a beleza. Tanta, tanta. Como se nunca tivesse visto igual, assim me deslumbrei.

Olhei tudo pela primeira vez. O sol sobre o cais, o azul das águas, a magnífica cidade, linda, linda. As rochas, as águas entre elas, as medusas que julgo ver, vagueando, transparentes, cabelos à solta, e que não consigo fotografar.


Como vós oh infelizes cabeças

de roxas cabeleiras

não há coisa que mais me agrade

do que dançar no meio da tempestade

........................................


E agora mais nada porque tenho que me levantar antes que o sol se levante do rio e já não falta muito. 

Mas vocês, que não têm que fazer centenas de áridos quilómetros -- sem rolas, cabras ou medusas -- podem ouvir Hilda Hilst a ler quatro poemas do livro "Do desejo" em gravação do princípio dos anos 90 do século passado (ah o que eu gosto de dizer do 'século passado' como se fosse coisa longínqua na qual eu não tenha estado).

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?


....................................................................................................

As fotografias foram feitas in heaven e no Ginjal

O primeiro poema é de Fiama Hasse Pais Brandão, o segundo é de Umberto Saba e o terceiro de Guillaume Apollinaire -- e estão no livro Animal, animal, um bestiário poético, organização de Jorge Sousa Braga

..............................................................

E para verem um vídeo que mostra o corpo das mulheres antes de se depilarem queiram descer até ao post seguinte

...................................................................